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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

08
Fev18

Poema Infinito (391): A fuga do paraíso

João Madureira

 

 

 

O dia nasce espontâneo no meio da natureza. Um braço amigo passa negligentemente sobre os meus ombros. A encosta está coberta de branco. As aves fragmentam-se e ficam púrpuras. Gotas de chuva contornam as flores. Os verdadeiros poemas transformam-se em imagens. Os nossos corpos acordam amenos como as brisas. Cheira a maçãs, a hortelã e a ansiedade. Ninguém consegue demover a limpidez da angústia, a pulsação mística dos dedos ou desviar a nitidez dos olhos vigilantes das mães. Os machos e as fêmeas pronunciam juramentos de procriação. A avidez devora o dia e a noite. As horas ficam impetuosas. É de novo tempo de regressar ao paraíso. Lá os homens são menos cruéis, a timidez é mais feminina e os lábios mais decididos. Os enigmas libertam e iluminam-nos. O oceano avança, a multidão avança, o amor morre brevemente. Continuo a fazer longas viagens apenas para te olhar e te tocar. Receio perder-te. Os nossos olhares estão tranquilos. Tudo parece perfeito. Até a nossa imperfeição. As cidades chamam os grandes delírios. Muitos dos cânticos são sexuais. O tempo continua a enganar-nos. As metamorfoses são agora mais rápidas. Tornamo-nos plantas com raízes profundas, crescemos junto das clareiras, lá onde os rebanhos são selvagens. Somos por vezes peixes nadando nos rios cintilantes. A tarde fia repleta de perfume. Os bosques enchem-se de crepúsculos e gemidos. Muitas crianças ficam velhas de repente e olham para longe, para lá das montanhas e do tempo. Adão acorda cedo e sai nu do meio da folhagem. Eva, com a sua vagina em repouso, toca-lhe com receio e contempla o seu pénis trémulo. Decidem então percorrer os caminhos inexplorados, abdicar dos princípios conhecidos, dos prazeres e dos benefícios. Decidem alimentar-se de almas, encher-se de alegria e aprender línguas aromatizadas. Os seus peitos enchem-se de flores perfumadas e de delicadas folhas. Nas mãos florescem-lhes os anos. Aprendem que a felicidade é amarga, que a vergonha é inútil, que todos os exemplos são ecos do passado. Sabem que a verdade se esconde sempre por detrás de uma máscara de utilidade. O seu tempo não há de durar muito. Por isso dão as mãos e falam de coisas inúteis, de lealdades diferentes, de afetos suspeitos, de resultados incertos, de caminhos destruidores, de modelos esgotantes, de bibliotecas mudas, dos nascimentos tímidos e das ilhas silenciosas. Permitem-se pôr os lábios em riste e dar longos beijos de volúpia e desespero. Tocam-se e depois adormecem silenciosamente. O seu arrebatamento é eterno. Assimilam então o amor e a alegria e também a sua tristeza. Nos bosques, as árvores ficam densas e longas. Os jardins ficam ainda mais breves. Flores silvestres acumulam-se nos lameiros alimentados pelos córregos. Espessas nuvens de espíritos sobem no ar. A raiva fica então insatisfeita, reprimindo os suspiros e as juras e as promessas quebradas. Adão e Eva são então invadidos pela terrível dúvida das aparências, pela incerteza das ilusões, pela especulação da confiança e da esperança, pela densidade das cores, pela beleza aparente das fábulas. As aparições são agora frequentes. As palavras perdem metade do seu sentido. O espírito e a memória são a conclusão de toda a metafisica. Tento adormecer de novo. A luz ficou mais débil e o desejo mais real. Tudo à nossa volta é espaço e tempo. Tudo é longo como a morte. A tempestade amainou. A paixão treme de novo em mim.

