Festa dos Povos - Chaves
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Uma coisa, segundo André Canhoto Costa, autor do livro Os Vícios dos Escritores, separa Shakespeare de Camões. O primeiro, como bom britânico, queria criar público para ganhar dinheiro, enquanto o nosso poeta pretendia, como é compreensível, bajular um rei, construir pateticamente um sentido patriótico de povo e inscrever o seu nome na galeria dos poetas imortais.
Camões podia incluir-se no grupo dos escudeiros. Não era fidalgo, mas ser escudeiro era uma função antiga que consistia em ajudar o cavaleiro a armar-se e a montar. Ou seja, Camões era uma espécie de Sancho Pança. Nos finais da Idade Média, os escudeiros confundiam-se com os cavaleiros, dado que na guerra eram por vezes mais eficazes.
Também Vasco da Gama, mais tarde conde da Vidigueira, era um escudeiro, filho de um oficial da fazenda.
Ou seja, Camões estava entalado entre a alta nobreza e um bando de nobres que não tinham onde cair mortos. Teve uma infância misteriosa, tão misteriosa que há historiadores que o “fazem” nascer em Vilar de Nantes. Não andou na universidade, ou, pelo menos, não existem registos que o comprovem.
Por incrível que pareça, tal como Shakespeare, Camões sabia pouco latim e ainda menos grego. Mas de uma coisa temos a certeza, leu os poetas: Petrarca, Garcilaso, Boscán, Bembo, Sanazzaro, Ariosto. E também as crónicas do reino. E os filósofos.
Camões foi criado na casa dos Noronhas, onde serviu D. Francisco e D. Violante e frequentou vários palácios. Naquele tempo era costume muitos jovens com certa aparência de nobreza, mas sem grandes posses, a não ser as do talento, terem acesso à mesa do rei e serem frequentadores das grandes casas do reino. Aprendiam letras e faziam companhia aos filhos dos aristocratas, desempenhavam o papel de companheiros de brincadeira e, entretanto, aprendiam a nobre arte de não contar nada e de sorrirem quando os questionavam.
Camões foi um desses, mas depressa começou a perder o sorriso.
O historiador do século XIX, Oliveira Martins, no seu livro Camões, fala na trilogia típica da juventude do poeta: mulher, mesa e amigos. De facto, Camões participava num certo luxo, exibindo as camisas bordadas, as ceroulas de chamalote, as carapuças de solear e os chapéus de abas exageradamente largas.
Andava bem vestido. Mas, mesmo assim, adquiriu fama duvidosa. Talvez a sua ilusão o tenha levado a tomar liberdades perigosas. Ganhou a reputação de poeta boémio. Chamavam-lhe o trinca-fortes. Frequentava tabernas, locais dissolutos em Alhos Vedros e no Barreiro e andava até por casas de boticários, o que talvez indiciasse algum interesse por substâncias alucinogénias.
A sua vida era passada na companhia de fidalgos e também por grupos de escravos, mulatos e negros.
Segundo André Canhoto Costa, Camões poderá ter sido bastardo ou judeu, que por causa das gajas e das zaragatas perdeu um olho, e também um homem que por causa do seu desejo ardente lixou a vida. Foi condenado ao exílio e enviado para uma terra sem mulheres. Poderá haver maior desterro?
Foi ainda ladrão e um vigarista pouco talentoso com algum jeito para as contas.
Já Frederico Lourenço, o exímio tradutor da Épica Grega e da Bíblia, avançou, numa sua desconhecida obra de ficção, com a tese de um Camões homossexual. Era o que mais nos faltava.
Por seu lado, e seguindo a tese de André Canhoto Costa, o professor Aguiar da Silva, na sua obra crítica sobre José Hermano Saraiva, intitulada Camões: Labirintos e Fascínios (1994), não acrescenta grandes explicações para algumas “das dilacerantes queixas de abuso, apresentadas por Camões na sua lírica, para lá de uma enxurrada de citações clássicas. Com efeito, Camões nunca se cansa de nadar numa torrente de sadomasoquismo atormentado, perseguições, erros, culpas, prisões e desterros.”
A grande questão do autor é sobre se será possível um louco poder escrever uma obra-prima. Os especialistas dizem que a vida dos autores não encerra nenhuma utilidade para compreender os seus livros.
