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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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29
Jan18

377 - Pérolas e diamantes: A roleta russa

João Madureira

 

 

 

Ao contrário do que era suposto acontecer, a Revolução de 1917, com a tomada do poder em Sampetersburgo, desencadeou uma violenta guerra civil na Rússia e deu origem a um regime totalitário que, para os artistas da altura, implicou um retrocesso criativo, originando a vitória de ideias conservadoras capazes de envergonhar a pior censura do tempo dos czares.

 

A Revolução Russa, bem vistas as coisas, foi sobretudo uma guerra civil extensa e cruel, que teve apoio popular e que também contou com o idealismo de muitos artistas, nomeadamente escritores e poetas que aderiram de imediato às promessas revolucionárias de uma literatura inovadora, capaz de elevar os leitores e de transmitir rapidamente ao mundo as novas ideias.

 

Essa esperança de liberdade foi curta. Na realidade, os escritores e restantes intelectuais, foram rapidamente trucidados pela violência e pela matriz totalitária do novo regime.

 

De facto, uma das literaturas mais impressionantes do planeta foi, em apenas dúzia e meia de anos, aniquilada pela obsessão estalinista de controlar todos os aspetos da vida dos cidadãos, usando os bárbaros métodos do medo e da violência para silenciar qualquer atrevimento de individualismo.

 

Para se conseguir sobreviver nas letras soviéticas, não era suficiente ser apenas bom revolucionário, era necessário evitar erros políticos. Muitos escritores foram exterminados por se terem descuidado no momento de escolher os seus protetores ou então terem escrito coisas comprometedoras no período em que se julgavam a salvo.

 

Na maioria dos casos, a roleta russa veio tomar conta dos seus destinos.

 

Com a abertura dos arquivos da polícia política (NKVD), os historiadores russos concluíram que cerca de dois mil intelectuais, académicos e artistas soviéticos, foram presos durante as purgas do final dos anos 30 e que terão morrido nas prisões e nos campos de concentração mais de 1500, muitos deles escritores.

 

A sorte estava ditada. Uns emigraram (Vladimir Nabokov, Ivan Bunin, Leonid Andreiev); outros suicidaram-se (Serguei Iesenine, Vladimir Maiakovski). Alguns tiveram problemas logo de início, como Ievgueni Zamiatine e a poetisa Anna Akhmatova, cujo marido, Nikolai Gumilyov, também poeta e militar aristocrata, foi fuzilado durante a guerra civil.

 

Se no início a diversidade no meio literário foi um dos emblemas da revolução proletária, rapidamente os talentos começaram a desaparecer.

 

A uns remeteram-nos ao silêncio (Andrei Platonov e Mikhaíl Bulgákov), outros remeteram-se a um silêncio autoimposto (Andrei Bely). A alguns foi a doença que tomou conta deles (Aleksander Block). Ou seja, em1925 a literatura russa já tinha sido praticamente dizimada. Mas mais vítimas estavam a caminho.

 

Issac Babel, pôs-se a jeito. Especialmente quando escreveu Cavalaria Vermelha, onde tornou evidente a sua crença comunista, mas também a desconfiança em relação à brutalidade dos bolcheviques e dos cossacos, o antissemitismo e a indisciplina das tropas. Desapareceu nos gulags.

 

Igual sorte teve o poeta Ossip Mendelstam.

 

Foi através da violência feroz, da supressão radical das liberdades, da coletivização forçada da terra e da propaganda sistemática, que o regime soviético criou um suposto paraíso para os trabalhadores que não passou de uma enorme e tremenda mentira.

 

Para Estaline, os escritores tinham de ser “engenheiros das almas”, ou não eram nada.

 

Ou seja, o realismo socialista funcionou como uma das peças da engrenagem da mentira que acabou por trucidar os melhores autores soviéticos. De facto, ali não existia a mínima réstia de realismo, nem sequer havia socialismo, pois os heróis descritos apenas existiam na fantasia doentia dos dirigentes.

 

Para o comissário da cultura, Andrei Djanov, o único conflito possível na cultura soviética era “entre o bom e o melhor.”

 

Os escritores tinham de estar ao serviço do povo e a sua autonomia artística era uma concessão de serviço. Ou seja, o escritor não era mais do que um funcionário.

 

Um dos livros que melhor retrata o regime soviético é O Mestre e Margarida. Este romance genial, de uma fantasia satírica delirante, mostra o fingimento do regime totalitário, a sua dissimulação e violência, a desfaçatez do poder e a imensa credulidade do povo.

 

Em Moscovo, cidade onde triunfaram os deuses do comunismo, aparece Woland, o mesmíssimo diabo, e a sua tribo de demónios. Verificamos então que nela impera o medo, a mentira, o conformismo e a paranoia.