04
Fev18

378 - Pérolas e diamantes: O sex appeal de Lucia Berlin

João Madureira

 

 

Também a mim me chegou o tempo de descobrir as histórias de Lucia Berlin, que dizem convulsas, mas que estão repletas de pequenos milagres e de algumas tragédias de vida, sempre servidas com humor, melancolia, empatia e vivacidade.

 

De facto, a escritora nascida no Alasca é uma verdadeira revelação, conseguindo ombrear com os melhores contistas, tais como Raymond Carver, Flannery O’Connor ou Juan Rulfo.

 

Durante a sua vida publicou setenta e seis contos, que são toda a sua obra.

 

No seu livro Manual para mulheres de limpeza aprendemos coisas tão elementares como o sex appeal, protagonizado por Bella Lynn, uma prima de seios grandes que parte à conquista de Hollywood.

 

Ao que parece, quando o avião chegou a uma certa altitude, por causa da pressão da cabine, o soutien da Bella rebentou. Ou melhor, explodiu.

 

Tal como a narradora, que por vezes podemos confundir com a escritora, eu nada sabia sobre sex appeal. No entanto, parece que o sexo, em si mesmo, tem qualquer coisa a ver com estar-se zangado. “Os gatos mostravam-se zangados com tudo aquilo, e todas as estrelas de cinema pareciam zangadas. Bette Davis e Barbara Stanwyck eram absolutamente maldosas.”

 

Um princípio básico do sex appeal, segundo a prima Bella Lynn, é agir sempre sozinha. Quando lhe chamaram a atenção para o facto das costuras das suas meias de seda pretas estarem ligeiramente tortas, ela ensinou a priminha que as tais costuras ligeiramente tortas tinham sex appeal.

 

Já o sex appeal dos homens reside no facto de olharem na direção das donzelas que cortejam fingindo que não olham. Por isso é que acabam sempre a pagar, nos bons restaurantes, o bife do lombo.  

 

Lá pelo meio do livro aparecem adolescentes malcriados que, apesar disso, choraram com a morte do Jimmi Hendrix e com a da Janis Joplin. Lembrando-nos que no Novo México, a década de 60 foi carregada de mau tempo, neve, canos congelados e atuações dos Rolling Stones e dos Doors.

 

Esses adolescentes ouviam música alto, queimavam incenso violeta que cheirava a xixi de gato, usavam botas pesadonas, tocavam guitarra e praticavam tiro ao alvo com latas de cerveja no quintal.

 

Além de malcriados, eram, quando lhes dava jeito, silenciosos como guerrilheiros e passavam muito do seu tempo deitados, a enregelar, no meio do nevoeiro.

 

Nessas alturas, “as aves partiam, em brancura, produzindo o som de cartas a serem baralhadas”.

 

Nessa época de sexo, drogas e rock and roll, as clínicas de desintoxicação, sobretudo em West Oakland, costumavam funcionar em armazéns.

 

Um típico personagem de um dos contos, de seu nome Willie, diz, para nosso pesar, “que tinha gostado da Europa porque lá os brancos são feios. Carlotta não compreendeu o que ele quis dizer, mas depois apercebeu-se de que as únicas pessoas que os bêbados solitários veem são as da televisão”.

 

Os traços melancólicos são muitos e variados. Alguns revelam-se no momento do Sol se pôr enquanto os hóspedes de um hotel solitário comem o seu pudim e um diz, com os pelos em pé: “Quando os nossos pais morrem, ficamos frente a frente com a nossa própria morte.”

 

São personagens capazes de retirarem espinhas a trutas e de incendiarem sobremesas. Ou golfistas que têm pesadelos quando veem a sua bola a afastar-se do buraco. Ou ainda jovens cadetes que, enquanto a orquestra toca La Vie en Rose, dançam sem parar, às voltas e voltas, no chão encerado.

 

Claro está que neste “Manual” se exagera muito, se mistura a realidade com a ficção, mas, sinceramente, nunca se mente.

