Sorriso
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Oiço o eco da tua figura interna. No entanto, os lábios mantêm a mesma inocência. Olhamo-nos no espelho do deslumbramento. Imaginamos tudo aquilo que é verdade. O caminho das emoções está repleto de riscos. Os cuidados são sempre intuitivos. Quem não quer nada enfeita-se de palavras. Ouvimos o silêncio. A cidade inteira estremece. A casa está cheia de luz. Estamos no caminho certo, já não nos afligimos por não entender. É o brinquedo quem atualmente brinca connosco. O mundo é agora automático, cheio de responsabilidades, necessariamente lógico, com sustos criteriosamente estudados, com alegrias programadas e apropriadas, com mapas precisos, cheio de grandes nostalgias inalcançáveis, repleto de acasos, feito com a pressa dos cientistas. A beleza é mais breve e acessível. Os grandes discursos confundem-se com os lugares-comuns. Todos cumprimos com a função do raciocínio, com a necessidade da missão, com a inteligência que preside à dinâmica de grupos. Continuamos a lutar contra os preconceitos. Os destinos são quase imediatos. Transformamo-nos na própria esperança da alegria. O tempo torna-se indefinido, escorre-nos pelo corpo. A dificuldade também gera felicidade. Os hábitos ajudam-nos a amortecer as quedas. Sabemos que o futuro é sempre feito de movimentos caóticos, que a inquietação é endémica, que as novas primaveras correrão ao sabor das máquinas. Os néscios sorriem com a idiotice dos anjos. Está para chegar o vento carregado de tepidez e de lembranças indivisas. Os seus ecos são mornos. Prolongam-se as promessas, a alegria primaveril é líquida, os seus frutos serão enormes, suculentos, cheios da sabedoria dos bichos. A tua delicadeza parece-me infinita. Vou comemorar o Dia dos Analfabetos. Talvez a loucura tenha uma explicação plausível, por isso é que por vezes amanhecemos carregados de cólera, pensando na forma de agradar aos outros e de ler o mundo, de esperar pelos milagres, de temer que volte o dilúvio. Os dedos revelam as flores no papel, abrem a claridade, separam a brisa das folhas, escrevem hinos de meditação e esboçam planos novos. Nas colinas aparecem faunos modernos assustando os sonhos das cabras. Na primavera não existe piedade. O tempo começa a derreter. As conversas ficam mais cansadas. Por vezes abrigamo-nos na escuridão. A nostalgia torna as árvores mais frondosas. O medo fica mais vertical, as dúvidas ficam mais tépidas, a fronteira entre o bem e o mal fica mais definida. A sabedoria corre na direção dos ventos, orientando-se pelo instinto, amarrando o diabo à sua linha vermelha. É estranho dizerem que a inocência é natural. A razão faz parte dos corações indiretos. Por isso, a arte é um misto de lucidez e instinto. Por isso, eu me costumo encontrar na hora da despedida, dando-me conta do trabalho que dá a vida quotidiana, que o sucesso surge depois das atrapalhações e que são sempre prematuros os gestos simbólicos. Eu vejo a aflição a emergir nos poemas, as vinganças a tornarem-se injustas, o alívio a esgotar as lágrimas, o respeito a transformar-se em fraqueza, a comoção a ficar inútil. Eu sou um homem que chora. A manhã arrumará a angústia num canto da sala. Chegou o tempo de geminar as horas, de inventar outra espécie de música, de estudar o infinito. Calo-me. Olho de frente para o perigo e penso: agora sou do domínio público. A liberdade não pede licença a ninguém.
Depois da Guerra Fria, os seus silenciosos heróis passaram à clandestinidade na mesma sociedade que protegeram. Talvez se sintam agora dissidentes. Quase como estrangeiros no seu próprio país.
Antigamente nem sequer eram recebidos nas divisões das traseiras. Agora acomodaram-se às pessoas e às situações.
Talvez ensinem em universidades onde lhes é dedicada alguma atenção, que será seguida de alguma confiança e é até provável que gozem de algum apoio.
Dizem o que as outras pessoas disseram antes delas: Quem pode, faz; quem não sabe, ensina.
Perderam a sua utilidade, a sua unidade e o seu objetivo, porque viram demasiado, omitiram demasiado e conciliaram demasiado.
Mas será que alguma vez o desespero e a pobreza humana constituíram séria preocupação para alguma nação rica? Estou em crer que não. Mas eu sou um incréu, não posso servir de exemplo.
Habituei-me a misturar o tremendamente sério com o tremendamente frívolo, tentando fazer com que a diferença entre um e outro seja pequena. Faz parte do manual de sobrevivência em sociedade.
Aprendi a libertar-me do medo porque sei que as pessoas medrosas nunca aprendem.
A maioria das vezes não se ganha. O outro lado é que simplesmente perde. Os conflitos ideológicos, em vez de nos libertarem, reprimiram-nos. A guerra, que diziam fria, terminou. Pelo menos é isso que dizem. O que importa é a esperança.
De uma coisa me arrependo, do tempo e das capacidades que desperdiçámos, para nada.
Fingíamos que as coisas não existiam, ou então fingíamos que não eram importantes. Era esse o manual de sobrevivência de um revolucionário.
Nunca é com a mentira que vamos derrotar os mentirosos.
Sei agora que do lado de lá, onde estavam os putativos amigos, mentiam para esconder o seu mau sistema. Do lado de cá também nos mentiam para esconder as supostas verdades.
