Poema Infinito (328): o peso do voo dos pássaros
Pesam-me os pássaros dentro da memória. Chega de novo o tempo mais leve. Tenteio-me no exercício dos voos mais rasantes. As aves mais vagarosas pousam nos fios e transmitem-nos um toque de inocência. Custa-nos pensar naquilo que não temos. Por vezes conseguimos recuperar a paciência que fomos perdendo. O que ganhamos em idade perdemos em força. Agora até já choramos sem vontade. Esperamos recuperar a confiança, a fé e a clareza da alma de quando fomos crianças. As coisas mais expressivas já não são o que eram. O toque de Deus é frio, os pastores já não tocam a sua flauta durante o estio, já não se tosquiam os carneiros durante as manhãs mais frias. A própria lã ficou nua. Alguém vela a sua dor e escreve poemas gelados e nítidos. Todos os ermos estão agora assinalados com a luz da lembrança. É outubro, tempo de abrir o vinho, de reparar no céu, das crias ganharem tamanho, dos filhos chorarem no regaço das mães. O outono alcança a sua riqueza com a decadência das folhas mais pobres. Os ramos começam a gotejar. O chilreio dos pássaros diminui e os seus voos ficam mais melancólicos. Os lírios brancos ficam oxidados. Os dedos das mãos retorcem-se. Os pobres aproveitam o sol que à tarde lhes entra tímido pelas janelas. Os desgraçados comem o pão já duro e os ricos manjam os frutos amarelos. O Senhor já não se apieda deles. A sua alma ficou mais séria e desconfiada. A erva ainda é a sua cama de amor. O desejo é como uma hóstia. Comungam-se um ao outro como se fossem morrer durante o coito. O excesso de prazer faz-lhes doer a testa que arde tentando reprimir a ideia de pecado. Piedade e pão constituem a sua ceia. Os dos frutos dourados fartam-se do ganido dos violinos, como se esses instrumentos fossem cães presos por uma trela. Todas as ovelhas recolhem ao seu redil. Os pássaros medem o céu com os seus voos reservados. Cada qual vai onde tem de ir. Os que escondem dentro de si o remorso quedam-se no seu lugar prefigurado. As casas entram numa espécie de coma induzido. Aos mais pobres até as palavras lhes mingam na boca. Ficam tão hirtos e tristes como os ciprestes. Esperam que o vento lhes traga à porta os anjos famintos. Os rosados tomam o caminho das casas luminosas onde os caroços da fruta amarela já foram parar ao balde do lixo. O vento arredonda o frio. A vida esconde-se nos rostos dos mais velhos e cansados. Todos olham para a cinza das lareiras vendo aí o seu futuro. Suspiram. Jerusalém é um nome longínquo. A morte espera. As orações esperam. O perdão tarda em chegar. Os anjos dos pobres são rijos como pedras. A luz da madrugada ilumina as leiras rasas de amargura e aves paradas. Os homens vão redrar a terra e as brumas. Deus podia ser imenso mas é apenas um pouco de angústia. Por vezes sentem que perdem a alma, ou que ela lhes desfalece com a canseira. Ensinaram-lhes que a devem procurar, mas não lhes disseram onde. A glória de Deus tem vários graus. O naco que lhes calha em sorte é tão delicado como as bolas feitas de sabão. O seu desgosto é uma espécie de susto consentido. Tudo o que é divino é feito de espanto e demora. Os mais devotos choram com mais rapidez do que os restantes pecadores. As últimas folhas de outono caem humedecidas pela raiva. A memória é feita de silêncios. O vento enxuga o medo. O inverno e o pranto virão mais cedo. O eremita entra na cova e pensa na sua reserva de água, pão, frutos silvestres e fé. A última brasa no borralho deixou de emitir qualquer sinal de luz. Oremos Senhor.