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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

31
Out16

313 - Pérolas e diamantes: mentiras e andorinhas

João Madureira

 

 

 

Harold Bloom, o cânone acidental, defende que o pensamento em grupo é a praga da nossa “Era da Informação”, pois o estudo da mediocridade, seja ela de que origem for, gera mediocridade.

 

Quem sabe de tudo isto é Michel Houellebecq que, de uma pernada, define muito bem toda esta atmosfera decadente do neoliberalismo.

 

No Mapa e o Território, Jed e o seu pai jantam juntos em ocasiões muito especiais, sobretudo na noite de Natal. Um porque está viúvo e o outro porque não tem namorada fixa no momento.

 

Na ceia ocupam o tempo a falar da política, passando em revista ministério a ministério, até à chegada do carrinho dos queijos.

 

Segundo o narrador, nos países latinos a política consegue satisfazer as necessidades da conversa entre machos de meia-idade ou até mais velhos. Nas classes inferiores é muitas vezes substituída pelo desporto. Já nos indivíduos influenciados pelos valores anglo-saxónicos, o papel da política é principalmente exercido pela economia e pelas finanças. Podendo a literatura desempenhar um papel complementar.

 

No caso de Jed e do seu progenitor, nem um nem outro se interessam verdadeiramente pela economia e muito menos pela política. O pai, de uma maneira geral, aprova o modo como a França é dirigida e o filho nem sequer tem opinião. Entre uma coisa e outra, limitam-se a comer a tradicional ceia.

 

Depois dos queijos, o pai de Jed anima-se um pouco e pergunta ao filho acerca dos seus projetos artísticos. Infelizmente Jed, naquele momento, encontrava-se a marcar passo. Mas nem isso lhe diz, já que ninguém, e muito menos ele, pode fazer seja o que for. Aliás, ninguém pode fazer nada, pois, mesmo que fizesse essa confidência, o seu pai, como a generalidade das pessoas, apenas se pode entristecer ligeiramente, porque, na opinião do narrador, isto das relações humanas não é lá grande coisa.

 

Houellebecq carateriza muito bem este meio burguês e medíocre que medeia e modela a nossa sociedade neoliberal. Os tipos entendidos que interferem no meio das raparigas peritas em qualquer coisa são do tipo alto e um pouco flácidos, meio-gordos, de cabelo meio-comprido, de olhar meio-inteligente meio-estúpido.

 

O Mapa e o Território, para estar de acordo com os tempos, é mesmo um romance didático, que nos ensina que engordamos por causa da secreção de testosterona, pois esta diminui com a idade, daí a taxa de massa gorda aumentar, quando chega a idade crítica.

 

É também um livro carregado de desilusão. O pai de Jed, já muito doente, conta ao filho que aos dez anos tentou construir um ninho para as andorinhas que passavam o verão na cocheira. Para isso, procurou numa enciclopédia indicações precisas do modo como as andorinhas constroem os ninhos, com terra e saliva, e passou semanas nisso. Mas elas nunca quiseram usar o seu ninho. Nunca. Até deixaram de fazer os ninhos na cocheira. Depois começou a chorar.

 

Jed, vendo que o seu pai banhado em lágrimas e sem conseguir parar de soluçar, informa-o de que as andorinhas nunca usam os ninhos construídos pela mão do homem. E se um homem lhes tocou no ninho, até o abandonam e vão construir um novo.

 

O seu pai pergunta-lhe como é que sabe isso. Ele responde que leu alguma coisa sobre o assunto há alguns anos atrás num livro sobre comportamento animal, quando estava a documentar-se para um quadro.

 

Era falso, Jed nunca lera nada disso, mas o seu pai pareceu aliviado e logo se acalmou. Jed pensou então como é que uma pessoa consegue carregar durante mais de sessenta anos um peso daqueles no coração.

 

Jed, como artista, ensina-nos algo de muito importante. Pode-se trabalhar solitariamente durante muitos anos – na sua perspetiva, essa é até a única maneira de trabalhar –, mas acaba sempre por chegar o momento em que o autor sente a necessidade de mostrar o trabalho ao mundo, não na perspetiva de o expor a julgamento, mas antes para ficar seguro da sua existência, e até da existência do próprio autor, pois no seio de uma espécie social, a individualidade não passa de uma breve ficção.

