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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

10
Ago17

O poema infinito

João Madureira

 

 

 

Existe qualquer coisa esquecida no teu rosto que se inclina sobre a penumbra da força da tristeza. Dizes: esqueço facilmente os nomes silenciosos da virtude. A manhã rompe em brasa sobre o rumor da terra violenta. A tarde, quando chega, vem literalmente cercada de lágrimas ardentes de confusão. O meu rosto perde-se na noite parada. Lá estão inteiras nos teus olhos as arcadas de fogo e as pontes e o frio e o tumulto do desejo e a inspiração misteriosa e os espinhos e o calor e o degelo e o sexo repleto de inspirações misteriosas. E as mãos. Lá estão as mãos expostas com o coração a cobrir-se de sentido. E a forma das mãos e do sexo e do fogo. Lá estão as distâncias infinitas das palavras adormecidas. E os braços e os gritos dos algozes. Lá estás tu agitada pelo sentido inacessível dos corpos. Choras num balanço violento de espasmos enquanto as crianças gritam por dentro das nuvens purificadas da infância que irão perder. As folhas mortas descobrem a memória errante da glória. A tua boca orvalha-se vítima do desejo invasor do sangue. As tuas mãos são a minha casa. O teu sexo humedece abrindo as suas escadas de intimidade. Estou universalmente só à tua procura. As manhãs líricas cantam as palavras transfiguradas. O sangue atravessa a noite na angústia do amor. São estes os primeiros sinais dos beijos loucos e desinquietos que dormirão na tua boca. Nascem formas sobre as flores murchas de Outono. O beijo traidor do tempo aumenta a aliança com a morte. As catedrais das montanhas acariciam-te a face da solidão. O sangue atravessa o sopro alucinado do perdão. Batem as palavras à porta da madrugada. A manhã começa a dispersar a luz do teu sorriso. Perdoa-me o poema… perdoa-me… existe qualquer coisa que se inclina no teu rosto…

07
Ago17

Como se escreve um haiku

João Madureira

 

 

Tenho uma vida tão ocupada, mas gosto tanto de poesia, que a leio em voz alta enfiado no carro enquanto as escovas cilíndricas da lavagem automática fazem o seu serviço. Leio Herberto Helder, Al Berto, António Ramos Rosa, Fernando Echevarría, Fernando Pessoa, etc., tendo como música de fundo os sons mecânicos da estrutura metálica que vai e vem fazendo chuva e depois insiste novamente soprando forte ventania na chapa metálica do meu bólide. Pode não parecer logo à primeira vista, mas um carro a brilhar também tem a sua poesia.

 

Mas não é de lavagens automáticas que vos quero falar hoje. A bem dizer hoje não sei bem do que vos quero falar. E seguramente também não é do meu carro. Podia falar-vos de política, mas não tenho vontade. O que por aí abunda mais são comentaristas políticos, chorões e aldrabões. As televisões estão cheias deles. Há muito quem comente e pouco quem faça. E nas lavagens automáticas também se comenta muita coisa, mas faz-se pouco. São as máquinas quem faz o trabalho árduo. E essas possuem a rara virtude de nada comentarem. Limitam-se a fazer o seu serviço com qualidade. Nas estações de serviço comenta-se o futebol, o preço da gasolina e o tempo. Podemos mesmo dizer que Portugal é um país de comentaristas e pessoas que lavam os seus carros nas lavagens automáticas.

 

As pessoas que vão às estações de serviço gostam muito de comer bolos e beber café. Gostam especialmente de natas, mas também se deleitam com queijadas, croissants, madalenas ou bolas de berlim. As pessoas quando comem, sobretudo bolos, ou bolachas, ou torradas sem manteiga, também têm muita poesia. Especialmente as que comem muito e não engordam. Essas são pessoas afortunadas. Por isso podem ler poesia à vontade pois não lhes provoca efeitos secundários. Não sei se sabem, mas a poesia provoca muitos efeitos secundários. Sobretudo a boa. A outra dá ressaca ou provoca azia.

 

Quando vou a uma lavagem automática, por vezes ponho a música alto para experimentar o som da aparelhagem do meu bólide. E ela tem um som que inebria. Eu comprei o meu bólide, que é um carro sport cheio de genica, por causa, sobretudo, da aparelhagem. Aquela aparelhagem tem muita poesia, é a modos que um poema do Al Berto repleto de vitalidade e sublimação. Depois também gosto de contemplar as gotas de água a deslizar pelo vidro traseiro do meu bólide. Muitas vezes pego na minha Nikon de bolso e fotografo o vidro pejado de linhas sinuosas desenhadas pelas gotas de água sopradas pela maquineta.

 

A minha Nikon de bolso também tem muita poesia. Comparo-a aos poemas haiku. E aqui vos deixo um de minha autoria: No carro sujo / a água / escreve. E é disto que hoje vos vou falar, da poesia haiku e da nobre arte de a escrever.

 

À primeira vista o poema de apenas três versos parece pequeno. E é pequeno. Todos os poemas haiku são pequenos. Têm todos apenas três versos. Mas isso não quer dizer que não dêem muito trabalho a escrever. A poesia é um trabalho árduo. O seu resultado pode parecer singelo, mas não é. Chamo no entanto a vossa atenção para o facto de que o que a seguir se dá conta pode ser o resultado (e foi) de muito mais trabalho do que aquilo que parece. Posso dizer-vos, sem comprometer a minha discrição, que fiz dezasseis cortes, dois acrescentos e cinco revisões.