 

“Na verdade, podes mentir e, ainda assim, dizer a verdade.” Todos os contos de Lucia Berlin são “pirilampos numa árvore que acendem e apagam como um só”.

 

Querida Lucia, termino citando uma das tuas personagens: “Estou Feliz. Quando acordo, de manhã, dói-me a cara de tanto rir.”

01
Fev18

Poema Infinito (390): O lenho da redenção

João Madureira

 

 

Tenho as mãos cheias de tempo e de fumo.  Nas casas cresce o coração das montanhas. Agora todos os raciocínios são inúteis. Os sítios da nossa infância insistem suavemente na direção das cidades. As flores evitam o quarteirão do inverno. Quando chegar, a primavera estenderá novamente uma toalha de esperança. O vento assobia na tarde, alguns homens sentam-se à sombra dos ciprestes. Nos seus olhos cresce o deus do desespero. Parecem crianças desprevenidas. Invade-os a mesma surpresa, o mesmo amor cansado, a mesma insatisfação dos corpos, o mesmo algoritmo das estações do ano, a mesma água do outono das árvores. Apesar disso tudo, não conseguem chorar. Os seus gestos mais íntimos são os seus principais inimigos. As plantas e as crianças crescem por dentro dos dias. A impossibilidade de um outro passado torna impossível um novo futuro. Os pássaros transformam-se em símbolos. Anoitece dentro do meu sonho. O mar está sempre no mesmo lugar. O mar e o lugar onde nascem os homens. De novo se prepara a morte de Cristo. O mesmo medo cresce dentro das mulheres. A mesma técnica será aplicada. A mesma última hora será repetida, a ruas sofrerão a mesma orientação, o sangue coagulará ao longo dos passeios, o silêncio e a indiferença dos néscios terá o mesmo valor. Nos mercados vendem-se e compram-se as mesmas palavras. Até os sentimentos possuem a mesma configuração. Os acusadores exigem mais espaço para observarem o martírio. Exigem mais vontade no sacrifício, mais tenacidade no castigo, mais chicotadas no corpo indispensável do condenado. O tempo vai de novo devolver os gestos de arrependimento aos traidores, afastá-los dos caminhos do Senhor. Eles são como crianças que poupam nos gestos porque não sabem perder. As tardes continuam a ser os sítios mais precisos dos domingos. A cruz lembra-nos tudo menos a fidelidade. Afinal, o que podemos mostrar uns aos outros que não nos envergonhe? Aproximamos os lábios e queimamo-nos. Todos nos sentimos estrangeiros em Cafarnaum. Regressamos então ao páramo de Jerusalém. Os nossos amigos oferecem-nos o tempo que continua a nascer na velha arca perdida. Cruzamos as ruas onde nasce e desagua a esperança.  O povo continua a baixar os olhos quando os vendilhões transpõem os portões do templo. Já não sabemos qual é o aspeto do nosso rosto. Todos amam dentro do preço combinado. Uns bebem vinho, outros preferem ingerir o cálice da sua própria ira. Estendemos os braços para os dias que se aproximam. As paredes da velha casa parecem ainda mais sólidas. Agora que ninguém vive lá dentro. Todos regressam pela estrada de Sião, encostados ao seu desejo, à sua amargura, ao seu silêncio de pedra e cal. Cristo parece transfigurado. Deus parece ofendido. Os poetas fitam a morte despedindo-se dos amigos. Sabem que morrerão na curva perigosa dos dias, encostados ao outono, olhando o risco do tempo. Os seus gestos não representam nada. Os olhares dos pecadores descrevem a mesma órbita das oliveiras. As palavras molham os pés dos pescadores da Galileia. A chuva adivinha a orientação das suas mãos. Continuam a lançar as redes à procura de peixe. Cai-lhes no corpo a neblina da solidão. Coisas gloriosas saem-lhes de dentro da alma. Afinal, a cruz de Cristo não era mais do que um lenho carregado de dor, sofrimento e redenção. Aleluia.

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