No entanto, os estudos sobre as grandes obras literárias acabam sempre por explicá-las através da vida e personalidade dos escritores.
Este livro revela-nos que, por exemplo, Kafka foi sempre um hipocondríaco vegetariano com um gosto suspeito por menores; que Eça de Queiroz era um vaidoso mulherengo com tendência para o cinismo; que Camilo Castelo Branco tinha tendências maníaco-depressivas e uma forte propensão para o jogo; que Dickens manteve uma amante secreta e expulsou a mulher de casa; que Gogol era um fanático religioso e um homossexual reprimido; e que Dostoiévski arruinou financeiramente a família no casino.
Junto os retalhos das palavras inquietas, aquelas que as metáforas esquartejaram quando suspiravam por leituras de viagens e comiam sofregamente as frutas mais maduras, as rosas mais vermelhas, as madrugadas mais débeis e as margens dos rios mais profundos. Dedilho o desejo na intimidade, no aconchego da lareira, emudecido pela tarde fria. Dedilho o desejo, o teu encanto, o gosto do teu sexo. Memorizo o orvalho, o cicio dos pássaros nos salgueiros, a serena quietude dos teus beijos, as tuas coxas delirantes. Lembro-me de colher cerejas, de vindimar ao sol, de sentir o fresco odor do teu cabelo. Os medronhos lembram-me o pecado, o sabor ácido das horas, o mosto das manhãs, o estio, as juras e os testemunhos, o delírio, a loucura e o êxtase. Navego na mesma nave bravia que já foi do Torga, desde Galafura até ao infinito. Os meus lábios provam os teus seios. Ouvem-se gritos suaves e cânticos de delírio nos retábulos da saudade que se torna inquieta. A clepsidra está repleta de espaço e de tempo. Um dia destes o conto será outro. O futuro está ali à nossa espera. Depois da tempestade virá a bonança, a volúpia e a utopia da verdade. Chove água miúda na terra quente. A promessa de inverno é uma ideia calma. Nos beirais, o sincelo juntar-se-á ao colmo e aos pensamentos mais dolorosos. Meruja mansinho no campo. A chuva de outono virá cheia de lamentos. Recolhe-se a lenha brava, lá mais em baixo rodopiam as folhas frias. Esperamos pela noite. O fascínio transcende a vontade. Abrem-se então os rios e os horizontes. Uma garça-real faz um voo rasante. O fulgor ganha sentido comum. O teu sexo cheira a rosmaninho. A ternura ganha a forma de uma viagem metafísica. O desejo veste-se de fogo e a luxúria transforma-se num orgasmo louco. O tempo fica morno na hora das trindades. No campo as giestas, as estevas, as urzes e a erva doce dançam ao sabor da brisa. Descem sobre a aldeia olhares indiscretos. O tempo cansado afaga o aroma breve dos lírios. Descansamos os corpos ao lado da ternura, onde o dia tarda. Corre serena a água no meio das pedras, o rio deixou de se lamentar. As sombras são agora redundantes. Aguardamos pelo fogo, pelo lamento dos salgueiros, pela súplica dos momentos, pela iluminação voluptuosa das distâncias, pela pose florida das giestas e das carquejas, pela serenidade dos pensamentos interditos, pelos mil e um aromas dos sentidos. Respiro o teu olhar lá onde a esperança se semeia junto com o centeio, onde se amanha a terra, onde as searas são promessas cumpridas. Começa a doer-nos a solidão do outono, os umbrais das portas que não se abrem, as pedras escurecidas, a penumbra nostálgica da névoa, as velhas casas, os tecidos por bordar. No outro lado da manhã caem gotas de orvalho, os sonhos repetem-se e as palavras enlouquecem. A saudade é agora uma espécie de alimento onde se cruzam a dor, a esperança e a consternação. A noite fica repleta de estrelas que não riem. Sinto-me um cavaleiro andante em desassossego. Coitado do Rocinante. A loucura é lívida, os delírios eloquentes, as bebedeiras aveludadas. Dos beirais caem gotas de chuva e palavras angustiadas. Vibra a noite. As emoções são delineadas em forma de silhuetas breves. Começam a morrer os anseios e as flores mais rápidas. A alvorada virá em forma de insónia, louvor ou serenidade. Amanhã é o dia de ceifar as Dulcineias.