 

Hoje, por causa das coisas, apetece-me terminar citando Clarice Lispector: “E eu não aguento a resignação. Ah, como devoro com fome e prazer a revolta.”

 

Balelas!

27
Out16

Poema Infinito (326): procura

João Madureira

 

 

 

Amanheci confundindo-me com as nuvens. Ontem a noite caiu cedo atravessando fria os postes elétricos. Em casa não estava ninguém. Acendi a fogueira e pus-me à janela. Sentia ainda em mim a agitação do teu corpo. Dentro da minha cabeça as aves fazem barulho. Tento pensar-te na luz crua da razão, mas não consigo. As minhas palavras dirigem-se à tua própria sombra. És o ponto central de toda a minha metafísica. No aquário os peixes mexem-se como criaturas lentas. Por vezes confundo-os com répteis. Caiem-me folhas do corpo. O outono é uma lenta desagregação da vida e da memória. Da janela vejo o cume das árvores que me estimulam o instinto poético primário. A arte poética resulta sempre de uma hipótese de afetividade, da consciência dos símbolos, da transcendência das palavras, da irreversível força do desaparecimento, da cintilante evidência das teorias abandonadas. As palavras ficam mais obstinadas, transformam-se em lugares-comuns. Os caminhos sucedem-se uns aos outros. A memória vacila. Contemplo a profunda devastação do adeus. Escrevo para libertar o silêncio que guardo dentro de mim. Sou um andarilho solitário. Oiço os murmúrios como se fossem gritos. Os gestos do tempo ficam cada vez mais vagos. A totalidade fragmenta-se em infinitos nadas. A luz desfaz-se dentro dos teus olhos. Os rostos antigos tornam-se mais familiares. As lágrimas que choramos são como escassos adjetivos. As palavras vão-se multiplicando nas partes vazias das salas e dos quartos. Alguém fixa a nossa sombra na parede. Do Norte sopram as memórias adormecidas, as lamentações, o mutismo dos gestos, as divindades ilusórias, o rumor mortal das folhas das figueiras. Na vida triunfam os bebedores de redundância, os adversários das metáforas, os ressoadores intransigentes do supérfluo, os amantes da ignorância, da docilidade e do laconismo. O tempo transformou-se numa espécie de espelho absoluto que repete tudo o que é subjetivo. As figuras mais densas fogem para o infinito, lá onde se encontra a infância, onde a memória é luz, onde a tristeza e a alegria são pó, onde as chamas primitivas consomem tudo aquilo que existiu e o transformam em éter. Dá-me vertigens pensar na infância, na sua simplicidade primitiva, na sua musicalidade perdida, nas suas regras frias e sem sentido, nos seus impulsos de desordem. Agora doem-me os anagramas das curvas do teu corpo, a reaparição das ausências, as solicitações, as fugas, a solitária loucura das civilizações, as vozes silenciosas, o tempo submerso nas cidades, a intensidade efémera da luz, as extensas simetrias da beleza, a impressão da água nos solos, a rigorosa imobilidade das cores, a psicologia da imaginação, o fundo cinzento das palavras. As distâncias fictícias expandem-se dentro das distâncias reais. Continuo obstinado pelo sentido feroz da compreensão. A segunda revelação é sempre falsa. Continuam a cair-me folhas do corpo. O chão fica juncado delas. Nas folhas descubro a insólita escrita dos místicos, o seu exercício crepuscular, a angústia da dúvida divina, a inquietação da fé, o amor trágico dos dogmas, a incompreensível arte do elogio, os movimentos obsessivos da embriaguez, as simbólicas metáforas vegetais, a dúvida obsessiva dos poetas. O sol caminha no horizonte. Oiço o vento a soprar da direção do mar. Olho os montes. Nos caminhos cantam os viajantes. Desço os degraus do meu olhar e vou procurar-te.

24
Out16

312 - Pérolas e diamantes: A Piada Infinita

João Madureira

 

 

De facto, A Piada Infinita (Infinite Jest, no original) é mesmo um livro grande, ou um grande livro, se preferirem. Ou melhor ainda: o calhamaço de David Foster Wallace é um livro enorme. E quando digo enorme é enorme mesmo. Em todos os sentidos.

