Na aldeia
Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
Fui com o vento Sul, carregando as sementes brilhantes, com os olhos empapados de desejo. Ouvi distintamente os soluços da minha mãe, os sorrisos cativos da Lua, os contos enrolados na noite, os gemidos dos salgueiros apaixonados, os balbucios das auroras trémulas e as lamentações dos espetros alucinados dos meus heróis de Banda-Desenhada. Cheguei então ao teu corpo. Rimo-nos aos gritos. Dizias-me que juntos podíamos polir as estrelas. Depois vieram as brisas, os duendes e o vento. As tempestades eram provocadas por flautas. Agora as lembranças são desenhadas com os trinados das aves que se abrigam nos ramos das árvores mais rudes. Pensávamos que as multidões possuíam a força e a clareza dos ventos. É inútil queixarmo-nos. Os deuses não reparam em nós. Até a luz corta rente as asas dos anjos. Nasce-nos uma espécie de tristeza molhada, que habita perto da nascente das ideias. A beleza ganha nova definição, quando os flocos de neve acariciam as rosas brancas. Daí brotam os arco-íris e as sombras transformam o manto branco num eterno sudário. Virá a seguir o degelo, a paz e os novos profetas que falarão da indulgência dos enganos e da esperança que se apaga e nos archotes que iluminarão, ou incendiarão, a Torre de Babel. Serão esses mesmos archotes que clarificarão os novos caminhos da terra. O azul é uma espécie de sonho que nos faz lembrar a inocência. O amor possui espinhos e outras coisas adormecidas. Também a água pura corre sobre a inércia das pedras. Em abril, as canções das crianças eram amenas e a sua alegria não tinha fundo. Caminhávamos na tarde entre as flores e as hortas, enquanto a água criava um novo caminho solitário. Os homens e as mulheres semeavam os campos. Os ciprestes da igreja floresciam. E nós contemplávamos os horizontes. Abril era então um mês divino que transportava em si o peso do sol e a essência dos ninhos. À noite, pronunciávamos o nome dos astros e bebíamos a luz do luar. Os nossos sonhos dormiam nos ramos mais altos das árvores, ou escondiam-se nos ocos dos troncos dos carvalhos. Agora sentimos mais forte o apelo das horas antigas e a pronúncia do nome dos sítios onde ficou algo da nossa infância. Pensávamos que iríamos mais longe do que nunca, mais longe do que as estrelas. Gostávamos de sentir a dolência da chuva mansa que nos inundava o corpo. Sabíamos que a paixão estava logo a seguir à primeira esquina do bairro. Com os dedos riscávamos o céu e imaginávamos pássaros feitos de luz que fugiam do ninho onde estavam prisioneiros. Os patos mudos pareciam cisnes feitos de ouro líquido. Pensávamos que o choupo velho do jardim movia os braços como se fosse o deus da tranquilidade. A tristeza agora vem em forma de carta, atravessando vagarosa os montes distantes. As rãs cantam nos charcos de outra maneira, os grilos já não saem do seu buraco. Os bosques, então repletos de sons, ficaram mudos. Neles apenas as aves mais poderosas voam a sua inquietação. Confesso que tenho sede dos aromas e dos risos de outrora, dos cantares que antecipavam as manhãs e faziam estremecer os remorsos quietos, ou das ondas provocadas pela esperança. Conforto-me com a alma dos ventos, com as árvores magoadas, com o sonho das distâncias, com a leveza da luz das auroras. Lembro-me que não sabia o que fazer com o teu olhar. Ainda hoje não sei. Nas tardes frias continuo a sentir o seu calor, a sua clareza. Esse era um tempo coberto de saudades em que a avó tecia os mistérios com o seu silêncio. Sinto de forma estranha as manhãs a murcharem, as folhas secas do tempo, os sonhos, os espectros quânticos das almas, o bicho da fruta das paixões, a voz queimada dos ecos, as migalhas que sobram dos beijos. O tempo desmorona-se.
Confesso que não sou um apreciador de líderes políticos, nem um seguidor de quimeras e, muito menos, me entusiasmam os militares e a sua arte de se imiscuírem na política. É tudo uma questão de ADN, apesar do meu pai ter sido militar na Índia, defendendo a fé e o império, e depois GNR.
Mas abro sempre uma exceção quando se trata de Ramalho Eanes. A sua integridade e a sua honestidade são características dignas de registo.
Ele esteve à frente do país, como Presidente da República, logo a seguir ao 25 de Abril (de 1976 a 1986), ou melhor, para os defensores da liberdade sem peias ideológicas, logo a seguir ao 25 de Novembro, do qual foi um dos protagonistas. Tomou posse com apenas 41 anos. Tem agora 83.
Aderiu ao MFA porque o feria na sua honra e dignidade a difundida “inevitabilidade de sermos um país pobre”.
“Éramos um país pobre”, disse ele ao Expresso, “tínhamos de continuar a sê-lo, estávamos na cauda da Europa, tínhamos de continuar aí. Esse princípio de inevitabilidade foi posto em causa por esta solução política. E conseguiu fazer uma coisa fundamental: reconstruir de alguma maneira a Unidade Popular”.
Considera o senhor General que renasceu a convicção de que trabalhando em conjunto vamos todos viver melhor, pois há crescimento económico e redução do défice. No entanto, os sinais preocupantes seguem presentes: o investimento continua extremamente baixo e as grandes reformas não foram feitas. É necessário substituirmos a cultura interpartidária do conflito pela consensualização.
É que a dialética esquerda-direita, que foi extremamente positiva no seu tempo, perdeu consistência, peso, dimensão e efeito. De facto, igualdade e a solidariedade, os dois grandes desígnios da esquerda, descaraterizaram-se.
