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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

29
Dez16

Poema Infinito (335): o olhar triste do mensageiro

João Madureira

 

 

Subo pela frente do monte, entre as fontes pardas. Lá em baixo, o prado dilui-se no olival. Sinto o embaraço do pó no meu rosto suado. As mãos ardem-me. Este não é ainda o fim do caminho. Alguém me perde de vista. Encontro-te sempre dentro de mim, mesmo quando estou sozinho. Continuo a confundir o amanhecer com os anjos. A aflição da sua luz é a mesma. A noite anterior desfolhou indiferentemente as árvores e as fantasias. Os vários regressos à casa abandonada são sempre invulgares. As crianças mexem-se nos sonhos como se posassem para uma fotografia. As noites crescem à medida que envelhecemos. Por vezes ficam enormes. Nelas dormem os cães e repousam as pedras. Costumo agora lavar o medo dos meus pés. Depois sento-me à entrada. Apercebo-me que tenho a boca cansada e dorida das palavras que não consegui dizer. Apesar da paisagem que avisto ser suave, não provoca desejo. Passa por nós o infinito. O tempo fica indiferente. O vento assalta as muralhas do castelo. Caem gotas de chuva sobre as velhas pedras. Os bichos vêm saber de nós. Movemo-nos através de leves equilíbrios. Por vezes as horas afastam-se de nós como se fossem pássaros com as asas em ferida. Sentimos a desilusão a tomar conta do nosso corpo. O sol fica forte como os gestos. A nostalgia é redonda e mansa e gosta de sonhar com unicórnios. Um incêndio toma conta das tapeçarias. Lá fora, um céu de chuva começa a cobrir a paisagem. Os homens mais crédulos ainda esperam pelos sonhos nas curvas dos caminhos. Dizem os nomes uns dos outros e depois deixam as palavras morrer. São tão mansos como os animais que domesticam. Fazem sofrer Deus de impaciência. As suas mãos encontram sempre o sexo fechado. A intimidade fere-os. Gostam de andar pelos caminhos já percorridos. O mensageiro de olhar triste voltou da cidade mudo, como se fosse um vulto que se desfaz a cada pergunta. As manhãs surgem depois das noites angustiadas. Ouvem-se ainda alguns gritos vagarosos. Os corpos femininos abrem-se como se fossem rosas confusas. Algo se agita no meio das folhas verdes. Surgem então uns joelhos e depois umas coxas esbeltas. As pernas cedem ao desejo. Sinto as veias como se fossem ramos de árvores. As horas ficam mais graves. O silêncio transforma-se em sombra. Sinto-me como uma nuvem rodeada de longes. Aprendi a amar as horas noturnas, aprendi a sentir o espaço e a lonjura das lendas. Aprendi a ler os sentimentos nas velhíssimas cartas de família. Aprendi a tristeza a ouvir-me respirar. A compreensão limita o mundo e torna-nos mais desassossegados. As emoções ajudam-nos a encontrar as nossas asas perdidas no momento da criação. O tempo fica mais abrupto. As horas inclinam-se por causa do seu fulgor metálico. Expiamos os dias, uns a seguir aos outros. Compreendo agora os sorrisos enigmáticos da minha mãe. Tudo soa de uma maneira diferente. Afoga-se a saudade na incerteza do seu rosto. Fixei-me na leitura dos livros mais estranhos. As suas palavras ficam nubladas, mais longínquas, como se tivessem fobia à incerteza. A tua mão faz-me reconhecer o princípio da gravidade. Sinto-me como um camponês a deixar correr o tempo como se ele não existisse. Os pomares velhos também não perdem a primavera. A dor e o prazer já vêm de longe. Vejo pousar a luz mais singela no centro dos teus olhos. São eles que me iluminam o caminho. Evoco a eternidade das casas. Sobre elas descansa o céu mais estrelado.

26
Dez16

321 - Pérolas e diamantes: a política e o diabo ou o diabo da política

João Madureira

 

 

Um ditado atribuído a Konrad Adenauer diz que “não se deita fora a água suja enquanto não se tiver água limpa”. Mas estou em crer que preservá-la depois de se ter água limpa ali mesmo à mão de semear é teimosia desnecessária.

 

Svetlana Alexievich conta que os tajiques de Kulob matavam os de Pamir e os tajiques de Pamir matavam os de Kulob. Depois juntavam-se na praça a gritar e a rezar. Intrigada, perguntou aos anciãos a razão de tal desvario. Afinal, protestavam contra quem? Responderam: “Contra o parlamento. Disseram-nos que é um homem muito mau, o parlamento.” Depois a praça ficou deserta e começaram a disparar.

