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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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21
Dez17

Poema Infinito (385): O contínuo desespero da espera

João Madureira

 

 

No princípio do mundo os navios cavalgavam sobre os espelhos dos olhos de Deus. O mar era frio e verde e as ondas tão leves como o corpo da mulher que amamos. No primeiro instante, o ar tomou conta do vazio e os continentes e os oceanos foram talhados cerces. Deus começou de imediato a desobedecer ao seu criador. O sol ficou macio e o frio começou a amadurar. As manhãs ficaram fortes e silentes. Apareceram então os primeiros seres em forma de água e neve. E as mãos começaram a construir as horas. Os espíritos benzeram o fruto das mulheres e o Senhor foi ter com elas para as admoestar. Primeiro engordaram, depois emagreceram e noutro depois ficaram com o cio macio e transparente. Os murmúrios tornaram-se casuais, as fontes ficaram mudas e os anjos foram incumbidos de vigiarem quem passava. Aves de fogo atravessavam os horizontes. A luz vagava pelos cais, os primeiros dias perdiam-se uns dos outros e a noite até começou por ser nada. Uns e outros dormiam e sonhavam e desmentiam-se. As almas aprenderam a estar caladas, a apreciarem as sombras, a desenvolverem o movimento das águas, a fluir e a refluir e a esperarem pela indiferença de tudo aquilo que é velho. Algumas delas trocaram de corpo e saíram para a luz do dia. Tornaram-se pecadoras. O céu era então oleoso, abstrato, como um pensamento contínuo. Ninguém guardava nada. Todo o entendimento era mudo. Toda a harmonia era casta, todas as indicações eram vagas. Nasceu então uma outra luz e com ela surgiram as primaveras, os campos, o bem e o mal. Depois o tempo passou muito depressa e os deuses ficaram loiros e os homens tornaram-se pastores e converteram-se em reis e servos uns dos outros. Os sorrisos transformaram-se em pretextos de felicidade. Ainda hoje são assim. Chegaram então as querelas e as ovelhas tiveram de atravessar estradas. Pousaram então os pormenores sobre os momentos. Por isso, quando pensamos em coisas velhas somos atacados pelo desdém. Os sorrisos deixaram de ter passado. A sabedoria declinou a delicadeza e os pastores deixaram de regressar a casa e as ovelhas ao pasto. A terra transformou-se num enorme cinema, cheia de senhores de guerra e anjos azuis e mulheres perdidas e jogos livres. Todos ficaram cansados de esperar, os dias danados e as noites fatigadas de demorar. Diana, a caçadora, principiou a jogar com pérolas de água salgada e a dormir na sua cama de mar. Surgiram nesse tempo os sorrisos tristes, os pressentimentos, os olhos puros e rasados de água e vários e distintos mundos futuros. Os carreiros ficaram fundos e as almas extensas como praias. Dos lados não ficou nada. As ondas permaneceram largas, o medo procurou a alegria e os deuses os montes. Os eremitas trocaram o sul pelo norte e aprenderam a afinar os instrumentos com que tocavam o silêncio. Ascendiam e descendiam enviando a sua voz de forma contínua, tocando as notas de sol a dó nos tons médios das flautas. Um tempo houve, dizia Deus, em que eu pedi a Deus a raiz do céu. Apareceram então as façanhas amorosas, as vozes de segundo plano, a grande força e os desmanchos, a pressão progressiva dos sexos. Nossa Senhora pediu o céu, Teresa implorou pelas dores, Inês suplicou rosas, Madalena fugiu de casa, Joana matou o seu rei, Nazaré nasceu predestinada, Maria emprenhou por vontade de Deus com a ajuda prestimosa do anjo Gabriel, dizendo-lhe que era a escolhida, mas também a serva e também a vida. Jesus depois foi crucificado e morto. Aquando da sua ressurreição, tudo deixou de fazer sentido.

18
Dez17

372 - Pérolas e diamantes: Sinal dos tempos

João Madureira

 

 

Emmanuel Macron, o Presidente da República francês, disse em entrevista ao Expresso que “precisamos de desenvolver o heroísmo político”. Assim mesmo, de mãos abertas em concha virada para riba e de olhar vago no infinito.

