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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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17
Nov16

Poema Infinito (329): miopia

João Madureira

 

 

O dia abriu a boca e engoliu o meu pesadelo. Job despediu Deus e Satanás dos seus sonhos. A lamentação podia ser grande, mas o pecado era pequeno. Todos os meus pecados são mínimos. Agora todos os nomes ressoam dentro da minha cabeça. O tempo desfigurou-se um pouco mais. Ouviu-se a palavra dor chamar, mas mesmo antes de ela comparecer, alguém começou a lamentar-se. O amor não tem raízes naturais. A vida arrefece mais um pouco. As perguntas que ele faz são como punhaladas frias. Cinge-se-lhe ao corpo o calor maternal. E é isso que lhe dói. A ausência. A ilusão da felicidade continua a navegar no mar doirado. Qualquer dia naufragará e depois alguém poderá salvar os seus filhos e as ovelhas e os vinte anos e até a velhice lisonjeira dos avós. Babel sofre o seu primeiro terramoto, os gestos dos incrédulos cobrem as flores mais rasteiras, os mochos piam. Tudo se transforma numa elegia de desilusão. Confessa-se o bom e o mau. Alguém elogia as suas próprias virtudes teologais. São sete os pecados mortais. Eu apenas confesso que não consigo ser dono das minhas horas. A ternura deve ser diáfana e mansa. O tempo repete-se do mesmo modo. Caem os anjos do céu como tordos. Deus continua a governar a diáspora como se fosse um homem despido de sentimentos. As rugas perdem-se no meu rosto. Penso que o tempo é falso. Entro no sono cada vez mais cansado. O guerreiro desespera-se com este tempo de paz. Zaratustra ressuscitou da sua quimera morta. O mistério do seu drama é não ter mistério nenhum. A terra faz sentido, as espigas da seara também. Adormeço com a cabeça solta entre as tuas coxas. O teu olhar fica mais tardio. Nos caminhos passam pessoas cheias de noite e de luar. Bebem água da fonte dos sonhos, colhem lírios. Andam de terra em terra à procura do sítio certo para morrerem. O chão fica semeado de estrelas pisadas. Eretos, os montes velam como se lhes conhecessem os sonhos gelados. O seu desespero é cada vez mais íntimo e mais ímpio. As raízes das árvores secam envenenadas pela amargura. Os poemas caem das macieiras por estarem maduros demais. Ninguém os colhe. Possuem um aspeto tão desgraçado que até os animais mais famintos os evitam. Servirão de húmus. Apesar dos beijos que encerram, das ironias que transportam, das promessas que carregaram durante a sua existência. Ninguém aproveitou o cais de onde partiam os navios que os sulcaram, ninguém se deixou beijar com o seu amor, ninguém abraçou o seu corpo esguio de braços abertos pela esperança, ninguém acreditou nas suas promessas, na sua pureza, nas suas utopias, nas ilusões semeadas dentro de si, na sua razão, no seu perdão, nas emoções mais puras, nas tardes que conservavam o calor da lareira no inverno, na possibilidade da poesia ser gloriosa e encerrar dentro de si os anjos da guarda, e o delicado silêncio do amor, e o vinho e o pão da transfiguração e da possibilidade eterna da redenção. Também as serras paradas esperam por movimento. A poeira aguarda ser levantada. A sombra espera ser movida. Guardo dentro de mim ainda um palmo de sonho. Olho para o sol, ou o que resta dele, e penso que para o ano a macieira voltará a florir e a dar frutos. Isto se, entretanto, um bruto qualquer não a deitar abaixo com os duros golpes de um machado aguçado. A bruma vai-se. As fadas dobam os seus enredos de sonho. Reparo que estão nuas. Não, é afinal a minha miopia que cada vez me engana mais.

14
Nov16

315 - Pérolas e diamantes: Ele e os políticos… ou a viagem da carcaça

João Madureira

 

 

Como diria Pedro Marta Santos (Os Dez Livros de Santiago Boccanegra) neste “país ao centro dos Mapas da Tristeza Chamado Portugal”, o que por aqui se passa oscila entre o dececionante e o deprimente, poucas vezes conseguindo ultrapassar o banal. Quase tudo o que por aqui acontece sugere sempre um bacanal de mediocridade.

 

Já não existe por cá daquele tipo de gente que, nos anos sessenta ou setenta, era desregrada e que não media a consequência dos seus atos, conhecidas, e reconhecidas atualmente, como pessoas de carácter.

 

Antigamente ainda se debatia a obra de Soljenitsin. Hoje prevalece a cultura do croquete e da flute de champanhe, dos livros de autoajuda e dos que prometem escandaleira e depois são ainda mais pífios do que um debate cultural promovido pelo Correio da Manhã, versão TV, com música de fundo de Quim Barreiros, Malhoa, Marco Paulo ou Tony Carreira.