 

Isto passou-se lá para o Leste. Mas por aqui a desgraça pode vir a ser a mesma. Os números, esses ingratos, dizem que os cidadãos estão cada vez mais afastados da política. E à medida que a idade desce, esse desinteresse aumenta. Um em cada quatro jovens não quer, pura e simplesmente, saber de política.

 

As pessoas estão afastadas dos políticos que os têm representado desde sempre. Qualquer dia também por cá o parlamento vai passar a ser conhecido como um senhor muito mau.

 

Uma coisa é evidente: existe pouca, ou nenhuma, reflexão política sobre como devemos enquadrar os jovens.

 

Por enquanto, os jovens não são despolitizados, não estão é interessados na política dominante. Daí as vitórias surpreendentes do Syriza, na Grécia, ou do Movimento 5 Estrelas, em Itália.

 

O triunfo de Berlusconi, Beppe Grillo e Trump representa a espetacularização da política. Boaventura Sousa Santos considera que tudo isso se fica a dever ao facto de a ideologia ter sido substituída por uma sociedade mediática.

 

Os cidadãos deixaram de acreditar nos partidos, na sua capacidade de conseguirem resolver os problemas concretos das pessoas. O politólogo Carlos Jalali defende que “não existe um alheamento da política”. Há, isso sim, “um alheamento das elites políticas” que resulta “de uma insatisfação com as opções partidárias e uma descrença com as políticas públicas”.

 

Depois lá está o dinheiro. Para o economista ultracatólico João Cesar das Neves, “os portugueses nascem convencidos de que todos os seus males se devem aos políticos ou aos ricos, em especial aos banqueiros. (…) Nunca podemos esquecer que vivem da boa vontade dos seus eleitores ou clientes.”

 

Talvez por conhecer os fariseus que conspurcam o Templo, o Papa Francisco veio pôr os pontos nos is: “O maior inimigo da Igreja é o dinheiro. (…) Santo Inácio ensina-nos: a riqueza começa a corromper a alma; depois é a vaidade – as bolas de sabão, com uma vida vaidosa, a aparência, a boa figura… Por fim, a soberba e o orgulho. Daqui derivam todos os pecados.”

 

O líder parlamentar do PS, Carlos César, vai em busca do Tentador disfarçado de dirigente partidário. Para ele é Passos Coelho, pois “parece tomado pelo diabo e não há exorcista, ou candidato a exorcista, seja ele Luís Montenegro, Santana Lopes ou Rui Rio, que lhe explique que não pode atacar toda a gente, (…) só porque o país está melhor.”

 

É caso para dizer, quem não quer ser mafarrico não lhe deve vestir a pele. O cronista João Pereira Coutinho avisa a navegação à vista do PSD: “Se esta semana ensinou alguma coisa a Passos Coelho foi a não fazer oposição com profecias. Até porque esperar que o diabo apareça é não conhecer as manhas do mafarrico.”

 

O ministro-adjunto Eduardo Cabrita veio porém evidenciar que talvez esteja possuído por alguma alma transviada, pois decidiu desresponsabilizar todos os autarcas das decisões financeiras que tomam. As eleições autárquicas estão aí à porta e por isso convém evitar alguns danos colaterais. 

 

Existe ainda uma outra elite que também tem a sua cota parte de responsabilidade na gestão da coisa pública. Estou a referir-me ao meio literário português; pois quase todo ele se alimenta da proximidade ao poder. Não podemos esquecer que um dos seus mais legítimos representantes foi até secretário de Estado do governo de PPC. Para bem da sua alma, ainda se arrependeu a tempo. O Padre Fontes deve tê-lo exorcizado.

 

O crítico e escritor João Pedro George, autor da biografia do ex-primeiro-ministro Mota Pinto, conhece bem as celebridades. Em entrevista referiu que uma das idiossincrasias do nosso meio literário é aceitar com grande dificuldade a crítica frontal, confundindo-a com maledicência, que não é o seu caso, “pois a maledicência é feita nas costas” e o João diz as coisas na frente. “É um meio profundamente hipócrita” – sublinha –, “pois à boca pequena dizem pessimamente uns dos outros e, depois, quando se ligam os microfones e os holofotes, são todos maravilhosos”.

