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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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15
Fev18

Poema Infinito (392): A debilidade

João Madureira

 

A terra está débil. As flores transfiguram os campos e as casas. O chão perdeu o medo. É uma ilusão de maio, quando os comboios se afogavam sozinhos nas curvas, inundando os carris, vendo os velhos irem de fato à missa e as velhinhas a proteger-se nas chamas das velas gastas. As pequenas árvores assemelham-se a círios e os teus dedos sugerem o céu onde voam pequenos tordos que por vezes tocam a terra e pousam a cabeça no teu olhar. O trabalho de jardim é cada vez mais efémero. Antigamente corriam os rios como se fossem veias ininterruptas, benziam eucaristicamente as flores e a neve angélica fazia pequenina a vida. O agosto era ceifador. O campo costumava dormir uma espécie de sono inteligente. As cegonhas voavam silenciosas. Outras aves descuidavam-se ao bater as asas. As searas acordavam em revolta pondo em evidência as numerosas espigas de centeio. As raparigas eram lisas e os seus sorrisos eram secos e brilhantes. As horas costumavam nascer nos relógios das igrejas onde os anjos da guarda guardavam as suas auras e os monges as suas sombras. Nesse tempo viam-se as certezas passar ao longe enquanto a terra dormia um sono implacável. Por vezes as mulheres tratavam da sua higiene pessoal banhando as partes mais íntimas na água morna dos rios. Diziam que os anjos lhes beijavam os ombros e os faunos as apalpavam de forma bruta. Desse tempo guardo memórias azuis. Aos domingos levanto a cabeça e fico a ouvir o rio a descer pelo meio das pedras. Agora escrevo sobre extremos e sobre semideuses que fingem navegar imaginando-se odres cheios de vinho. Os sinos deixaram de crescer junto às igrejas, os louvores são agora demasiado doces, demasiado justos e sem glória. Apenas as oliveiras são mais pacíficas. As noites correm muito perto da superfície do tempo, quase perfeitas, como um disco novo ou um segredo suspenso. Tudo tem início nas palavras. As imagens limitam-se a exibir as mãos abertas e os beijos adquiriram a forma de ânimos indistintos. As aves e os anjos perderam as asas e os humanos viciaram a coragem. Os peixes do lago parecem inválidos e deixaram de ter medo dos anzóis. O amor é uma espécie de coincidência virtual, consumido pela gratidão. As dores dos jovens parecem orquídeas de plástico. Eu continuo a amar o chão pelas manhãs, a absorver a lucidez enquanto durmo, a caligrafar níscaros, a ver nas sombras a expetativa do sol, a duvidar das certezas, a deixar-me assaltar pela tranquilidade, a manter-me aceso e a estar coerentemente ao teu lado. Sinto a carne dos teus beijos, as sementes no teu rosto, os anos no teu olhar. Já não guardo a memória do sítio onde nasci. Os objetos começam a desintegrar-se lentamente. Esqueci até as três formas possíveis de voar. Já nada ilumina a noite. A cidade escurece. Assumimos a dor. O vento passa depressa. A casa está sólida, mas as portas emudeceram. Alguém reza o terço enquanto no céu passam aviões a jato. Vai ser preciso aprender de novo a distinguir o bem do mal, a desejar os desejos, a bordar a felicidade em panos de linho cru, a conhecer as estrelas pela luz e aprender a ter tempo para beijar o corpo de quem amamos. Deixei de ter medo dos caminhos. Desfolho os malmequeres como em criança. Sinto o teu rosto e a tua vontade. O tempo está repleto de metamorfoses. Subo as escadas à procura da luz. Entro pela porta por onde devia sair. Caem-me as memórias aos pés e não as consigo apanhar.

12
Fev18

379 - Pérolas e diamantes: Trump até ao pescoço...

João Madureira

 

 

Eu bem desconfiava, afinal Trump não é um intruso, é simplesmente uma supermarca made in America.

 

Esta é, pelo menos, a tese do livro Dizer Não Não Basta, de Noami Klein. Em entrevista ao ípsilon, a escritora americana afirmou que Trump, por radical que seja, “é menos uma aberração do que uma conclusão lógica – um pastiche de praticamente todas as piores tendências dos últimos cinquenta anos”.