 

Bulgákov evidencia a manipulação da verdade, a impossibilidade manifesta de se poder contar a história autêntica, a manifesta impotência dos intelectuais, o desespero amoroso, o triunfo do medo e da morte, que, diga-se em abono da verdade, não constituem apenas uma crítica ao comunismo.

 

A reflexão é, acima de tudo, sobre o sentido da própria arte. De que serve uma obra se nela o autor não disser a verdade?

 

Doutor Jivago, de Pasternak, talvez tenha dado o golpe de misericórdia na bondade do regime soviético, ao denunciar os momentos de brutalidade, de delação de inocentes e as promessas falhadas da revolução, além do cinismo, do oportunismo, da escassez de alimentos e da injustiça.

 

Paz, pois, à alma do escritor russo.

 

De facto, nada distingue a violência dos vermelhos da dos brancos.

 

Paz, pois, à alma do comunismo.

25
Jan18

Poema Infinito (389): Imagens refletidas no abismo

João Madureira

 

 

Recuperei hoje o teu nome dentro dos meus sonhos. Foi aí que também encontrei a tua pele perfumada. Os teus dedos eram aves de primavera. Na tua boca ainda havia restos de canções. O vento despiu-te a camisola e ficaste exausta como a respiração de um peixe fora de água. Por isso, os meus versos são contundentes, cobertos de gestos, sulcados pela solidão e pelas paisagens abandonadas. O teu nome é agora mais vagaroso, parece uma porta que se abre pela manhã para entrar o sol. Frios são os batentes. No outono, as pedras agasalham-se no manto de musgo, enquanto a água das fontes desce pelo monte e o vento viaja junto aos muros. Algumas palavras queimam os lábios e o amor e a saudade. Os dias decalcam-se uns dos outros. Na mesa cresce agora o pó. A casa traja de cinzento e dentro dela desenha-se o tamanho da tua ausência. As janelas abrem-se diretamente para a solidão. Outro é o tempo, a luz segmentada, a porta onde já ninguém bate. O medo é uma outra espécie de sombra. A tua distância transforma-se em ferida. Afasto a dor como quem esconjura punhais. Perguntam-me então pelo caminho, falam-me da mortificação das montanhas, da água que galopa os rios, das nuvens que compõem as paisagens, das fendas que gemem na noite, dos penhascos, das margens das cidades que apodrecem, da terra que treme, do nevoeiro que cega, do peso do medo e das mágoas. Os sonhos seguem os mesmos passos. Tudo o que agora resta é uma caligrafia trémula de desabafos, uma espécie de carta de despedida, uma espécie de noite efémera polvilhada pela solidão. Houve tempos em que quis ser um barco, para abraçar as ondas, para perceber o sorriso do medo, para partir sem me perder nos enleios. Ninguém socorre o vento nem corrige as embarcações perdidas. Tenho o rosto debruçado sobre o teu olhar. As aves atravessam a manhã perseguidas pela exatidão dos espelhos. Procuro ainda a lei poética das cornucópias, toda a matéria contida nos paraísos, a ambiguidade das estrelas, o código da ansiedade, as cidades que levitam, a roda mecânica do futuro, o oráculo preciso das emoções, as imagens refletidas nos abismos, toda a utopia da luz. Os profetas já não perdem tempo a dividir o mundo, preferem deixá-lo entregue às metáforas. Toda a loucura procura a certeza, a balança desequilibrada da eternidade. No panteão já não habitam deuses e a anunciação já não necessita de anjos. O amor transforma-se em sede e em tristeza. O tempo está cheio de rumores. Os gritos possuem um peso específico. Vou viajar para longe para romper o caminho da luz em busca da minha terceira alma. Partirás ainda antes da mordedura do silêncio, quando a neblina escreve por mim a poesia das coincidências. As palavras repetem a inércia das montanhas, o desejo dos teus lábios, a saudade das casualidades. Guardo o meu desejo no abrigo do teu corpo agitado, lá onde se esconde a serena pressa dos caminhos. Olho-te na luz azul da tranquilidade. As manhãs pertencem-nos. Já não temos vergonha, nem da espera, nem do regresso. A voz clara dos livros soa como uma tempestade de sereias. Enaltecemos o privilégio de decidir. Leveda o pão e o vinho mais ácido. Os amantes aparecem nos lugares vagos da memória. Todos somos biografias incompletas.

22
Jan18

376 - Pérolas e diamantes: Lenine, o Ditador

João Madureira

 

 

 

Terça-feira, dia 23 de fevereiro de 1917 (pelo calendário juliano, utilizado na Rússia czarista), Dia Internacional da Mulher, data marcante para os socialistas de todos os matizes, milhares de russos reuniram-se junto às pontes e ao rio Neva, do lado de Vyborg, e outras zonas industriais e marcharam até à Perspetiva Nevsky exigindo pão.