Em 2018 comemora-se o bicentenário do nascimento de Karl Marx, coautor, com Friedrich Engels, do Manifesto Comunista, a bíblia, ou o alcorão, se preferirem, dos revolucionários de todo o mundo durante mais de um século.
O que hoje conhecemos como marxismo-leninismo tornou-se dogma do Estado Soviético e de todos os verdadeiros revolucionários seus sucessores, como Mao Tsé-tung, a meados do século XX, e Fidel Castro, em 1959.
Mas todo esse esplendor dos amanhãs que cantavam implodiu com as revoluções de 1989/91. A queda do muro de Berlim arruinou a crença no comunismo global.
Karl Marx nasceu em Trier, na Alemanha, a 3 de maio de 1818. Era filho de um advogado judeu. Como se costuma dizer agora, o jovem Marx radicalizou-se quando estudava em Bona e Berlim. Passou a década de 1840 a lutar “contra o estado cristão da Prússia”, no papel de agitador e jornalista. Fugiu para Londres após as abortadas revoluções europeias de 1848/9, conhecidas atualmente como a “primavera dos povos”.
O Manifesto Comunista, terminado em 1848, mais não é do que a quintessência intelectual desta fase da sua vida.
O Manifesto descreve o denominado espírito insaciável do capitalismo por “uma constante expansão do mercado para os seus produtos”, disseminando-os “por toda a superfície do globo”. Segundo Marx, foi esta exploração global que impôs um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países, conseguindo que a indústria ultrapassasse os espaços nacionais.
Para o filósofo alemão, “a burguesia, durante o seu reino de poucas centenas de anos, criou forças produtivas maiores e mais colossais do que as de todas as gerações anteriores”. No fundo, Marx estava a falar da globalização, vendo-a como um fenómeno potenciador da revolução mundial.
Por incrível que pareça, o autor do incompleto O Capital, viveu durante as décadas de 1850 e de 1860 do dinheiro proveniente da “exploração capitalista” efetuada nas fábricas de algodão do pai de Engels, em Manchester. Foi também esse dinheiro que proporcionou a Marx, e à sua esposa, o estilo de vida burguês a que aspiravam “para bem dos seus filhos”.
Mas foi Lenine quem começou a desbravar caminho para o triunfo das ideias de Marx. Para isso, em vez de divulgar os grossos livros do mestre que ninguém lia, usou o trunfo do panfleto político.
Em Imperialismo Fase Superior do Capitalismo, Lenine alega que, tendo o mundo mudado desde os dias de Marx, a teoria também tinha de mudar.
Por isso, Lenine decidiu atacar. Levou a cabo um golpe de estado bolchevique contra o que era o sentir da maioria do povo e até dos seus camaradas. E condescendeu mesmo em assinar o humilhante tratado de paz de Brest Litovsk.
Sucedeu-lhe Estaline, o expoente máximo da política externa dualista, pois chegou a assinar um pacto de não agressão com Hitler, afrontando todas as “verdades” instituídas pelos marxistas-leninistas. Nunca a história tinha registado ato tão vil entre dois ditadores tão brutais.
Sucedeu-lhe Nikita Khrustchov, que tentou tornar a sua pátria parecida com o capitalismo americano.
Seguiram-se algumas múmias até ao aparecimento de Mikhail Gorbatchov, um reformista impaciente, que decidiu abandonar o dualismo pragmático. As suas grandes reformas originaram o desmantelamento da velha ordem soviética sem, no entanto, ter uma ideia concreta de como a substituir.
Em 2017, a Rússia faz parte integrante da economia global, apesar de evidenciar uma versão do capitalismo oligopolista e inerte.
Vladimir Putin, apesar de não ser comunista, considera que a Rússia, tal como nas eras czarista e soviética, necessita de uma liderança autocrática para não cair na anarquia.
Apesar disto tudo, o dilema de Marx mantém-se. De um lado, assistimos à fecundidade do capitalismo global na criação de riqueza. Do outro, é visível a redução do trabalhador a um pequeno fragmento de pessoa que arrasta atrás de si as promessas de uma vida instável, sem futuro e com um salário que chega à justa para sobreviver. Quando chega.
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