 

A edição portuguesa (Quetzal) tem 1198 páginas, composto em caracteres Sabon, 1100 páginas em tamanho 10, e as outras 98 compostas por notas a tamanho 8, quando não a 6.

 

Segundo o Sunday Telegraph ainda não inventaram uma definição para aquilo que ele escreveu.

 

Apesar de sofrer de problemas de depressão (suicidou-se em 2008, com apenas 46 anos), DFW escreveu uma comédia tresloucada, onde misturou várias e pertinentes reflexões filosóficas, sobre os vícios da nossa sociedade, sobre as relações familiares e o papel do entretenimento nas nossas vidas.

 

David Foster Wallace estudou Inglês e Filosofia e, durante a adolescência, foi praticante federado de ténis, atividade que viria a ser essencial na sua obra. Era admirador de Thomas Pynchon. Eu, pela parte que me toca, acho-o bem melhor do que o seu putativo mestre.

 

A Piada Infinita é uma obra de um fôlego imenso, que escapa a qualquer definição, parecendo mesmo uma obra vinda de um outro universo diferente do nosso. O homem escrevia como quem respira.

 

Uma das partes que mais me tocou é um diálogo, versando a tristeza, estabelecido entre os dois irmãos (Hal e o deficiente Mario) sobre o seu irmão mais velho (Orin) e o resto da família Incandenza: uma mãe invulgarmente bela e um pai genial que se suicidou enfiando a cabeça dentro de um micro-ondas.

 

Mergulhar de cabeça, ou melhor, com cabeça, n’A Piada Infinita é uma experiência alucinante e arrebatadora. A sua ação passa-se à volta de uma Academia de Ténis e um centro de reabilitação de alcoólicos e toxicodependentes. No centro da narrativa encontra-se um filme realizado por James Orin Incandenza Jr., intitulado precisamente Infinite Jest, do qual se diz que deixa os espectadores num estado de apatia permanente, incapazes de se preocuparem com outra coisa que não seja ver de novo o filme.

 

Para Hal, algumas pessoas quando mentem ficam muito quietas e pensativas e o olhar delas adquire uma grande intensidade e concentração. Dessa forma tentam dominar a pessoa a quem mentem. Outras começam a ficar agitadas e pouco fiáveis, alternando as mentiras com pequenos movimentos e sons autodepreciativos, como se a credulidade fosse a mesma coisa que a pena. E existem outras que escondem a mentira com tantas voltas e apartes que tentam fazer passar a mentira de forma despercebida no meio de toda a informação supérflua que nos transmitem. Emitem uma espécie de ruído incomodativo.

 

Há ainda os mentirosos kamikazes, que nos contam uma mentira surreal e basicamente inacreditável, para de seguida fingirem uma crise de consciência, retratando-se dessa mentira original e logo nos obsequiaram com outra que querem impingir-nos realmente, para dessa forma a mentira verdadeira nos parecer uma espécie de cedência, um ajuste com a verdade. Felizmente, lembra-nos Hal, esses mentirosos são fáceis de detetar.

 

Existe uma variante de mentirosos que são mestres em complicar demasiado as mentiras, sustentando-as com criações muito elaboradas, repletas de detalhes e aditamentos. Esses são sempre apanhados.

 

Desta variante, surgiu uma análoga, que é o mentiroso que dantes complicava muito as coisas mas que acabou por se aperceber que as suas criações muito elaboradas o lixavam sempre. Por isso mudou de estilo e passa agora a mentir de forma abreviada e esparsamente, sugerindo aborrecimento, como se estivesse a dizer uma verdade tão óbvia que nem vale a pena perder tempo com isso.

 

Existem também pessoas que simplesmente são demasiado boas, demasiado complexas e idiossincráticas, que proferem mentiras muito próximas do cerne da verdade para conseguirmos perceber a diferença.

 

Hal Incandenza, nos seus dezassete anos, acha que acredita que os únicos monstros verdadeiros talvez sejam os mentirosos que não conseguimos perceber que o são. Aqueles que não revelam nada.

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