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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

10
Nov16

Poema Infinito (328): o peso do voo dos pássaros

João Madureira

 

 

Pesam-me os pássaros dentro da memória. Chega de novo o tempo mais leve. Tenteio-me no exercício dos voos mais rasantes. As aves mais vagarosas pousam nos fios e transmitem-nos um toque de inocência. Custa-nos pensar naquilo que não temos. Por vezes conseguimos recuperar a paciência que fomos perdendo. O que ganhamos em idade perdemos em força. Agora até já choramos sem vontade. Esperamos recuperar a confiança, a fé e a clareza da alma de quando fomos crianças. As coisas mais expressivas já não são o que eram. O toque de Deus é frio, os pastores já não tocam a sua flauta durante o estio, já não se tosquiam os carneiros durante as manhãs mais frias. A própria lã ficou nua. Alguém vela a sua dor e escreve poemas gelados e nítidos. Todos os ermos estão agora assinalados com a luz da lembrança. É outubro, tempo de abrir o vinho, de reparar no céu, das crias ganharem tamanho, dos filhos chorarem no regaço das mães. O outono alcança a sua riqueza com a decadência das folhas mais pobres. Os ramos começam a gotejar. O chilreio dos pássaros diminui e os seus voos ficam mais melancólicos. Os lírios brancos ficam oxidados. Os dedos das mãos retorcem-se. Os pobres aproveitam o sol que à tarde lhes entra tímido pelas janelas. Os desgraçados comem o pão já duro e os ricos manjam os frutos amarelos. O Senhor já não se apieda deles. A sua alma ficou mais séria e desconfiada. A erva ainda é a sua cama de amor. O desejo é como uma hóstia. Comungam-se um ao outro como se fossem morrer durante o coito. O excesso de prazer faz-lhes doer a testa que arde tentando reprimir a ideia de pecado. Piedade e pão constituem a sua ceia. Os dos frutos dourados fartam-se do ganido dos violinos, como se esses instrumentos fossem cães presos por uma trela. Todas as ovelhas recolhem ao seu redil. Os pássaros medem o céu com os seus voos reservados. Cada qual vai onde tem de ir. Os que escondem dentro de si o remorso quedam-se no seu lugar prefigurado. As casas entram numa espécie de coma induzido. Aos mais pobres até as palavras lhes mingam na boca. Ficam tão hirtos e tristes como os ciprestes. Esperam que o vento lhes traga à porta os anjos famintos. Os rosados tomam o caminho das casas luminosas onde os caroços da fruta amarela já foram parar ao balde do lixo. O vento arredonda o frio. A vida esconde-se nos rostos dos mais velhos e cansados. Todos olham para a cinza das lareiras vendo aí o seu futuro. Suspiram. Jerusalém é um nome longínquo. A morte espera. As orações esperam. O perdão tarda em chegar. Os anjos dos pobres são rijos como pedras. A luz da madrugada ilumina as leiras rasas de amargura e aves paradas. Os homens vão redrar a terra e as brumas. Deus podia ser imenso mas é apenas um pouco de angústia. Por vezes sentem que perdem a alma, ou que ela lhes desfalece com a canseira. Ensinaram-lhes que a devem procurar, mas não lhes disseram onde. A glória de Deus tem vários graus. O naco que lhes calha em sorte é tão delicado como as bolas feitas de sabão. O seu desgosto é uma espécie de susto consentido. Tudo o que é divino é feito de espanto e demora. Os mais devotos choram com mais rapidez do que os restantes pecadores. As últimas folhas de outono caem humedecidas pela raiva. A memória é feita de silêncios. O vento enxuga o medo. O inverno e o pranto virão mais cedo. O eremita entra na cova e pensa na sua reserva de água, pão, frutos silvestres e fé. A última brasa no borralho deixou de emitir qualquer sinal de luz. Oremos Senhor.

07
Nov16

314 - Pérolas e diamantes: a fome e a ratoeira

João Madureira

 

 

A situação política em Espanha, mas sobretudo na Grécia e em Portugal, revela que o camarada Kondratiev tinha razão: “Não há revolucionários sem revolução.”

 

No entanto, a miséria continua a disseminar-se por esse planeta fora. O jornalista, e romancista, Martin Caparrós resolveu percorrer o mundo na tentativa de encontrar a resposta a uma pergunta: O que é a fome?

 

Dessa viagem global nasceu um livro: A Fome, onde o autor argentino nos dá conta de muitos casos dramáticos e de um sistema complexo que exige respostas complexas.

 

Numa entrevista à LER afirmou sem papas na língua que “cada vez mais é preciso fazer jornalismo contra o público”.

 

Caparrós considera que a influência do politicamente correto faz com que escondamos as coisas que queremos dizer ou que digamos muito menos daquilo que pretendemos afirmar.

 

Com o politicamente correto, esforçamo-nos por subutilizar a linguagem, refugiando-nos no “burocratês”.

 

Apesar disso, ou por isso mesmo, existe uma causa ativa que lança milhares de pessoas para fora do sistema, que não servem para nada. Existe atualmente um sistema que não sabe como pode aproveitar milhões de pessoas, mas, ao mesmo tempo, reconhece que não as pode deixar morrer, porque parece mal.

 

Martín Caparrós não se ilude nem deixa que nos iludamos: “Não digo que os queiram matar, mas que se pudessem deixá-los morrer, deixavam, porque não sabem o que hão de fazer com eles. A crise dos refugiados é prova disso.”

 

Ouviu muita gente, em sítios muito diversos. Passou horas a escutar o que tinham para lhe dizer. O que mais o entristeceu foi o facto da maioria das pessoas não vislumbrar nenhuma saída para a sua situação de fome e miséria. No máximo falam-lhes de Deus. Diz que conheceu poucos famintos ateus.

