Louvre - Vermeer
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A existência exige palavras discretas, como se tivéssemos vontade de fechar um círculo, como se uníssemos as extremidades de um poema, como se girássemos de corpo inteiro sobre nós próprios. Regressámos sempre de uma viagem sem percebermos bem o contorno dos nossos movimentos. As nossas horas chegam ao fim exaustas. Nós apoiamo-nos no muro para as segurarmos. Os problemas iniciam-se nos seus distintos aspetos sucessivos, voltam sempre ao fim da tarde, intervalados pela sucessão da partida, levantando as âncoras do mar do desespero. Os vários atos formam um conjunto de culpas. O silêncio regressa. O infinito dos espaços organiza uma nova teoria do universo. O divino define-se dentro da sua própria convicção. A sua indecisão é aparente. A luz do tempo vibra no frio, os reflexos repartem-se pelas folhas do outono e espalham-se pelos nossos olhos. As nuvens recortam o céu. A chuva acalma as marés. Toda a matéria contamina a vida. A razão das árvores nasce dentro dos frutos. A memória invoca-nos com o mesmo tom de voz, com o mesmo ideal poético. Pela janela aberta entra o vento norte arrastando atrás de si a sua solidão irremediável. Fecho o livro antes de fechar a janela. A madrugada começou de véspera. A sua claridade baça anuncia o frio. Sentamo-nos no chão de madeira velha como se não existisse mais ninguém no mundo. Os sonhos acontecem-nos de forma orgânica. A pele dos nossos corpos parece veludo arrepiado. Os nossos dedos hesitam nos gestos. A esperança dura o tempo da aparência. O canto das aves anuncia o mecanismo subtil da fragmentação. O excesso de densidade cromática segmenta a luz. Incomoda-me o conceito da simplicidade da alma. O seu perfil poético continua amargo. Os meses mais tardios ardem como florestas de pinho e eucalipto. Os corpos aflitos encaminham-se para a morte, abrasam-se nas largas margens da loucura. Os sobreviventes mais afetados nunca mais vão conseguir acender o lume. O inferno cabe por inteiro dentro de uma caixa de fósforos. O desespero visitou a cidade, bebeu vinho nas tabernas e encostou-se às chapas metálicas para afastar de si a ideia de combustão. Acalma-se quando ouve o barulho da água. Conhece de cor o violento sabor das vigílias, as noites que voltam do frio, o vento que varre os espíritos e agita os ramos altos dos ciprestes, os rostos iluminados pelo álcool, o brilho das cinzas, o nome escuro das lápides, a anunciação subterrânea das catástrofes, o riso colérico dos bichos, a frieza dos ossos, a brevidade dos corpos e as circunstâncias insólitas do Juízo Final. Os traços dos rostos vão-se modificando aos poucos. E também as vozes. Os estudos biográficos mudam o íntimo da afetividade. Com a idade, tudo se torna mais interior. Até o brilho dos teus olhos se dissipa. Nós ardemos dentro das dúvidas. A razão e a loucura possuem uma dupla distância. Agora, as tempestades nascem já com grandes braços. Os filhos pródigos deixaram de ser abençoados. Atualmente são um fardo pesado. Todos nós sofremos de uma indecisão original. O vazio vem do centro. O campo enche-se de pequenos barulhos, a luz, novamente clara, entra pela janela. Fragmentos de tempo são impressos nas flores. O jardim está frio e húmido. O céu encheu-se de um brilho sobrenatural. Os viajantes continuam a errar pelos caminhos. A curiosidade do desejo cresce nos lábios. Oiço ao longe a nitidez da tua voz. Espero, e anseio, os teus gestos coloridos de aproximação.
Há um provérbio haúça que diz: “Quando muda a música, muda a dança.”
Olho para o meu telemóvel e reparo que estive cerca de 48 horas desligado. Cogito cá para os meus botões que este é um dos modernos grandes exemplos de estoicismo individual e de resistência moral do século XXI.
Penso então na necessidade. A experiência diz-me que ela é um enorme armazém capaz de albergar uma quantidade notável de crueldade.
Antigamente, os homens de letras trocavam entre si ditos espirituosos e diziam-se amigos. Agora remoncam uns com os outros através de sinais de computador. O sucesso do vizinho é a modos como uma alfinetada no ego do escritor solitário.
Afinal qual é a motivação pessoal para escrever? Satisfação pessoal? Compensação financeira? Reconhecimento público? Vontade de comunicar?
Compensação financeira, no meu caso pessoal, não é de certeza, pois já tinha desistido há muito. A necessidade de sobrevivência tinha feito crescer em mim o monstro das pequenas necessidades.
O facto de a arte ser o oposto do negócio, não significa que viva fora da sua influência. E este é o drama de quem vive e escreve na província.
Comunicar é mesmo uma vontade. Mas não é a única.
A satisfação pessoal na escrita é intermitente, como a luz dos semáforos.
E o reconhecimento público é uma treta que faz parte do jogo de espelhos que é viver em sociedade.
Por isso há quem escreva sobre extraterrestres, as suas memórias em estilo adolescente ou escreva livros desinteressantes para crianças. Há ainda romances de má qualidade sobre gente rica escritos por gente pobre, poesia confessional, romances de má qualidade sobre gente pobre escritos por gente rica e, ainda, romances de denúncia da corrupção das indústrias obscuras que se fazem passar por necessidades oportunas.
Os literatos que se armam, no entanto, não se cansam de sentenciar: “O que é preciso é escrever coisas intemporais.”
No entanto, tudo é uma questão de adaptação. Eu passo a ilustrar esta minha exegese socorrendo-me de uma passagem do livro de David Leavitt (Martin Bauman; ou Uma Presa Segura), que é um romance disfarçadamente gay, escrito por um escritor rico sobre gente rica que tenta nadar no mundo atribulado da literatura nova-iorquina:
“Foi aí que lhe confessei, numa quinta-feira à noite, que era gay. Ela permaneceu muda e queda.
– Mas aposto que não há gays judeus ortodoxos, pois não? – perguntei, em tom de desafio.
– Claro que há.
– E como é que conciliam a sua vida sexual com a religião?
– Bem – explicou Sara –, aqueles que eu conheço, como as escrituras dizem que não se podem deitar com outro homem, fazem-no de pé.
A ingenuidade com que ela descreveu isto – uma ingenuidade que era ao mesmo tempo judia e gay – deu-me vontade de rir. Assim se firmou a nossa amizade.”
A mim também me deu vontade de rir. E em plena leitura. Ele há gostos e feitios para tudo. E soluções também. Menos para a morte, como bem diz o nosso povo.
Nos estudos feitos para as investigações de doutoramento, existe nas perguntas de escolha múltipla, além das várias alíneas, uma outra que é isso mesmo – a outra. E que geralmente nos pedem para desenvolver.
Ora, bem vistas as coisas, eu escrevo pela outra razão que não vem no questionário. E o desenvolvimento é este mesmo. Só faz falta que o amigo leitor faça o favor de recomeçar a ler tudo desde o princípio e se, mesmo assim, não atinar com a resposta, tentar de novo.
Eu não sei bem porque escrevo, mas sei que continuo a tentar todos os dias compreender o diabo da razão. E a escrever. Todos os dias. A escrever.
Em verdade… em verdade vos digo: A dita sabedoria social não passa de hipocrisia.
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