Fogueira e potes - S. Sebastião - Dornelas
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Afasto-me das sombras e vou para ao pé de ti. A vida diz a verdade a quem lhe acena. Toda a herança se renova. O futuro nasce do passado, foi aí que alguém o semeou. As lembranças, por vezes, embebedam-se. E por isso estremecem como crianças. Lanço-te um sonho em forma de ponte. Alguém canta de mansinho o hino da esperança repleto de claridade. As formas levantam-se nítidas e anónimas. A verdade aumenta. O tempo dilui-se. No meio do caminho surgem sempre as dúvidas e as angústias. Há pessoas tão incorruptíveis como as pedras. Nascem como os bichos, mas possuem outra grandeza. A realidade senta-se todas as tardes no largo da aldeia. Os cedros acumulam a luz. Alguém faz o seu enxoval pensando na imortalidade do amor. Tece os tecidos com os fios da irrealidade. Apenas as traças são eternas. Deus não merece os homens e as mulheres que criou. Mesmo assim, os bichos lavram o chão e os homens cantam as virtudes divinas. A emoção que evidenciam possui a ânsia salgada do mar. O desejo contém a brevidade das flores desamparadas, a mesma inquietação humana. Por isso, os poetas gostam de abraçar as sombras dos castanheiros, a fantasia das viagens, a seiva que corre no tronco e nos ramos dos versos, a luz inscrita nos lençóis de linho, a rebeldia dos caminhos montanhosos, as raízes do inverno, a biografia dos corpos nus, a erudição e a paciência das mães, a tinta de que são feitos os fantasmas. Apenas os poetas conseguem ser os anfitriões da sua própria ausência. Apreciam ser testemunhas do presente no seu passado, deixar as marcas dos seus passos na neve e definir a ilusão da felicidade à medida que vão andando. Transportam dentro do coração pó de estrelas, os mistérios mais sombrios, imagens do início da criação, fragmentos do tempo que move as guerras, a perplexidade das épocas de pacificação, o brilho da espada branca da verdade e resquícios da beleza que resiste à eternidade. Já não se morre de sede nos caminhos. Neles voltam a crescer os passos e os ulmeiros. Os amieiros começam a nascer junto das novas fontes. As raparigas sorriem como se fossem rosas dos ventos e gritam aqui del rei e deixam-se namorar pelos cavaleiros da távola redonda. Adquirem o instinto desprevenido da sexualidade, dizem não e despem-se. E deitam-se. E deixam-se amar. E erguem os seios. E abrem as pernas. E latejam com o calor do desejo. E deixam que os seus ventres sejam semeados. Depois escutam as raízes a cantar e as linhas de água a correr e as veias do sexo a latejar. Sentem então a eternidade num momento e pensam que a vida é breve. Por fim adormecem e descansam e pensam e sonham com astros e a luz do sol que derrete a geada e a neve. Apercebem-se da alma das serras, da sua leveza e da sua frescura. Sonham que Cristo lhes há de transformar a água em vinho. Sentem-se a amadurecer como os frutos. Os seus corpos são como céus. Depois acordam. As giestas florescem nas encostas, as aves libertam-se de algumas penas, os sonhos descem pelos outeiros, as sombras deixam de ser mágicas. As raparigas, sempre elas, passam então a ser fiéis a quem lhes irá nascer. Enchem-se de imagens de ternura, aprendem a instintiva lição da criação. Olham para o passado e pensam no futuro. Os seus olhos são agora como janelas largas e altas, abertas a tudo o que vem de longe. Os seus rostos adquirem a serenidade das árvores de fruto. Os seus olhos choram, mas sem pranto. Pensam que a felicidade, por vezes, pode criar raízes. Deixam-se então possuir pela ânsia das mães.
A politóloga argentina Pia Mancini defende que uma das causas da apatia das pessoas em relação à política está ligada ao sistema, pois hoje em dia a democracia representativa preocupa-se exclusivamente com as relações dentro da corporação. Deixou de se centrar na educação dos cidadãos sobre a participação, o debate e a tomada de decisões. Qualquer projeto de lei é inacessível para quem não for advogado, “outra elite que luta para manter o status quo”.
Estamos tentados a pensar que quem manda verdadeiramente em Portugal, mais até do que as direções partidárias, são os lóbis constituídos e arregimentados pelos grandes escritórios de advogados sediados em Lisboa e que devem despachar o serviço em franca camaradagem com os principais ministérios.
Por isso é que triunfa o politicamente correto. José Rentes de Carvalho acha que se abateu A Ira de Deus sobre a Europa.
Numa entrevista à revista Sábado, refere que “não há espaço para todos na Europa”.
Na sua perspetiva, o politicamente correto vai ser a desgraça das sociedades ocidentais “porque é a negação de uma realidade e do espírito crítico, a busca de harmonias impossíveis, a exigência de nos pôr a todos a olhar para o mesmo lado, a marchar com o mesmo passo, a aceitar a mesma dieta sob pena de desagradarmos ao grupo”.
JRC não entra no caminho fácil da banalização do medo ao bárbaro ou do complexo de culpa do branco. Ele acha que o perigo está “nesta identificação ingénua com «os pobrezinhos», os infelizes, os deixados por conta no que já se pode chamar de Terceiro Mundo, por ser agora ofensivo”.
Parece que os bárbaros não demonstram lá “muito interesse pelo carinho que lhes querem dispensar, preferindo tomar nas mãos o próprio destino, segundo a sua religião e tradições, dispensando as modas de conduta vigentes em São Francisco, Berlim ou Amsterdão”.
