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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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20
Nov17

368 - Pérolas e diamantes: 1917 – Revolução ou Contrarrevolução?

João Madureira

 

 

A revolução russa continua a significar o derrube de um regime decadente, obscurantista e retrógrado, caraterizado essencialmente pela servidão abjeta do mundo rural e também pela exploração das classes trabalhadoras urbanas. Materializou as esperanças dos deserdados da terra e transmitiu ânimo a todos aqueles que pelo mundo fora ansiavam e lutavam pela transformação social apregoada pelos filósofos e pelos revolucionários socialistas e anarquistas, desde a denominada Primavera dos Povos e a publicação do Manifesto Comunista, em 1848, a que se seguiu a Comuna de Paris, em 1871.

 

Mas foi a própria realidade que começou por contrariar as teses de Karl Marx sobre a putativa revolução, pois não ocorreu nos países mais avançados, como o Reino Unido, a França ou a Alemanha, mas num país atrasado, quer do ponto de vista social ou  industrial: o Império Russo.

 

Marx afirmou que “as revoluções são as locomotivas da História”, coisa em que acreditei na minha juventude, mas atualmente inclino-me mais para a tese de Alexandre Chubine (professor de História e investigador do Instituto de História Universal e da Academia de Ciências da Rússia) e que é uma analogia interessante, de que “as revoluções são arietes da História”, pois “a revolução não funciona como uma locomotiva mas antes como um martelo-pilão que derruba os obstáculos que impedem o seu avanço”.

 

Segundo Chubine, Lenine, apercebendo-se da crescente crise económica e social que alastrava na Rússia, defendeu de imediato, não reformas, mas uma transformação radical. Para o professor de História russo, a razão do aparecimento de Lenine deveu-se ao facto de todos os outros lhe terem cedido o lugar, porque estavam à espera da assembleia constituinte.

 

Assim, a conclusão a tirar é a de que uma vez iniciada, não se deve tentar travar uma revolução. Os bolcheviques, no final, com o apoio das fações mais desesperadas, mais dinâmicas e mais militarizadas, “tomaram o poder e fizeram sozinhos as reformas radicais. Contra todos os outros…”

 

Os círculos do poder russo não souberam reagir a tempo à gravidade da situação. A sua educação e a sua formação impediu-os de perceberem a realidade onde estavam inseridos. E isso foi-lhes fatal.

 

Máximo Gorki, em momento de honestidade intelectual, que depois abandonou para servir o déspota Estaline, escreveu: “Desconfio especialmente de um russo quando o poder lhe chega às mãos. O mesmo que era escravo, torna-se o déspota mais tremendo, mal tenha hipótese de se tornar no amo do seu vizinho”.

 

O regime que resultou da revolução comunista, sobretudo a partir de Estaline, afirmando-se baseado nas assembleias de trabalhadores e soldados, era essencialmente uma ditadura sanguinária que dizimou toda a vanguarda revolucionária de 1917. Disseminou a fome pelos campos e eliminou toda e qualquer semente de dissidência, enviando milhões de pessoas para a morte nos gulags. Instalou uma ditadura de medo e denúncia que eliminou oficialmente qualquer tipo de discurso de oposição.

 

Os marinheiros de Kronstadt, em 1921, aperceberam-se já tarde do logro em que tinham caído: “Ao levar a cabo a Revolução de Outubro, a classe operária esperava alcançar a sua emancipação. Mas o resultado foi uma escravidão ainda maior. O poder da monarquia, com a sua polícia e a sua guarda, passou para as mãos dos usurpadores comunistas, que não deram ao povo liberdade mas sim o medo permanente da tortura da Cheka, cujos horrores ultrapassaram de longe o domínio da guarda nos tempos do czarismo.”

 

Manuel S. Fonseca, no seu livro Revolução de Outubro – Cronologia, Utopia e Crime, apresenta uma tese interessante: “Talvez a revolução tenha sido, afinal, uma contrarrevolução, com tudo o que as contrarrevoluções trazem: ditadura, prisão, tortura, fome e morte.”

 

O então jovem aprendiz de torcionário, e mais tarde um dos mais sanguinários ditadores políticos de que há memória (Koba, o Terrível, vulgarmente conhecido como Estaline), tinha já escrito no Pravda em 1912: “A plena identidade de interesses só pode existir no cemitério.”

 

O que sucedeu a seguir já estava escrito nas estrelas. A Revolução de Outubro abriu o maior açougue humano de que há memória e o comunismo inaugurou, no início do século XX, a maior carnificina humana de sempre. Bem maior do que a nazi. Conviver com a realidade dos factos, por vezes, é a maior das torturas.