 

Depois foi-se ao Hegel, pois, segundo ele, o filósofo alemão acreditava que um indivíduo pode, de facto, a qualquer momento encarnar o Zeigeist (significa espírito da épocaespírito do tempo ou sinal dos tempos), seja lá isso o que for, mas também que o indivíduo nem sempre tem a consciência de que o está a fazer.

 

Friedrich Hegel chegou mesmo a descrever Napoleão Bonaparte como “o Weltgeist (espírito mundial) a cavalo”. Só que Macron não consegue ir tão longe, não acredita que uma única pessoa possa, de facto, orientar a história.

 

Ele estabeleceu para si o tentar encorajar a França e o povo francês a mudarem e a desenvolverem-se mais. O que já não é pouco.

 

Eis senão quando, a meio da entrevista, entra na sala o Nemo, o cão do Presidente, e senta-se.

 

Perguntam então ao dono porque lhe deu tal nome. Macron conta que o cão foi abandonado enquanto cachorro e que passou um ano num abrigo para animais. Ele tinha decidido que queria um cão de um abrigo. Normalmente, lembra aos entrevistadores, os Presidentes têm cães de raça pura, mas o Nemo é uma mistura de Labrador com Griffon. “Absolutamente adorável. Um golpe de sorte, não é? Do abrigo de animais para o Palácio do Eliseu.” Diretamente e de forma limpa. E confessa: “Gosto bastante da ideia, mesmo que ele tenha pouca ideia de onde acabou por vir parar.”

 

Ou seja, mesmo que para o povo francês a eleição de Macron possa ter sido mais do mesmo, já o mesmo não podemos dizer acerca dos cães gauleses e do mais.

 

Claro que para Emmanuel Macron nada ficou na mesma, pois perdeu a inocência dado que ser Presidente da República muda a vida de forma drástica. E também a de certos cães.

 

Na sua perspetiva, o cargo que ocupa não é sobretudo político ou técnico. É, antes de mais, simbólico. Dado que “precisamos de desenvolver uma espécie de heroísmo político.”Não significa que Macron queira ser herói. Não. “Mas há que ter recetividade à criação de grandes narrativas.”

 

Dizem que o presidente é distante. Ele contrapõe que está a pôr fim à cumplicidade entre política e os media, dado que “um Presidente deve manter os media a uma certa distância”.

 

E, claro, também é modesto, pois respondeu que talvez esteja a seguir os passos de Mitterrand (outro presidente francês conhecido pela sua inextricável sobriedade), que queria realmente moldar a Europa.

 

Na sua opinião, e já agora também na minha, o problema dos debates sobre a Europa é que se transformaram em disputas entre especialistas e advogados.

 

Ele sonha com uma Europa baseada em três coisas: soberania, unidade e democracia. Quer que ela seja uma garantia de paz, prosperidade e liberdade duradoras, pois urge “terminar com esta guerra civil europeia, cuja existência não queremos admitir, e parar de ver constantemente se somos melhores do que o nosso vizinho nisto ou naquilo”. E deixar de permitir que se desenvolva uma espécie de derrotismo coletivo, propagandeado sobretudo por quem fala mal da Europa e quer desistir dela.

 

Lá pelo meio da entrevista falou da sua admiração por Angela Merkel, já que são “duas pessoas que procedem metodicamente” e que adoram pormenores. Nas cimeiras, lembra Macron, são dos poucos chefes de Estado e de Governo que tomam notas. Por isso adora as discussões que têm os dois.

 

Sobre os partidos convencionais franceses considera que já não têm capacidade para unir as pessoas. Defende ainda a urgência de uma revolução cultural, para poder transformar “a educação, o mercado de trabalho e o sistema de pensões”.

 

Uma coisa me une ao senhor Presidente francês, o gosto por Bach, pois ambos achamos extraordinário não encontrar na música do génio alemão elementos decorativos.

 

Noutra coisa também coincidimos, na admiração pelo escritor francês Michel Houellebecq, que é, sem dúvida nenhuma, “o romancista que melhor descreve as fobias e os medos contemporâneos” e retrata como muito poucos o caráter pós-moderno da nossa sociedade.

 

A terminar a entrevista falou das muitas coisas que mudou desde que chegou ao Eliseu. “Tudo”. Disse ele. O seu gabinete, por exemplo, que agora é totalmente diferente. Desfez-se de um tapete gigante e pesado e muita mobília. Tornou tudo mais leve e moderno e proporcionou mais espaço aos artistas contemporâneos.

