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Oxalá os deuses nos libertassem do trabalho, dos anos da guarda, das assembleias de estrelas noturnas e dos invernos mortais. Mas já nada podem desfazer. Os raios de luz trazem a imagem do teu rosto ordenado enquanto estou deitado num leito de orvalho. Depois chega o sono e o medo. A sorte continua a favorecer os senhores. Os dias passam sem lamentos. A tristeza da terra é ainda maior. Os seus gemidos caem sobre os campos de forma constante. Os gritos dos inimigos ecoam pela cidade fora. As crianças enlaçam os corpos dos velhos e sobem até ao cimo dos montes. Os filhos necessitam de regressar a casa sem o coração aflito, sem a alma oprimida. O tempo de agora não tolera lamentações. Por isso ninguém invoca os deuses, porque apenas sabem prever as suas próprias desgraças. Já não conseguem proteger os caminhos, não confiam nos testemunhos. Nada sabem de profecias, não entendem os enigmas, não habitam os oráculos. As suas palavras já não nos agradam. Donde lhes vem tanta ânsia? Porque modulam os gritos? Deixaram de nos instruir por enigmas. A sua lentidão é falsa. O tempo perdeu o seu vigor. A realidade não passa de uma expectativa falsa. Os deuses atribuíram um pouco de sorte aos mortais, consideraram-nos justiceiros, aliviaram-lhes a ira e disseram-lhes que tinham as mãos puras. Dos olhos dos deuses nascem clarões sombrios. O leito das mulheres enchem-se de lágrimas de angústia quando as obrigam a partilhar os seus leitos com os guerreiros de Deus. Sentem saudades dos seus maridos. Os seus gemidos são insaciáveis. Conhecem toda a dor, a bem-aventurança da necessidade, o desígnio da honra, o poder inacessível da dor, o orgulho da humildade, os receios mais antigos e o ruído formidável do amor. Sabem oferecer o olhar ao doce rumor das flautas. A grande cidadela ignora a mortalidade dos deuses e apenas tem olhos para as cabeças cingidas. Muitas palavras sagradas não cabem dentro do seu próprio confronto. Uma rapariga insensata planta pássaros em lugares insólitos. Outra deixa crescer feras sem destino. Uma espessa capa cobre a harmonia do Éden. Eva espalha em sua volta uma solidão circundante. No peito de Adão cresce a honra. Deus dá-lhe terra, água, ar, fogo e amor e discórdia e depois põe-lhe o nome de humano. Adão é tão parvo que acredita. E torce as mãos. E trabalha. E imagina os lábios de Eva a abrirem-se como as pétalas de uma flor. O seu olhar fica então acessível. A persuasão atinge o seu máximo esplendor. Aquele homem foi a ruína da humanidade. Deixou de odiar as armas e começou a acreditar no destino. O seu exemplo é infeliz. Todo o tempo mais antigo é agora silêncio. Muitos são agora os prodígios. Os cavalos lavram as terras, as asas das aves estão cada vez mais ligeiras, a chuva tornou-se importuna, as normas regem as cidades, os combates estendem-se com serenidade e todos os exércitos se tornaram invencíveis. As leis deixaram de existir. Os inimigos são agora piedosos e choram diante das portas do palácio a morte de todos os filhos. O mal deixou de ter uma finalidade. Regresso então a casa com as mãos indignas. A impenetrável folhagem divina encobre os frutos infindáveis do paraíso. Eva abriga-se do sol e dos ventos invernosos. A angústia adormece. Aumenta a fadiga. Esgota-se a esperança. Caminho em círculos em busca de um sentido para a vida. Eric Idle entra no frigorífico e começa a entoar um cântico celestial.