 

Martin Amis tem uma curiosa explicação para o sucedido. Na sua opinião, o comunismo não foi uma boa ideia que se transformou em má ou se desviou do seu delirante caminho. “Não. Foi uma má ideia desde o início. Carregada de certezas, de pedantismo, de energia e horror.” O escritor inglês considera que o principal adversário do ideário e da praxis marxista-leninista foi a própria natureza humana. “Os líderes bolcheviques compreenderam de forma sublime essa limitação – imediatamente. A sua resposta foi deixar o programa intacto e mudar a natureza humana.”

16
Nov17

Poema Infinito (380): O prolongamento das ilusões

João Madureira

 

 

Zumbe o vento no meu interior. O tempo inicia o seu paciente ritual. As aves ficam obsessivas. As suas asas lançam pequenas vibrações dúcteis. Donde serão estes pássaros intocáveis? Onde assento os pés, o chão começa a resvalar. A paixão está escondida dentro das fotografias. Os livros parecem violetas secas. Os pássaros voam por cima dos sonhos e caem exaustos em cima da cama. A noite desce pelos caules assombrosos das árvores. Envolve-me a voluptuosidade do teu sexo. A felicidade continua a mostrar o seu sorriso melancólico. A porta está aberta. Dentro da casa, a consistência da saudade mostra as horas aos visitantes. No jardim dorme o cão encostado ao olhar absorto da claridade. As mãos ocupadas já não produzem nada. As ervas aromáticas estão secas. Os alhos e as cebolas continuam pendurados no postigo da cozinha. O silêncio sobrepõe-se ao silêncio. O vento atravessa o vento. O tempo arde junto ao lume aceso do entardecer. O café aquece sobre as brasas. Uma poalha de luz acende os cardos e ilumina as roseiras. A voz da avó agarra-se às paredes para não desaparecer para sempre. O mundo começa de novo para lá do portão da quinta, os ciclos da terra intervalam-se entre a humidade e a secura. O mar continua longe. Adivinham-se as estrelas da alba. É com elas que aqueço a memória. As sombras dos gatos são-me familiares. E o perfume do outono também. Os gladíolos parecem hipnotizados. O corpo reclina-se para a noite. As silhuetas caminham na direção errada, perturbadas pelo medo. As estradas sugerem sempre uma ideia de fuga. As palavras transformadas regressam outra vez à sua simplicidade original, ao preenchimento da vida. Querem de novo contar histórias e fender a noite com a sua luz. Recordo os animais pelos rabiscos a lápis que fazia nas folhas de papel. Antigas tribos percorriam o país. As ilusões cobriam os corpos e inventavam novas máscaras. Costumávamos levantar-nos cedo, abrir as janelas e pensar que o mar tinha desaparecido. Inventávamos paisagens e depois substituíamo-las a nosso belo prazer. Fazíamos saltar as palavras da sua inércia. Diziam-nos que perdíamos o bom tempo de que dispúnhamos. Lembro-me de ficarmos com as mãos aflitas, com o sono irrequieto ou com os olhos abertos de espanto e medo. Os dias passavam então lentíssimos. Os nossos corações assemelhavam-se a pássaros presos. A casa enchia-se de gemidos, mas amanhecia sossegada. O ar ficava então visível. As sombras escondiam-se da luz como se perdessem a razão. Por vezes os dias resumiam-se a duas ou três palavras. Ficavam sombrios e adocicados. As manhãs sugeriam lírios murchos, tolhidas pelo fresco do orvalho. As mãos agitavam-se, parecia que os seus gestos pertenciam a outra língua. Perdíamos a orientação dos poços, o crescimento dos pólenes, o enigma da adolescência. A noite ficava cheia de buracos. Reconhecíamos as insónias quando nos víamos ao espelho. Beijávamo-nos com os olhos desassossegados e os nossos corpos ficavam em concha. Por vezes choviam segredos, as tardes ficavam fascinantes e os livros perseguiam a santidade. Agora os objetos parecem ícones pesados, definitivamente sós. As sombras parecem ilhas entorpecidas. Acabaram as marés vivas. Prolongamos ainda as ilusões. As paisagens parem textos aflitos que não conseguem dilatar-se. Chegará de novo o tempo de crescerem as primeiras amoras. Entretanto as luzes apagam-se e a queda recomeça.

13
Nov17

367 - Pérolas e diamantes: O Vendido

João Madureira

 

 

Ainda se escrevem livros assim: irónicos e dolorosos, hilariantes e cruéis, satíricos e mordazes. Provavelmente o livro de Paul Beatty é das coisas mais interessantes que li ultimamente. Dwight Garner escreveu no The New York Times que as primeiras cem páginas de O Vendido são as mais cáusticas e mais tesas que leu num romance americano nesta última década, pelo menos.