 

Agora, se estão dispostos à explicação, façam o favor de me seguir. Para escrever o meu haiku comecei por: O meu carro preto e sujo / quando está na lavagem automática a apanhar com a água / fica como se tivesse sido escrito. Convenhamos que assim não fica lá grande coisa. É muito extenso. Há palavras a mais em todos os versos. Então temos de o trabalhar.

 

Desfazemo-nos logo no primeiro verso do pronome possessivo e do primeiro adjectivo, pois os  dados relativos ao proprietário da viatura e à sua cor (não a cor da proprietário, bien sur, mas sim a do bólide) não interessam ao leitor, nem importam à qualidade do poema, nem aproveitam à excelência da linguagem poética, por isso vão fora. O primeiro verso fica então: O carro sujo

 

No segundo verso decido-me por um corte radical (ou melhor será dizer, uma barrela) e fica apenas o nome final que é o elemento fundamental. Então ficamos apenas, e só, com o artigo definido e o nome: a água… Mais um pouco e era harakiri (腹切り) puro, ou Seppuku (切腹). Mas a arte está em saber o que cortar e quando parar.

 

Relativamente ao terceiro verso decido-me mesmo pelo Seppuku (切腹), ou harakiri (腹切り), por isso vai todo à vida e substituo-o pela forma verbal escreve. Sendo assim temos: O carro sujo / a água / escreve.

 

Ficando deste modo, o artigo definido “o” do primeiro verso tem de ser combinado com a preposição “em” para dar lugar ao locativo “no”.

 

Sendo assim, a versão final fica desta forma: No carro sujo / a água / escreve. 

 

Podem os amigos leitores comentar que o único adjectivo também podia ir à vida. E até podia, sim senhor. Mas para a água escrever algo que se veja, o carro, na minha perspectiva, tem de estar sujo. E essa foi a razão porque deixei na terceira posição o adjectivo a adjectivar o que tinha de ser devidamente adjectivado.

 

E por hoje é tudo. 

03
Ago17

Poema Infinito (366): A identificação do sacrifício

João Madureira

 

 

Perdemo-nos no palheiro do tempo à procura da agulha com que se coseu o sentido da vida. Por ali anda o cheiro da meninice e a sombra da mocidade, cobrindo por vezes o sol ou trazendo a claridade. A imagem do momento é já outro local. Os teus olhos são tentadores. Os meus pedem água porque adivinham a tua exaltação. A terra é possessiva e os rios correm como versos lentos. A saudade está agora emoldurada como se fosse um retrato imenso. Rima a saudade com a semelhança. Reproduzo o gosto de ser criança. Mas as imagens mudaram. As sementes puras são repentinas. Os profetas anunciam novos dias, um tempo renovado, são como as rotinas do sol pousando sobre as colinas. Acordamos de um sono paciente tentando futurar o alvorecer. A serenidade continua inquieta. O nosso salvamento germinará dessa forma de imprecisão, dessa proximidade com a alvorada, dessa luz construída sobre os abismos. A esperança é fiel à consciência, à paixão temerária do passado. Veste-nos o sol com um limbo de candura e júbilo. O rasto do dia de amanhã foi encontrado hoje. A voz dos pássaros quebra o silêncio da claridade. Os versos parecem condenados ao purgatório à espera da purificação de serem ouvidos. Alguém canta dentro da memória. Os meninos afinam as suas imagens rústicas. Olhamos para o poente, a tarde sorri de forma aberta, os nossos sexos foram de novo sacramentados. As horas parecem distraídas, adivinhando a solidão da noite, o seu desassossego, a sua eternidade parada. No jardim aberto à luz da vida crescem flores de infância, rostos cândidos, destinos recuados, jogos da cabra-cega, adorações subversivas, ervas da inquietação, folhas do tempo, flores do perdão, negativos fotográficos, arbustos de claridade, mitos, amores perdidos, vontades embriagadas, portas de evasão, vegetais de rebeldia, novos pecados originais, versos amargos, árvores de pesadelo, momentos perdidos, expressões instintivas, flores de recusa, sínteses, exatidões, raros momentos de inspiração, arvorezinhas da impaciência, versos de fantasia e inutilidade, flores de outros anos e milagres de imaginação. Nos templos moram agora os heréticos iluminados, deusas do amor pornográfico e anjos indiretos. Os animais no paraíso morrem de fome e sede e de falta de vontade. São possuídos pela raiva das paisagens, pelos comportamentos vigilantes. Adão e Eva confundem tudo: o bem e o mal, o instinto e a razão, a verdade e a mentira, Deus e o Demónio, a normalidade e a loucura, a pureza e a dissolução. E celebram os deuses sublimados. No entanto, sofrem a vida sem horizontes, os gritos apertados, a solidão, a forma negativa de benevolência, o infiel amor de Deus. Depois desesperam. E contam fábulas famosas e moralizadoras em verso e em prosa. Toda a gente os acha inteligentes porque fixam os nomes, cantam a fartura e dizem conseguir ouvir os segredos divinos. O sono que antecede a eternidade navega num mar de tempo parado. Na floresta corre uma ligeira brisa, a tarde ondula na sua calma, na ramagem de algumas árvores crescem de forma invisível poemas e silêncios. E evidências. A solidão continua pendurada nos ramos mais altos dos carvalhos. Os pássaros começam a perder os seus nomes. As horas prendem-se umas nas outras pensando que vão morrer. Cristo foi uma vez mais identificado dentro da sua via-sacra, mordido pelo beijo de Judas e pelo chicote do soldado romano. O povo que diz amá-lo reinicia o seu prenúncio de lamento. O céu é, afinal, um abismo de pecadores.

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