Ida para o campo
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Foi nos anos 80 e 90 que se assistiu a uma recuperação da onomástica tradicional, fenómeno que se alastrou a outras camadas socioeconómicas.
Em 2015 circulou no Facebook um texto intitulado «Devolvam o nome aos “betos!!!”». À primeira vista satírico, o apelo em defesa do classicismo dos nomes próprios insurge-se contra a denominada democratização a que os nomes de elite foram sujeitos, perdendo, dessa forma, os atributos distintivos.
Afinal parece que existe luta de classes na hora de escolher o nome dos filhos. A esquerda democratizou e banalizou a onomástica e a direita volta agora a apostar nos traços distintivos dos nomes de família com pedigree.
Aliás, convém não esquecer que num país dito sociologicamente de esquerda, num programa da RTP de 2007, Salazar foi escolhido pelos telespectadores, em votação democrática e muito participada, como “o maior português da História”.
É bem verdade que se pode dizer, como alguém o fez, que se pode tirar o homem da província, mas não a província do homem. Dentro de nós mora um salazarzinho acomodado e irónico que invocamos quando nos dá jeito. Otelo, o máximo capitão de Abril, chegou a desabafar que “precisamos de um homem honesto e inteligente como Salazar”.
Foi através do Independente e da Kapa que me apercebi que a direita urbana e sofisticada reivindicava para si um corpus de referências que também era meu: a banda desenhada de Corto Maltese, de Hugo Pratt; as obras de ficção científica de Phillip K. Dick, de onde surge um dos melhores filmes de sempre: Blade Runner; e as distopias pós-apocalípticas de Frank Herbert, autor de Dune, que também deu origem ao filme com o mesmo nome, onde participa como ator convidado Sting; ou a música de inspiração céltica, hoje tão em voga.
António Araújo, no seu livro Da Direita à Esquerda, lembra-nos que nos anos 80 a direita portuguesa, urbana e sofisticada, entra na movida lisboeta em convívio aberto com a esquerda, convergindo nos espaços de moda, na noite e no hedonismo de uma visão libertária em matéria de costumes.
Era uma “direita que era de esquerda”. Tal atitude foi um grande contributo para combater algo extremamente enraizado nos portugueses: a fronteira que separa a esquerda da direita, o tal esquema dicotómico maniqueísta que, bem vistas as coisas, costuma dar sempre a prevalência à esquerda.
Com a esquerda urbana a virar à direita, o catolicismo, predominantemente conservador, também fez o seu aggiornamento à esquerda, ou seja, tenta ser neutro. José Tolentino Mendonça, um dos nomes mais representativos de uma vivência do catolicismo despojada de conotações político-ideológicas vincadas, põe-se a poetizar como um leigo. E fá-lo com qualidade.
Aliás, a subversão desta dicotomia tem mesmo ocorrido ao mais alto nível da Igreja. Podemos mesmo perguntar: o Papa Francisco é de direita ou de esquerda?
Agora proliferam por aí os livros de análise e diagnóstico sobre a crise, com um cardápio sobre a bula terapêutica que nos prometem a cura, “como tirar Portugal da crise” (João Ferreira do Amaral), ou “resgatar o País” (José Gomes Ferreira). Todos eles com a fotografia dos autores na capa, conferindo a si próprios o estatuto de “intelectuais públicos”, estando nós em crer que serão mais públicos do que intelectuais.
Com a puta da crise ressurgiram com todo o esplendor as associações de apoio social e de voluntariado. Isabel Jonet, católica assumida, é a sua cara mais mediática. Todos nos lembramos das suas declarações como presidente do Banco Alimentar Contra a Fome: “Se não temos dinheiro para comer bifes todos os dias, não podemos comer bifes todos os dias”.
O Movimento Sem Emprego respondeu-lhe, a dado passo, numa carta: “A sua influência aumenta na proporção da miséria que nos vai impondo” e “sabemos que é rica e privilegiada e nunca falou de fome com a boca vazia”.
Nós não vamos tão longe. Estamos em crer que algumas vezes o fez, nomeadamente quando mastigou os tenros bifes de vaca dessa zona.