 

Falo-vos do pífio e pretensamente tonitruante livro Eu e os Políticos desse senhor que dá pelo nome de José António Saraiva. O que por ali mais há são fait-divers irremediavelmente irrelevantes, textos que demonstram de forma lamentável, a alta consideração que o autor tem por si mesmo, uma espécie de megalomania invertida, tentando criar no leitor a impressão de que é portador de uma enorme intuição e de uma capacidade de premonição invejáveis. Pena foi que só o tivesse revelado a posteriori.

 

No fundo, o livro parece um ajuste de contas com a história, que o deixou de lado. A ele, que se julgava um génio. Apelidaram o livro de chocante, perverso e até amoral. Eu, depois de o ler, considero-o apenas lamentável. Não vale a pena.

 

Querem uma prova, ora então aí vai. Lá para o meio do livro confidencia-nos que um ministro, numa viagem ao estrangeiro, lhe confidenciou: “Quando se viaja com mulher, gasta-se mais e fode-se menos”. Esta é, asseguro-vos, uma das pérolas da obra. Não é em vão que o senhor Saraiva diz que pretende ganhar o Nobel da Literatura. Ao Bob Dylan poderá suceder o JAS. A coisa promete.

 

Mas existem outras notas de interesse, nas quais o livro se revela essencial. Com ele ficamos todos a saber que Pinto Balsemão é “doente pelo golfe”, que Alberto João Jardim “fala torrencialmente” e que escreve com uma “letra indescritível, correspondente a uma 3º classe mal tirada”, que no Expresso havia espiões e que “sair do poder nunca é fácil”.  

 

Informa-nos que Álvaro Cunhal era conhecido como o “Salazar Vermelho” e de uma fidelidade total a Moscovo. Revela uma suposta fragilidade emocional de Paulo Portas através de outra inconfidência de Ângelo Correia. Dá ao mundo a novidade de que Marcelo Rebelo de Sousa gosta da intriga e que é muito bom a espalhar rumores pouco críveis que lhe chegam aos ouvidos.

 

Para nos evidenciar a sua importância internacional, conta que o Presidente de Angola “esteve 3 minutos e 47 segundos” a falar com ele, o que comprovava o seu prestígio, pois em Angola a importância das pessoas mede-se pelo tempo que os poderosos lhes dispensam. Pelo menos foi isso o que um seu amigo angolano lhe disse… “E não deixava de ter razão.”

 

Repõe algumas verdades e desfaz alguns mitos. Por exemplo, perguntou a Cavaco o que ele lia e ele respondeu-lhe: “A Lusa, duas vezes por dia, a Economist (a melhor revista do mundo que leio desde os 17 anos), o Financial Times, o El País e o Le Monde.”Ou seja, Cavaco Silva afinal lia jornais, e dos bons, o que não lia era a escória dos pasquins portugueses, tais como, por exemplo, o Expresso.

 

Revela ainda coisas essenciais à compreensão do poder e aos seus protagonistas. Por exemplo, a mãe de António Costa tratava-o por Babouche, o pm “José Sócrates mentia descaradamente e desmentia as nossas notícias”, que Guterres lhe confidenciou “que a maior parte dos problemas se resolvem por si próprios. Sem ser preciso fazer nada”. Que Mário Soares achava que o problema de Guterres era a “falta de tomates”, acrescentando que “sem tomates não se vai a lado nenhum”. Que Guterres considerava Jorge Sampaio “um hipócrita”.

 

Revela ainda que conduziu bêbado, que Medina Carreira, ao abrir inadvertidamente a porta de um gabinete, viu um ministro a baixar as calças para lhe aplicarem uma injeção e que, “em estado de choque”, logo depois de lhe passar o susto, não se coibia de confidenciar em privado: “Eu vi o rabo ao ministro. Eu vi o rabo ao ministro.”

 

Mas a cereja no topo do bolo é esta frase que tem tudo, e mais alguma coisa, de literário e que não resisto a transcrevê-la. Eu, que até não sou mau leitor, tive de a ler três ou quatro vezes para atingir o seu pleno sentido e, sobretudo, a sua indesmentível pertinência e a sua objetiva profundidade.

 

Passa-se durante um pequeno-almoço com Cavaco Silva na época do famoso tabu. Ei-la: “A dada altura pousa metade da carcaça que está a comer em cima da toalha branca, e à medida que fala vai-a afastando com a mão; às tantas, a carcaça já vai quase a meio da mesa redonda…”

 

É com estas pequenas migalhas de prosa que se ganham Nobéis.

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