 

Por isso critica a religião organizada porque, na sua opinião, “se milhões de pessoas não acreditassem que a sua única saída é esperar que Deus lhes dê algo, procurariam outra solução”.

 

O papel da religião foi sempre o de acalmar aqueles que não têm nenhuma razão para estar calmos, porque lhes falta o essencial. Convencem-nos até de que sofrer é bom.

 

Chocado com a realidade e com o papel da religião na desculpabilização da fome e da miséria, zurze na Madre Teresa de Calcutá como em centeio verde. Há uma frase famosa da Madre que cita no livro, em que ela falava sobre o bonito que é ver o sofrimento dos pobres.

 

“Não é bonito, é terrível. Uma ideologia que admite que o sofrimento dos pobres é uma coisa bela, é terrível.”

 

Por exemplo, a Índia é o país onde mais pessoas passam fome. E isso acontece há gerações e gerações. “São pessoas que não só estão resignadas como, mais do que isso, vivem meias vidas, com um desenvolvimento físico e intelectual muito diminuído. São cerca de 800 ou 900 milhões.”

 

Entretanto, aqui na Europa, assobiamos para o lado. Longe da vista, longe do coração. Aqui continuamos a pensar nas cotas leiteiras e no subsídio para a vaquinha. Está bom de ver que um indiano é bem menos importante do que uma turina made in UE.

 

Esse facto lembrou-lhe um cidadão indiano que lhe disse que numa próxima encarnação queria ser uma vaca europeia, pois dessa forma recebia muito mais dinheiro do que nesta sua pobre situação.

 

No entanto, o cidadão europeu que preenche o impresso estandardizado para receber o seu subsídio da União Europeia não deve esquecer que só uma ratoeira oferece queijo de graça.

03
Nov16

Poema Infinito (327): a voz contínua da ambiguidade

João Madureira

 

 

Atravesso a rua, subo as escadas, abro a porta e reparo que tudo está mudado, principalmente a arte dos momentos e os murmúrios. O batimento das almas é diferente. Toda a aprendizagem se transformou numa ruína. Os campos ficaram áridos, a luz esgotou a paisagem, a voz da água espalhou-se pelo fundo dos poços. Abro a janela e reparo que os espaços estão vazios. O nada expande-se na sua inexorável frequência exata. As imagens que guardo estão no seu tempo verbal correto. A nudez dos corpos é núbil. A volúpia encobre as roseiras. A imagem do meu avô continua na sua posição sentada junto à casa de pedra e madeira. No amor tudo é dor e movimento, tudo é leveza e exatidão. Tudo é caos e ordem. No céu ainda brilham os astros que já morreram. As ervas bravas alimentam-se de água estagnada. As nuvens branqueiam o céu. Os meses continuam fixos. O vento muda o aspeto da paisagem. As leis fecundas da efemeridade emergem dentro das rosas enquanto as suas pétalas dormem enroscadas umas nas outras. Toda a confiança se baseia numa espécie de cegueira consentida. O ar mais fresco delimita o silêncio. Tento de novo enfeixar as palavras, vincular as perguntas às respetivas respostas, guardar os sons mais puros dentro das selhas mais velhas, salvar a árvore da inocência, sobretudo os seus ramos mais jovens. É tudo tão ambíguo. Os lugares movem-se devagar, a dor engole o destino e o desejo. As perguntas iluminam-se. Então o desejo faz incisões na superfície dos nossos corpos. A vida ora se contrai, ora se expande, para voltar a contrair-se. A voz contínua do espírito alimenta a paisagem de sons discretos. O velho pátio sugere uma constelação e lembra o antigo formato do verão. A roupa parece feita de ar. Sentimos a radiação das vozes, a transparência exata da paixão, os diversos modos e registos da alegria e da tristeza, a seriação dos sentimentos, a gradação dos sorrisos, a cadência invisível da inquietação, a escala intensa das aproximações. Apesar da luz intensa, não desviamos os olhos. Chegam os primeiros pássaros, vão-se as últimas estrelas. Por vezes a vida coincide com aquilo que vulgarmente chamamos de felicidade. Vivemos milénios de exposição aos signos e ainda não conseguimos entender a ordem explícita das metáforas, as mensagens minimalistas das escrituras, a morte súbita das estrelas, o abismo colorido formado pelo arco-íris, a face lúcida da mudez, as emoções que substituem a poesia, a arte escura da recordação, a ondulação das estações, a oscilação caligráfica do branco e do negro, o sentido da vida, a luz que provoca as sombras, as palavras que apagam os sentimentos, os sentimentos que apagam as palavras, a arte da diferença, a expansão do mundo, o incómodo sossego da solidão, o tempo que nos oferece o presente da desilusão. A verdade e a mentira costumam dançar sempre juntas. Dentro da nossa memória, os ceifeiros cantam, o tempo agita-se, a terra respira, os ignorantes obstinam-se com a sua sorte. Vivemos o tempo das grandes ausências. O espanto muda o desejo. Continuamos a persistir no ofício árduo de trabalhar as palavras. Por vezes elas ficam frias e pousam em nós como se fossemos nomes. Outras vezes ganham a imensa fluência das plantas e fabricam a primavera. Quase sempre as palavras tornam o tempo rotativo. Com elas aprendemos a amar os fragmentos mais instáveis da vida, a quase imperfeição dos momentos que passam. Com elas pretendemos entender a incansável desordem da matéria e do cosmos. Abençoado seja o deus eterno das pequenas coisas.

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