Fora o juízo dicotómico da polémica, uma coisa sabemos: há muita gente que vive da fome e da desgraça dos outros, tanto física como espiritualmente.
A investigadora Raquel Varela afirmou que a cruzada de Isabel Jonet lembrava as campanhas do Movimento Nacional Feminino.
Numa carta que dirigiu à senhora presidente Jonet dizia, entre outras verdades: “As tropas de famintos são uma mina de ouro para as instituições que vivem à sombra do Estado a gerir a caridade”, pois a “caridade usa a fome como arma política”.
Possuo dentro de mim uma aldeia teórica. E mamífera. Durmo dentro dela nas horas perigosas. Nas várias porções do sono vou aumentando o meu vocabulário. A vida constrói-se quase sempre em volta de uma argumentação absurda. A felicidade é uma espécie de santa traição. A sua memória define-se pela dessincronização alegre do silêncio. A vida habita no seu condomínio fechado com saudades da velha casa do campo. A minha alegria é camponesa, guarda as cores dos montes, rejeita os ódios pacíficos, a perfeição da espera e as vinganças. Desço sempre os degraus um a um. Esse é o meu exercício intelectual mais rigoroso. O pensamento é tão transparente como o ar. Talvez um pouco mais espesso. As crianças procuram nos balões coloridos a ambiguidade da sua origem. Cada dia as formigas trabalham mais, imbuídas da sua utilidade divina. Acreditam em milagres e nas hierarquias. Acreditam no progresso e na sua representação. Os deuses estão cada vez mais preguiçosos. A ociosidade faz-lhes mal. Torna-os inúteis e obesos. Os homens já não possuem destino. Não conseguem chegar a tempo, não conseguem definir o seu ponto de partida, as suas influências, o seu saber. Os seus caminhos são incertos. As suas horas estão repletas de enganos. Deixam as suas próprias armadilhas a descoberto. O seu olhar já não possui coragem, mesmo que disfarçada. Os seus movimentos mais destemidos assemelham-se às fugas. Mergulham no mar mesmo sem saber nadar. Tremem-lhes as mãos, escondem as suas qualidades, perdem, pouco a pouco, o erotismo, afastam a sedução. As suas emoções são traídas pelo método, pela distância das evidências. No entanto, ainda há homens tão destemidos que conseguem chegar sempre a tempo, sabem procurar as horas e perguntar pelo seu caminho, escolhem o próprio destino. A sua felicidade não tem enganos. Sabem acompanhar as decisões dos místicos, evitar os efeitos maléficos do medo, desviar-se das ilusões óticas. Pensam o mundo sem mudar de rosto, através da fisionomia dócil da música sacra. Observam e estudam os processos mecânicos da corrupção. Não existem multidões sinceras. Procuram as alegrias íntimas no meio dos míscaros, associam as partículas interiores da saudade, excitam a beleza com os dedos em júbilo, escrevem manuais de sobrevivência para as vítimas das grandes quedas. Sabem que a melhor alegria é a espiritual. Aprenderam que no céu os deuses patéticos não saltam muros, que os deuses do amor roubam os beijos, que as fronteiras são os limites materiais da traição e que os órgãos que produzem a alegria são os mesmos que originam a tristeza, apesar do seu temperamento opositivo. Sabem ainda que os tribunais humanos não conseguem desenhar linhas retas, que apenas alcançam somar o peso das circunstâncias às decisões unívocas. Os seus relógios apenas medem o tempo qualitativo. Volto a encher a casa de pormenores, a guardar algum espaço para a beleza, a colocar os bons exemplos nos seus postos de vigia. A beleza apenas existe naquilo que é olhado. Continuo a guardar os rebanhos lentos da impaciência. A matéria possui o seu próprio futuro. A memória tem futuro porque os deuses protegem o passado e as suas evidências, apesar de a sua alegria ser eficazmente domesticada. Os deuses são de uma ineficácia extrema. As crenças exigem eternamente uma viagem interior. Os heróis perdem-se sempre no labirinto do seu orgulho.
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