Falavam do respeito pelo individuo, do amor à diversidade e à discussão, na crença de que só se pode governar justamente com o consentimento dos governados. E enalteciam a nossa capacidade de ver o ponto de vista dos outros – sobretudo nos países que explorámos, quase até ao aniquilamento, para os nossos próprios objetivos.
Em defesa de uma suposta retidão ideológica, enchemo-nos de uma compaixão deífica, a raiar a indiferença.
Apesar das ladainhas ocidentais, é ainda onde nos encontramos. Na indiferença estratégica.
Aparentando o contrário, a nossa sociedade continua a proteger os fortes contra os fracos. Apenas aperfeiçoámos a arte da mentira pública.
Horace Walpole escreveu que “este mundo é uma comédia para os que pensam e uma tragédia para os que sentem”.
Por isso é que, salvo raros momentos, o nosso presente é uma comédia e o nosso passado foi uma tragédia.
Por incrível que possa parecer, dizer não é sempre mais fácil do que dizer sim. Deixar de sentir não é deixar de existir. Além disso, a filosofia tem de servir para alguma coisa.
Também eu teimei durante algum tempo em ser, ou parecer, conservador. Mas que diabo é que existe por aí de bom que se possa conservar?
Eu sei que a vida ou é uma busca ou não é nada. Mas, convenhamos, não é com o aproximar da idade da reforma que uma pessoa se deve disponibilizar a vaguear perdido e a dar voltas à cabeça sobre a maneira de reinventar a humanidade.
Agora compreendo, depois de muito estudar a multiculturalidade e os seus apóstolos,
a razão porque tanto os cambojanos como os tailandeses apostam grossa maquia no número de vezes que uma rã vai arrotar.
É com a chegada do verão que se escuta o frenético tagarelar dos insetos.
Nunca sabemos como tudo começa. Lembramo-nos apenas de uma certa forma de cegueira. Como quem fixa o olhar nas sombras. Depois levantamo-nos pelas manhãs e reparamos na direção a tomar. Exageramos sempre mais um pouco nos princípios. Fiamo-nos nas memórias. Sufocamos dentro dos fatos, enrodilhados dentro da música. Brincávamos a bem e a mal. Gostávamos do pão doce e dos mimos. Evitávamos a velhice e o sal do suor e das lágrimas. Fugíamos dos invernos e dos desgostos. A infância apertava-nos o coração. É áspera a solidão. A espessura da vida confere peso ao conhecimento. Distinguimos as sereias e as estrelas mortas. As distâncias são vagas. As cores perdem nitidez. O tempo continua a irradiar a sua eterna ameaça. Não se cansa. Demoramos a olhá-lo. Por vezes parece uma caixa chinesa, ou um relógio apressado. A sala ficou deserta. A poesia é efémera. Movemo-nos num jogo indistinto de sombras. A caligrafia tornou-se preguiçosa. As frases estão cada vez mais descontínuas. Por vezes apanhamos o rasto da memória e sorrimos. O passado é um enigma. Enquanto passeávamos levantou-se um pouco de vento. Falámos de Zaratustra, como se tivesse importância. Sabemos que as coisas ficam sempre mais vagas, que os sonhos são viciosos, que os medos são sempre interiores. Os animais atravessam sempre as sombras sem se assustarem. Admitimos os corpos e apaixonamo-nos pela sua vulgaridade. Inventamos então pretextos e desgostos e caminhos de acesso. As alucinações iludem sempre os outros. Entendemos o conhecimento e o medo que provoca. E as almas longas. E também os desejos. Distendemos então o corpo ao sol. O jardim tingiu-se de tons sujos. O casario em redor provoca dor. Em volta parece só haver deserto. O azul do céu continua estonteante. Talvez eu tenha já esquecido o caminho de casa. Sigo o rumo das aproximações, imitando os círculos num tenteio de pássaro. Dos lados dos caminhos crescem as giestas. Nas cortes, as vacas ruminam. Sente-se um cheiro a feno. O estranho é não haver gritos de crianças. As árvores parecem pesadas, feitas de bronze e abandono. O ar mal estremece. Tudo parece arder por dentro. As flores pontilham as bermas de alguma exuberância. Os olhares por detrás das janelas são sombrios, quase hostis. Avisto com alívio a casa ao longe. Por perto, ainda crescem malmequeres e algumas couves. A prudência e a paciência sempre a habitaram. Reconheço-a pela sua secreta identidade e porque me consegue devolver alguns prazeres da infância. A imagem da minha avó começa a tremer dentro da sua nitidez. O mundo era então feito de remendos e buracos. E pequenas aflições. Num pequeno banco continua sentada a imagem densa do meu avô. Sério na sua doença. Manco no seu amor. Escondendo dentro de si açudes e medos. E as cartas que nunca conseguiu escrever desde Angola. A minha avó descansa aconchegada pela sua serventia e pelo seu asseio. Repete certas palavras várias vezes para que ganhem algum valor. Sorri como se fosse um pormenor, mexendo ao mesmo tempo as mãos como se tivesse a ideia perfeita do contentamento. Sinto novamente o fascínio da febre e da beleza. A sua ausência desliza sobre as paredes e as telhas da casa. A sua recordação parece uma memória atravessada pelo brilho da desarticulação. Alguém estende o medo em cima dos lençóis de linho com que compõe a cama. A casa faz imaginar os cheiros. A poeira e as horas são mais delicadas. Sinto o ar a vibrar. Algo brilha no escuro e desaparece como se fosse um inseto. Nunca sabemos onde tudo acaba.
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