 

Rentes de Carvalho, até porque está radicado lá fora, escreveu que “na Holanda vive-se sem necessidade de pedir favores, meter cunhas, pagar luvas. (…) Portugal dói-me. Outras vezes envergonha-me, enraivece-me, faz-me desesperar”.

 

Quem nos avisa nosso amigo é.

 

Também a mim me deu a mesma vontade de Hillary Clinton, de se “enrolar no sofá com um bom livro e nunca mais sair de casa”. 

 

Coitado do Obama. Que a melanina o não confunda.

22
Dez16

Poema Infinito (334): bem-me-quer

João Madureira

 

 

As mais velhas memórias são as que me abrasam o pensamento, lambem as casas e me impedem de ouvir os pássaros que se aninham dentro da minha almofada. Sinto a lua, a igreja, a imortalidade do céu, a beleza errante e despótica das borboletas. Reparo na fotografia dos mortos, na tarde que adormece, no tempo que me lembra a praia. Os ventos já não me sujeitam. A alegria, quando aparece, rápido se evapora. A tristeza ali está parada a olhar fixamente para mim. As geadas continuam a devorar os telhados. As leituras fazem-se agora de forma invertida. O tempo trespassa tudo. A minha imaginação hesita na escolha da porta por onde deve entrar. A infância implodiu. Os olhos nadam sobre o rio. Os beijos abrem a boca de sonolência. Observo as árvores e a sua dignidade. Engano-me nas estrelas. Sinto ainda dentro de mim a veneração dos frutos, os sinais doces da esperança, as brincadeiras no recreio da escola e os revólveres de plástico. Sobre a parede branca do fundo da sala vejo aparecer a imagem da minha mãe a fazer renda e tricô, a rezar o terço, a coser um botão na camisa do meu pai. O nó da gravata sempre me apertou o pescoço. Sinto os lábios secos. As pombas voam por cima dos lençóis. Já não consigo distinguir o bem do mal, as espadas das hóstias consagradas, os deuses dos homens das sotainas, o ruído das ambulâncias e dos carros do lixo, os néones da luz verde das janelas. Adormecem-me as pernas. O espelho reflete uma imagem febril. Vejo-me a ler a ternura das histórias, a decorar frases redentoras, a aquecer as mãos geladas pela neve no regaço quente da minha mãe. Nesse tempo, as meninas beijavam flores gregas, tinham poeira de estrelas nos cabelos, usavam sapatos brancos no dia da comunhão solene e pintavam os lábios com lápis de cor às escondidas. Havia também homens que se disfarçavam de bibliotecas. Eu imaginava espasmos e auras azuis em redor dos objetos. Alguns jovens, e muitos adultos, bailavam nas festas tradicionais. Eu desenhava círculos no ar e imaginava a circulação do pólen dentro das flores. Procurava saber onde se encontrava a fábrica da felicidade. Caíram então as primeiras gotas de orvalho dentro da minha boca. Deixei de acreditar nas respostas definitivas, nas mãos perfumadas, nas penas das asas dos anjos, na imensa excitação dos segredos, nas cartas de amor e nas despedidas. Tenho saudade dos campos, dos rios, das amoras, das cerejas e do orgulho dos animais. Do vento que soprava contra o meu rosto. De correr atrás das éguas e da sombra projetada pelos cestos das vindimas. De experimentar o ritmo da poesia na cadência do andamento das rodas dos comboios, de ler à luz dos candeeiros. Das bruxas que habitavam as aldeias, das rãs a coaxar na margem dos poços. Das portas altas da infância, da cor assustada das maçãs, das fatias de bolo quente, da manteiga a derreter-se na língua, das abelhas voando em torno dos bagos de uva mais doces, do cheiro agreste dos animais e do odor limpo dos sabonetes, de ver os peixes a nadar nas águas claras do riacho, de observar o reluzir da cor do azeite, das gaiolas com a portinha aberta, de confundir os pássaros com aviões, das ceias abençoadas pela minha avó, do cheiro inebriante da aguardente, da santidade da terra, de dormir em cama de fetos, do fogo lento da lareira, dos pequenos abraços, dos primeiros beijos, dos burros alados, dos cavalos, do elmo e da espada de pau e do choro convulsivo que tive quando alguém me fechou a porta na cara desfazendo o terço que o padre zé me tinha oferecido por ser o melhor aluno de religião e moral no ciclo preparatório. Ainda continuo a despetalar o mesmo malmequer…

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