 

Me, o personagem afro-americano mais azarento do universo ficcional recente, é exemplarmente educado por um pai violentamente excêntrico e sociólogo obcecado pela questão racial que não desiste de lhe inculcar uma cultura de resistência.

 

Ensina-lhe princípios sociológicos estruturantes. Fala-lhe, por exemplo, do “efeito espectador” que ensina que quanto mais pessoas estejam perto para dar uma ajuda, menos provável é que ela seja prestada. Só que o pai de Me desenvolveu a hipótese de que tal efeito não se aplicava aos negros, uma raça cuja sobrevivência, na sua perspetiva, sempre dependeu da entreajuda em momentos de necessidade.

 

Por isso obrigou o seu filho a permanecer parado num dos cruzamentos mais movimentados do seu bairro, com notas de dólar a espreitarem-lhe dos bolsos, com um aparelho eletrónico moderno e brilhante enfiado nas orelhas, com um colar de ouro estilo hip-hop ao pescoço, e, inexplicavelmente, também com um conjunto de tapetes personalizados para um Honda Civic pendurados no braço como um pano no braço de um empregado de mesa, e, enquanto as lágrimas lhes corriam pela face, o seu próprio pai assaltou-o. Bateu-lhe diante de uma multidão de espectadores que não assistiram durante muito tempo. A indiferença, pelo vistos, não tem cor.

 

Ia o assalto ainda em dois murros na cara quando algumas das pessoas se aproximaram do assaltante e, em vez de auxiliarem a vítima, ofereceram ajuda ao agressor. Ajudaram a dar-lhe uma sova, começando a desferir cotoveladas e golpes de wresteling no pobre aprendiz até o porem inconsciente.

 

Quando o pobre e infeliz Me começou a recuperar a consciência, ainda os seus atacantes, suados e com o peito a arquejar, tentavam recobrar do seu esforço e do respetivo altruísmo.

 

A caminho de casa, o “paizão” pôs-lhe um braço consolador sobre os ombros doridos e deu-lhe um sermão sobre como ele não teve em conta o “efeito manada”.

 

Dava-lhe também cursos intensivos de desenvolvimento infantil tentando reproduzir o estudo da consciência da cor em crianças negras dos Drs. Kenneth e Mamie Clark, utilizando bonecos brancos e negros, mas numa versão mais revolucionária.

 

Um dia apresentou-lhe dois cenários com subtexto sociocultural para saber qual deles curtia mais.

 

O Cenário I apresentava o Ken e a Barbie Malibu trajados com fatos de banho a condizer, ostentando as respetivas máscaras e óculos de mergulho, a relaxar em frente à piscina da Casa do Sonho.

 

No Cenário II, aparecia Martin Luther King Jr., o Malcolm X, a Harriet Tubman e um sempre em pé oval e castanho correndo e balançando-se num matagal pantanoso, fugindo a sete pés de uma matilha de pastores alemães que chefiavam uma multidão armada composta pelos G.I. Joe do Me vestidos com roupas do Ku Klux Klan.

 

O rapaz ficou confuso, mas tirou a conclusão óbvia: os brancos ganham porque possuem acessórios melhores.

 

Resumindo e concluindo, depois de todas as experiências falhadas, o pai queimou as folhas com as suas conclusões na lareira. O seu filho, “estatisticamente insignificante”, destrui-lhe todas as esperanças. Me foi para o seu pai uma experiência social falhada.

 

Passou então a dedicar-se ao bairro. Apesar de, segundo o seu filho, não demonstrar muito jeito para cavalos, era conhecido em Dickens como Encantador de Pretos. “Sempre que um mano que tinha «perdido a puta da cabeça» precisava de ser convencido a descer de uma árvore ou de um precipício, ele era chamado. Apenas se fazia acompanhar da sua bíblia da psicologia social, The Planning of Change de Bennis, Benne e Robert Chin, um psicólogo sino-americano lamentavelmente subestimado.”

 

As pessoas achavam que era o seu altruísmo o que lhe permitia aproximar-se tanto dos tresloucados, mas para o seu filho, o segredo residia na sua voz que possuía um tom grave de doo-wop, pois falava em fá sustenido.

 

Mais de uma vez Me teve vontade de perguntar ao seu pai porque é que nunca lhe falou no mesmo tom reconfortante que usava com os seus “clientes”, mas nunca o fez porque sabia que, “em vez de obter uma resposta, ia levar com o cinto”, e o seu processo de cura “ia envolver mercurocromo, e, em lugar de ficar de castigo, teria uma sentença de entre cinco e três semanas de imaginação ativa junguiana”.

 

O Vendido foi vencedor do Man Booker Prize de 2016 e “é uma sátira mordaz que desafia os pilares sagrados da vida urbana, da Constituição norte-americana, do movimento dos direitos civis, da relação pai-filho, feita à medida para o despontar do século XXI”.

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