Na “nota do editor” do último número da revista LER refere-se que no seu discurso de aceitação do Nobel, Bob Dylan citou a Odisseia, de Homero, A Oeste nada de novo, de Erich Maria Remarque, e Moby Dick, de Herman Melville. Mas parece que o laureado se enganou, ou fez confusão, com a frase: “Alguns homens a quem são infligidos ferimentos são conduzidos a Deus, outros são conduzidos à amargura.”
A frase é bela e enigmática. Só que tem a particularidade de não existir em nenhum dos livros de Melville. As más-línguas dizem que a frase, tal como outras usadas por Dylan no seu discurso, foi retirada de um site dedicado a comentários de livros para estudantes do secundário.
Por falar em distinções, Manuel Alegre foi distinguido com o Prémio Camões. Mal soube da decisão apressou-se a dizer, na sua conhecida e reconhecida humildade, e com a serenidade que todos lhe conhecemos que “é natural que me atribuam este prémio. Até podia ter sido mais cedo.”
E daqui nos vamos até ao reino dos confrades e das respetivas confrarias. Há-as para todos os gostos e feitios. Algumas são mesmo picarescas. Desde a Confraria da Moenga, uma associação eborense formada por amigos que “se juntavam no Moinho do Cu Torto para cada um mostrar as suas artes culinárias”, até à Confraria dos Rojões da Bairrada com Grelo e Batata à Racha, passando pela picante Confraria da Urtiga (de Fornos de Algodres).
De facto vivemos na era da arte culinária, em contraponto com literatura de cariz erótico-disfuncional. Segundo o The Irish Independent, “cientistas que avaliaram os sentimentos emocionais, a linguagem corporal e a frequência cardíaca de leitoras, encontraram menos sinais de excitação e de prazer no best seller de E. L. James, As Cinquenta Sombras de Grey, do que em 30 Minute Meals, um livro de culinária de Jamie Oliver”.
É caso para dizer ora foda-se, pois, tal como Rodrigo Guedes de Carvalho, também eu prefiro “o palavrão ao eufemismo.”
Mas é com Rodrigo dos Santos que ficamos a saber como se chega a best seller. Desde logo porque o autor surpreende-nos evidenciando a nossa ignorância. Com os seus livros ficamos a saber que “o marxismo não foi criado por Marx” e que, ó horror dos horrores!, que o inventor do comunismo, apesar de judeu, era racista. Descobrimos também que Cristóvão Colombo era Português, além de que “ninguém sabia que a própria Bíblia tem indícios de que Maria não era virgem e que Marcos e Lucas não escreveram os evangelhos com os seus nomes”.
Num dos romances da Trilogia, uma personagem tem mesmo a ousadia de explicar que “o bolchevismo e o fascismo são irmãos marxistas gémeos”, ao que o outro exclama para nossa, e sua, surpresa: “Que disparate!”
Nos seus romances há diálogos que se estendem por dezenas de páginas e dão-se mesmo nos lugares mais inverosímeis: na maternidade, no dentista, na rua, no táxi e até na praia.
Eu continuo a desconfiar daquelas pessoas que ostentam penosamente a sua cabeça ereta e que desenham uma expressão tão amigável que roça a cretinice. É que não há ninguém assim tão amável.
Há suspeições injustas que perseguem até os mais inocentes. Como muito bem diz o poeta citado por Jerome K. Jerome, em Três homens num barco: “Quem pode escapar à calúnia?”
No fundo a Humanidade é composta por gente insatisfeita. Parece que “todos têm aquilo que não querem, e os outros têm aquilo que eles querem. Os homens casados têm mulheres, e não parecem querê-las; e os jovens solteiros choram porque não têm mulher. Gente pobre, quase sem meios para viver, tem filhos saudáveis. Casais velhos e ricos morrem sem filhos e ninguém a quem deixar o seu dinheiro.”



A melodia que vem de longe lembra-me uma rua estreita. Os caules de milho verde vestem os pássaros que pousam nos campos da tarde. A vida continua a mover-se como um líquido tranquilo. Os rumores são apetitosos. Regressamos à luz. A aldeia vacila. Lembro-me da ténue loucura do meu padrinho, da penugem colorida dos parricos, do estilo medieval das borboletas, do estilo perfeito da pia batismal, das igrejas tristes, das noites longas e dos pirilampos. Ainda me custa a crer na visão silenciosa dos púlpitos, nos animais suaves com que se erguem as tragédias, nas memórias do sono, na exaltação das mãos, no rosto sibilino da vitória, nas crianças desassossegadas. Os poetas com história entoam o seu hino já cansado e as suas bocas ficam cheias. Agora já só se alimentam de tristeza. Os seus poemas ajoelham-se à porta dos sentidos. Toda a luz é carnívora. Jesus jaz morto no regaço das fêmeas. Só ladrões e marinheiros acreditam nos versos verdadeiros, naqueles que são feitos pelo tempo. As lajes do adro da igreja conversam com os mortos. Os templos continuam a contar as estrelas de Natal. Os jovens mais bravios sonham com rituais de sonho, com a pureza do negro. Correm o mundo tentando devolver os anjos aos seus labirintos. Em troca, os anjos restituem-lhes as almas em plena metamorfose. Nós abandonamos as metáforas e partilhamos a alegria do fogo. A luz começa a ferver. Os filósofos lutam pela eternidade. O tempo deslumbra-se. Atravessamos então o medo, o engano dos espelhos, as missas barrocas, as catedrais mais espessas, a solenidade e todo o desconforto a ela inerente. Os algozes cantam aleluias com a língua distendida. Cristo jaz cristalizado na sua cruz eterna. Os cristãos não conseguem dar o verdadeiro nome à violência e deixam-se embarcar nos seus vasos de guerra. Deus continua a contar os grãos de areia. As multidões deixam-se sacudir pelos ventos. Os sacrifícios erguem-se como se fossem colunas de água. Deus dá-lhes um sofrimento tranquilo. Ele sabe quanto a santidade gasta. A dor é agora uma onomatopeia lenta, com a proporção exata da decadência. Debruçadas nas janelas, as mulheres mais velhas bebem os últimos raios de sol e descobrem que os presságios sempre lhes ilustraram a vida e que a perseverança lhes domou o corpo e que toda a sorte é escassa. Ninguém lhes traduziu as leis nem lhes agradeceram os sorrisos. Os seus corpos sempre bailaram ao sabor do vento e das tempestades súbitas. O sol declina e elas estão preparadas para seguirem as sombras. Entretanto declamam as preces da sua devoção, fragmentam a água benta e com ela se desinfetam. Sentem-se insufladas pelo bafo de Deus. Alguém grita palavras abençoadas no meio da neblina. Juízos abstratos tentam corrigir a história. O gato borralheiro dorme enrolado na indiferença. O seu tempo é breve. A avó dorme no outro lado do escano. Não precisou de sair de casa para procurar o mundo. Bastou-lhe pensar no dilúvio universal. Aprendeu a nadar em vão, esquecendo-se das horas, esperando a sombra e o cão, agrupando as flores nos vasos, distraindo-se da morte com a ajuda de Deus, escutando o sopro musical das folhas, olhando o sorriso dos troncos das árvores, seguindo com prudência o carreiro das formigas e disfarçando a decadência com dor. Finalmente pode deixar de fingir ternura, basta agarrar-se ao chão e descobrir as grutas da memória.

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