368 - Pérolas e diamantes: 1917 – Revolução ou Contrarrevolução?
A revolução russa continua a significar o derrube de um regime decadente, obscurantista e retrógrado, caraterizado essencialmente pela servidão abjeta do mundo rural e também pela exploração das classes trabalhadoras urbanas. Materializou as esperanças dos deserdados da terra e transmitiu ânimo a todos aqueles que pelo mundo fora ansiavam e lutavam pela transformação social apregoada pelos filósofos e pelos revolucionários socialistas e anarquistas, desde a denominada Primavera dos Povos e a publicação do Manifesto Comunista, em 1848, a que se seguiu a Comuna de Paris, em 1871.
Mas foi a própria realidade que começou por contrariar as teses de Karl Marx sobre a putativa revolução, pois não ocorreu nos países mais avançados, como o Reino Unido, a França ou a Alemanha, mas num país atrasado, quer do ponto de vista social ou industrial: o Império Russo.
Marx afirmou que “as revoluções são as locomotivas da História”, coisa em que acreditei na minha juventude, mas atualmente inclino-me mais para a tese de Alexandre Chubine (professor de História e investigador do Instituto de História Universal e da Academia de Ciências da Rússia) e que é uma analogia interessante, de que “as revoluções são arietes da História”, pois “a revolução não funciona como uma locomotiva mas antes como um martelo-pilão que derruba os obstáculos que impedem o seu avanço”.
Segundo Chubine, Lenine, apercebendo-se da crescente crise económica e social que alastrava na Rússia, defendeu de imediato, não reformas, mas uma transformação radical. Para o professor de História russo, a razão do aparecimento de Lenine deveu-se ao facto de todos os outros lhe terem cedido o lugar, porque estavam à espera da assembleia constituinte.
Assim, a conclusão a tirar é a de que uma vez iniciada, não se deve tentar travar uma revolução. Os bolcheviques, no final, com o apoio das fações mais desesperadas, mais dinâmicas e mais militarizadas, “tomaram o poder e fizeram sozinhos as reformas radicais. Contra todos os outros…”
Os círculos do poder russo não souberam reagir a tempo à gravidade da situação. A sua educação e a sua formação impediu-os de perceberem a realidade onde estavam inseridos. E isso foi-lhes fatal.
Máximo Gorki, em momento de honestidade intelectual, que depois abandonou para servir o déspota Estaline, escreveu: “Desconfio especialmente de um russo quando o poder lhe chega às mãos. O mesmo que era escravo, torna-se o déspota mais tremendo, mal tenha hipótese de se tornar no amo do seu vizinho”.
O regime que resultou da revolução comunista, sobretudo a partir de Estaline, afirmando-se baseado nas assembleias de trabalhadores e soldados, era essencialmente uma ditadura sanguinária que dizimou toda a vanguarda revolucionária de 1917. Disseminou a fome pelos campos e eliminou toda e qualquer semente de dissidência, enviando milhões de pessoas para a morte nos gulags. Instalou uma ditadura de medo e denúncia que eliminou oficialmente qualquer tipo de discurso de oposição.
Os marinheiros de Kronstadt, em 1921, aperceberam-se já tarde do logro em que tinham caído: “Ao levar a cabo a Revolução de Outubro, a classe operária esperava alcançar a sua emancipação. Mas o resultado foi uma escravidão ainda maior. O poder da monarquia, com a sua polícia e a sua guarda, passou para as mãos dos usurpadores comunistas, que não deram ao povo liberdade mas sim o medo permanente da tortura da Cheka, cujos horrores ultrapassaram de longe o domínio da guarda nos tempos do czarismo.”
Manuel S. Fonseca, no seu livro Revolução de Outubro – Cronologia, Utopia e Crime, apresenta uma tese interessante: “Talvez a revolução tenha sido, afinal, uma contrarrevolução, com tudo o que as contrarrevoluções trazem: ditadura, prisão, tortura, fome e morte.”
O então jovem aprendiz de torcionário, e mais tarde um dos mais sanguinários ditadores políticos de que há memória (Koba, o Terrível, vulgarmente conhecido como Estaline), tinha já escrito no Pravda em 1912: “A plena identidade de interesses só pode existir no cemitério.”
O que sucedeu a seguir já estava escrito nas estrelas. A Revolução de Outubro abriu o maior açougue humano de que há memória e o comunismo inaugurou, no início do século XX, a maior carnificina humana de sempre. Bem maior do que a nazi. Conviver com a realidade dos factos, por vezes, é a maior das torturas.
Martin Amis tem uma curiosa explicação para o sucedido. Na sua opinião, o comunismo não foi uma boa ideia que se transformou em má ou se desviou do seu delirante caminho. “Não. Foi uma má ideia desde o início. Carregada de certezas, de pedantismo, de energia e horror.” O escritor inglês considera que o principal adversário do ideário e da praxis marxista-leninista foi a própria natureza humana. “Os líderes bolcheviques compreenderam de forma sublime essa limitação – imediatamente. A sua resposta foi deixar o programa intacto e mudar a natureza humana.”