 

Até nós, neste lado da Península Ibérica, ficámos embasbacados e, por que não dizê-lo desassombradamente, autenticamente estupefactos, com o ritmo e o alcance das transformações protagonizadas por Emmanuel Macron.

 

Bem haja, senhor Presidente, e, já agora, dê por nós um biscoito ao cão e faça-lhe uma festinha à maneira.

14
Dez17

Poema Infinito (384): O voo tangencial da glória

João Madureira

 

 

A minha mãe voa dentro do meu pensamento. Abraço-a em busca de alívio. A dor devora a felicidade de outrora. Os carinhos atravessam o espaço mitigando a dor. Recebo a saudade como um sofrimento. O verdor dos anos era então tão inocente como a bonina, tão belo como os anjos, tão cândido como um catecismo aberto. A virtude tinha nesse tempo o tamanho da inspiração, a mesma crueldade enternecida, a mesma ventura dos sonhos mais ditosos, das ilusões mais prazenteiras, dos gozos mais eróticos, das masturbações mais gemidas, dos voos mais tristes. Por vezes alguém nasce feliz. O tempo vem agora mais amargo, mais destruidor. No entanto, as primaveras são mais vigorosas, as plantas mais rasteiras e o medo mais solto. O Criador gerou-nos a medo, como se fossemos astros sem perfume, como se fossemos auroras que não despontam. Sentimos a luz do sol na sua essência campestre. Os castelos murmuram segredos místicos. As aves noturnas voam sobre as sombras das muralhas mais cansadas. Os terraços estão habitados por fantasmas. O castelo aparece e desaparece perante a incredulidade dos nossos olhos. As horas estão mais sombrias, mais misteriosas. Os velhos são atualmente mais rígidos, mais altivos, mais generosos e mais fortes. Os que foram guerreiros voltam agora os rostos às armas. Já não veneram as tradições dos seus antepassados. Até Deus se cansou dos combates. A glória repousa nas arcas mais antigas, ao lado da morte taciturna. Nas salas mais amplas ouvem-se os delírios mais pungentes. Antigamente a glória acenava do lado do futuro, os homens iam para as festas e tocavam ao de leve no prazer e as mulheres guardavam os segredos mais íntimos. Os sonhos também eram mais pesados e repletos de ingratidão. Os heróis confundiam-se nas sombras, ou desciam na noite em forma de luar e banhavam-se tremeluzindo como as estrelas, mutilando o frio, enquanto ao longe as virgens erguiam cruzes mutiladas pelo incesto dos murmúrios, deslizavam pelo ar como se fossem feitas de transparência, encrespando as águas serenas do lago, desenhando as brisas, ampliando o desejo e os espaços, beijando os segredos, mostrando os seios e os sexos como se fossem anjos pecadores. As suas vozes eram magoadas, repletas de angústia, ordenando a honra, combatendo a ânsia, sustendo as lágrimas e os choros, deixando cintilar nos seus olhos a luz da divindade. Os loucos correm sempre atrás de uma chama vã. Os outros, os que nascem do lado de lá do abismo, julgam-se nobres e brilhantes, amando Deus como se fosse uma distância, ou uma alma ascendente, ou um laço invisível. Os heróis mais atuais livraram-se das quimeras, dos júbilos mais inflamados, dos sons mais agudos e das amantes mais libidinosas. São como mancebos aterrados, esperando nas casas dos pais o sinal da hora da partida e a sua força irresistível. As suas armaduras brilham como se fossem feitas de sonhos. Virão cobertos de glória. Ou não virão. Nada os prende à terra. O seu tempo é de aventuras. Os velhos suspiram, as mães choram gotas silenciosas. Alguém fala da memória dos antepassados, da honra, dos horizontes imensos, do sol mais ardente, dos tronos reclinados no cimo das montanhas, do túmulo de Cristo, das auroras divinas, dos berços da inocência, do mundo novo e da terra santa. As novas gerações começam então a rodar e somem-se no tempo. Cada pedra será um martírio, cada grão uma boa ação. É tão longa a saudade como as ondas do mar bravio. Jerusalém não é uma terra sacrossanta de prodígios, mas um lugar de martírio. Cristo e os apóstolos continuam perdidos no deserto.

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