 

O livro é ainda uma denúncia ao modo como certo jornalismo se tornou refém, e mesmo parte ativa, da realidade como espetáculo. Como se os jornalistas também dissessem que a realidade faz parte do grande circo com que nos entretêm e nos deixamos entreter.

 

Trump enganou os americanos com a sua agenda económica. Todos nos lembramos de, durante a campanha eleitoral, por exemplo, afirmar que o facto de ser rico lhe permitia ser imune a pressões corporativas e por isso ia tirar as grandes empresas de Washington.

 

Tudo não passou de mais uma mentira. De facto, o loiro presidente dos EUA escancarou as portas a interesses privados poderosos. Fez com que as empresas petrolíferas aumentassem os seus lucros, retirando, ao mesmo tempo, cuidados de saúde para benefício das seguradoras.

 

A esquerda, na opinião de Noami Klein, limitou-se a “metabolizar Trump, como se fosse um intruso vindo de fora, um alien num sistema político que de outra forma estaria saudável, como se dissessem que sem Trump tudo estaria bem”.

 

A autora vê Trump como uma genuína criação americana, mesmo “sabendo que há muitos bons produtos made in America.”

 

Trump limita-se a ser um ator de comédia, uma caricatura muito exagerada de uma pretensa evolução da herança cultural e política dos EUA. Por isso é necessário entender o caminho que o levou a Presidente.

 

O problema, para a autora, está no facto de alguém “ainda mais perigoso do que ele vir a ser presidente depois dele”. Convém não esquecer que há na política americana gente pior do que Trump, “abertamente racista e mais competente”.

 

Tudo está a mudar rapidamente. Trump é, de facto, o primeiro grande Presidente Twitter, que governa à velocidade das redes sociais. O Presidente dos EUA criou uma espécie de “aceleração emocional”. E à medida que a sua agenda fica mais clara, ao contrário da agenda da oposição, mais preocupante se torna.

 

Trump não é apenas o legado do neoliberalismo, “é também o legado da supremacia branca profunda nos Estados Unidos que nunca foi devidamente questionada”.

 

Para Noami Klein, Trump “não é apenas o legado de Obama, mas também é o legado de Obama e de Bill Clinton no sentido em que Hillary Clinton foi desacreditada por muitos votantes brancos por causa do que o marido fez”.

 

Apesar de haver muitas coisas perigosas que estão a acontecer, também sabemos que é possível chegar aos eleitores com uma agenda distinta, mais igualitária, mais distributiva.

 

Todos sabemos a razão do êxito do neoliberalismo: pessoas terrivelmente zangadas com as políticas de austeridade, suscetíveis às campanhas do medo que lhes dizem que as alternativas são piores, que as alternativas representam o apocalipse.

 

Com Trump na presidência dos EUA é como se estivéssemos a assistir a um reality show.

  

Ele é mesmo capaz de adulterar factos e informações, ofender pessoas por puro capricho, fingindo que pode alterar a realidade. Trump é entretenimento. E, como sabemos, o entretenimento causa dependência e pode tornar-se perigoso. O que interessa é que as audiências continuem altas, muito altas mesmo.

 

Trump vive rodeado de uma elite de multimilionários e bilionários que acreditam estar imunes aos problemas que afetam o resto da humanidade. Acreditam que se podem salvar de um desastre planetário. O Presidente crê que a sua riqueza é capaz de o salvar dos impactos e fazer com que consiga ficar ainda mais rico.

  

Mas esta narrativa já vem de longe. Há quem considere que os bilionários são pessoas capazes de resolver problemas coletivos “por causa dessa equação de riqueza com independência”.

 

Antes, os grandes problemas coletivos eram tratados como problemas dos governos dos países ou de organizações internacionais. Agora os bilionários como Richard Branson e Bill Gates são vistos como figuras de grande boa vontade simplesmente por doarem parte da sua riqueza e por terem sido capazes de a acumular.

 

Por isso é que em vez de movimentos de cidadãos temos as mais diversas organizações a competir por dinheiro. E a corrupção alastra. E os demagogos chegam ao poder.

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