Ou seja, os atentados na Europa estão a acabar com o politicamente correto. O Brexit e a ascensão dos partidos xenófobos e racistas são disso o sinal máximo. As pessoas estão cada dia mais intolerantes, quer seja em nome de Alá ou de Deus.
E é possível que a sacudidela que se aproxima não venha do lado da política, mas sim da economia. “A dura realidade da precisão de três refeições ao dia, o abrigo de um teto e roupa para vestir, não se condói com os sentimentos fictícios do Facebook.”
Não lhe parece que as populações estejam agora mais intolerantes. “Já o eram, mas dá ideia de que aos poucos irão deixando a apatia, descobrindo que de facto podem ter voto na matéria”.
O escritor português, radicado na Holanda, diz que observa sinais de que os muçulmanos e as multidões da África, que deixaram de ser pacíficas, definiram como objetivo colocar um ponto final na velha ordem ocidental. Por isso, “a Europa vai continuar a ser presa fácil do islão”.
De facto, aos muçulmanos sobra-lhes o que aos europeus falta: “Fé, orgulho no seu ideal, um sonho a realizar. A Europa aparenta ocupar-se mais com a superficialidade do dia a dia, as férias, o rock, o hedonismo, o que é de pouca valia como propósito na vida”.
Perguntaram-lhe se tem medo. Ele, lá do alto dos seus 86 anos respondeu que medo não tem, tem apenas tristeza, “porque num mundo em que parecem imensas as possibilidades de melhoria para todos, gastamos a vida e o tempo em inimizades, conflitos bárbaros, entretemo-nos com criancices”, fazendo passar a ilusão de que atualmente as pessoas não “envelhecem a caminho de alguma sabedoria”, evidenciando a tendência de retrocederem para o infantilismo.
Questionaram-no sobre a possibilidade de uma guerra de civilizações na Europa. Respondeu que se lho tivessem perguntado antes da guerra dos Balcãs (1991-2001), a sua resposta seria não. Hoje não arrisca previsões.
A noite desce sobre a nossa juventude. Dialogamos com a nossa voz de silêncio. As manhãs molham-nos os corpos. Uma espécie de chuva inútil desce do céu e cai em cima das árvores abertas. As suas folhas apreendem o segredo para atravessarem os rígidos meses de inverno. O sol ilumina o relógio da aldeia. As pessoas importantes passam na rua com as suas ideias latinas elevando os ombros, imitando as árvores, concorrendo com a inutilidade das coisas mais singelas, misturando-se e distinguindo-se na ocupação da capacidade real no adro da igreja. As crianças conformam-se com o espaço que lhes deixam, ocupam o seu interior, enchem as ruas, produzem novos gestos, penduram as palavras que lhes nascem nos lábios nos fios da eletricidade. A chuva serve de pretexto para a exibição dos olhares eternos, para definir a fronteira da infância. Ensinam-se os gestos exatos da submissão, do amor e da morte, a vida exata dos livros, a medida das cidades, a dimensão autêntica da erva de março, o aroma dos vestíbulos, a abertura genuína para entrar nas danças das crianças. Os patos selvagens fazem os seus ninhos junto ao rio. As montanhas definem o infinito da água. Tudo nos lembra o passado, a passagem das estações, o chiar dos carros de bois. E também os dias preenchidos de grandes problemas por resolver. Arredondamos o olhar com o que se passa à nossa volta. A realidade é muito antiga, vai de alfa a ómega exibindo o seu colar de palavras. Os caminhos por percorrer exibem as suas esquinas semeadas de arestas e juncos. O outono varre as palavras que nos caem das mãos. Já não há cuidado que lhes valha. Os anjos mais fortes sustêm as cúpulas do tempo. O templo da anunciação fechou as portas ao público. Nas aldeias ainda há espaço para os domingos, o sol ainda ilumina as casas e a água dos poços. No entanto, os espíritos dos mais velhos já deixaram cair os gládios. Junto ao rio apenas se escuta o silêncio. Jerusalém é nome de cidade, nós vivemos nos arredores de Jericó, numa aldeia com nome de Torre. Isso foi antes da fundação de Roma e depois do dilúvio. Nesse tempo choviam rosas e solidão. Ia jurar que outrora estive aqui. Lembro-me deste portão. Foi neste lugar onde terminou a minha infância. O olhar ainda me cabia dentro do rosto. Com os dedos das mãos cortava a luz. O sol fazia parte do nosso quotidiano. Esquecíamo-nos das palavras nos sítios mais inverosímeis. As vozes juntavam-se aos corpos e dançavam. A alegria pousava nas árvores junto aos pássaros. A nossa vontade definia a orientação dos ventos. Nos dias de chuva, a música sentava-se connosco no escano olhando as labaredas que desenhavam a lareira e a redondez dos potes. A beleza avançava resguardada pela minha esperança. Mesmo antes de te conhecer já sentia saudades tuas. Agora, as tardes de domingo avançam e desaparecem sem que se dê por elas. As mãos já não abrem e acariciam as searas. Os olhares estão embaciados. O tempo adquiriu a reclinação da história, os pássaros voam desamparados em direção ao céu refletido nos vidros das janelas fechadas. As avós limpam o pó das mesas enquanto olham para a televisão. Já não se abrem os lençóis da aurora, as tardes já não exibem o seu brilho rubro. Agora repreende-se o outono e diz-se mal do inverno. Venera-se o rosto inesgotável das primaveras de plástico. Acredito que se pode ver cair as folhas de outono e continuar a viver. Elas ajudam-me a recordar as minhas leituras mais antigas.
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