 

São Petersburgo transformou-se então num autêntico barril de pólvora.

 

“Marchons! Marchons!”, ululava-se a plenos pulmões. Ouvia-se a Marselhesa cantada como deve ser, com ódio puro, como dizem os entendidos. Nas zonas fabris, as greves alastravam como uma praga. Os confrontos com a polícia tornaram-se inevitáveis.

 

No lado distinto da cidade, a vida continuava como se nada fosse. O Teatro Alexandrinsky, a algumas centenas de metros dos tumultos, teve nessa noite a sala cheia para assistir à comédia de Nikolai Gogol O inspetor do Governo, uma história sobre corrupção, incompetência e ilusão na época dos Nicolaus (I e II).

 

No fim de semana os transportes pararam, as lojas fecharam e os saques tornaram-se frequentes. Quando a polícia usou os sabres contra a multidão, as tropas cossacas e os regimentos da Guarda ficaram do lado dos manifestantes.

 

Quatro dias depois, ao cair da noite, o regime czarista tinha perdido o controlo da cidade, exceto o Palácio de Inverno e alguns edifícios governamentais.

 

Bert Hall, um aviador americano, adido da força área russa, escreveu no seu diário que a “revolução foi liderada pelo acaso, sem organização e sem líder”. A cidade estava “cheia de pessoas famintas que já tinham aguentado tudo e preferiam morrer a tolerar o czarismo por mais tempo”.

 

O czar abdicou a 2 de março. Parte do parlamento ocupou uma ala do Palácio de Inverno e transformou-se num governo provisório. A outra parte foi invadida pelos sovietes que tinham maior influência sobre o exército. A dualidade de mandos originou o inevitável duelo pelo poder. O país caiu na guerra civil.

 

Camponeses armados com forquilhas saquearam as casas abastadas e apropriaram-se de bens e de terras. As comissões de trabalhadores passaram a controlar a maior parte da indústria de defesa. No exército deixou de haver disciplina. Os desertores passaram a vaguear pela Rússia.

 

Entretanto, o líder do Governo provisório, Alexandre Kerensky, decidiu montar uma ofensiva contra os alemães que rapidamente se transformou num desastre de consequências catastróficas.

 

No meio da confusão e do desnorte, apareceu Lenine. E, para mal dos nossos pecados, nem sequer se importou de contradizer a tese de Marx de que seria impossível uma revolução num país como a Rússia rural e feudal.

 

Sabemos agora que durante três décadas, este revolucionário foi um falhado, passando a maior parte do tempo no exílio entre Munique, Londres, Paris e vários locais na Suíça (Berna, Genebra e Zurique), conspirando incessantemente e escrevendo sobre a revolução, mas deixando a prática revolucionária para os outros.

 

Lenine tinha tendência para nunca estar no sítio certo há hora certa. Estava fora da Rússia durante as revoltas de 1905, o mesmo lhe sucedeu quando a guerra rebentou em 1914, e ainda outra vez quando os revolucionários derrubaram o czarismo em fevereiro de 1917.

 

O jornalista e investigador Victor Sebestyen defende que esta sua vida de frustração teve reflexos na sua saúde física e mental. No seu livro, Lenine, o Ditador, descreve com acuidade a forma como este homem cruel, dominador e, muitas vezes viciado, dependeu de três mulheres: a mãe, Maria Ulyanova, a sua mulher, Krupskaya, e a amante francesa, Inès Armand.

 

Enquanto a Rússia ardia em fervor revolucionário, a Alemanha do kaiser, ansiosa por minar a máquina militar russa, veio em seu auxílio, e transportou-o até à sua terra natal num comboio selado.

 

Mas as coisas complicaram-se de tal maneira que, quando os protestos contra o Governo provisório subiram de tom, Lenine fugiu para a Finlândia, dando origem a amargas acusações de cobardia por parte dos seus apoiantes.

 

Três meses depois, regressou a Petrogrado pela calada, para intimar o Comité Central bolchevique à revolta armada contra Kerensky e o Governo provisório.

 

O que se passou a seguir, todos o sabemos: Lenine tomou o poder em nome dos operários e camponeses e lançou a Rússia numa sangrenta guerra civil de onde nasceria a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

 

Como  Sebestyen refere, “nada desmente mais a ideia marxista de que são as forças sociais e económicas e não os indivíduos que fazem a história do que a revolução dirigida por Lenine”.

 

Todos conhecemos a devastação por ele provocada. A sua múmia encontra-se num mausoléu da Praça Vermelha, onde recebe a visita de milhares de pessoas todos os dias. 

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