A igualdade, segundo Ramalho Eanes, “acabou num certo igualitarismo perverso e acabou por aceitar-se que a solidariedade se fosse transformando numa espécie de solidariedade assistencial. Não é essa a tradição da esquerda”.
O trabalho político também tem descido de qualidade, porque os partidos políticos se transformaram em clubes seletivos e fechados, emersos na partidocracia, no qual o que conta é o aparelho.
O mundo de hoje é dominado por uma mistura feita de individualismo, no plano social, e ultraliberalismo, no plano económico. Ora, como se tem vindo a provar, para esta nova situação as medidas clássicas da esquerda não chegam e as que a direita defende são claramente insuficientes.
Além disso, uma sociedade incapaz de premiar o mérito tende a tornar-se decadente.
Em Portugal, a baixíssima natalidade vai trazer-nos problemas de toda a ordem, quer economicamente, quer socialmente. Desta forma não vai ser possível manter a segurança social. Dentro de poucos anos haverá três trabalhadores para dois reformados, o que é extremamente preocupante.
E a desertificação prossegue. A nossa população continua concentrada no Litoral, como se o Interior não existisse. E a nossa competitividade continua extremamente baixa. E a nossa dívida continua asfixiante.
O consumo, na sua perspetiva, também é motivo de preocupação. A questão não está no seu volume, está no seu destino. “Há portugueses que se endividam para ir de férias. Compreendo que se faça isso para comprar casa, no limite para comprar um carro, mas para ir de férias? Os portugueses não estão a refletir convenientemente sobre o que é o estado real do país, que não é rico e não ultrapassou a crise, porque ela persiste. Esta crise não é igual às outras, é de rutura. Exige novas respostas, novos métodos, uma grande mobilização e, naturalmente, muitos recursos.”
Ou seja, tudo indica que os portugueses não aprenderam o que deviam com a experiência recente. A procura exagerada de crédito, especialmente destinada a consumos supérfluos, não é saudável, nem virtuosa... É simplesmente estúpida.
Fácil é concluirmos que os sucessivos governos após o 25 de Abril não cumpriram o seu papel em relação ao Interior. Permitimos que esta parte de Portugal se fosse paulatinamente desertificando, através da eliminação da representação de diversos serviços nas localidades nela inseridos. Não se fez uma política de natalidade e não se criaram incentivos à fixação dos jovens.
A esperança, segundo o ex-presidente da República, vem-nos da União Europeia, pois tem feito um trabalho notável, criando condições para o acordo de Paris sobre o clima. Acredita que a economia mundial e a europeia vão crescer a um ritmo que permitirá criar condições extraordinárias para refazer a arquitetura europeia, dando-lhe uma estrutura “capaz de defender os valores matriciais através de uma operacionalização política sistemática”.
O intrépido general diz que quando se olha ao espelho, além de verificar que está velho, entende que está em paz consigo mesmo.
E termina a entrevista com uma confissão: “Posso ter cometido erros mas entendo que os cometi quase sempre com bom propósito, boa intenção, com uma correção ética preocupada.”
Ali está o velho pinheiro mutilado pela tempestade de outono. Ali está o velho tempo sem tempo para ser novo. Por vezes, o tempo envelhece subitamente como se quisesse morrer. O casebre onde nos recolhíamos da chuva e das tempestades lá continua na outra vertente, de costas voltadas para a aldeia. Tal como o casebre, também a minha memória está vazia. Os sentimentos são como visões, deixaram de ser abstratos. A solidariedade do mal continua a meter-me medo. Parece que Deus agora se contenta em plagiar o Demónio. Nada satisfaz a feroz ironia do abismo. Dizem que o Demónio, como uma espécie de Deus invertido, devora imediatamente os seus crimes e transforma-os em eterna mobilidade. O ar sereno da noite deixa-nos ouvir distintamente os quartos de hora no relógio da aldeia. O tédio devora as palavras exatas, consome o tempo, faz a água dos rios fumegar. A aldeia afunda-se na solidão. As crianças já não regressam à escola com os livros na sacola. A aldeia espera o seu enterro. Os sorrisos dos velhos já não enganam. As horas são de uma certeza mortal. O silêncio é perfeito. Só a presença da incerteza divina continua a devorar os séculos e as suas improváveis consequências. Continua a armazenar-se o vinho para dar cor à inconsciência. As brincadeiras transformaram-se em negócio. Dizem por aí que se devem prolongar as experiências para tranquilizar o tempo, para batizar a vergonha, para fixar a atenção, para serenar a consciência, para que o rigor deixe de ser inflexível. Lembro-me que fiz de ternura o meu primeiro esforço, que procurei na coragem o meu primeiro equilíbrio, que incorporei o sofrimento, que absorvi a primeira comunhão como a minha primeira indulgência. Comecei depois a protestar de alto a baixo. Não vale a pena ler os melhores livros se não fizermos um esforço por os compreender. Os sonhos de agora surgem em nós com a forma de conselhos, em forma de palavra de honra, cobertos de poeira, coroando as cabeças como se fossem o mesmíssimo Espírito Santo descendo sobre os apóstolos. E lá reluzem os erros e os anjos mais sólidos e os relicários das ideias dos poetas. A ilusão ainda é a mesma. A ilusão é eterna. Com a mania de darem cabo do Diabo, ainda vamos ficar sem Deus. Os imbecis ainda procuram misticismo nos lírios ou a inquietação em flores de papel. De nada lhes serve o calor do heroísmo. São ingénuos, dizem os ingénuos. Dizem que a música é uma espécie de verdade e que a verdade é uma espécie de música. Eu não acredito nessa segurança recíproca. É preciso trepar um pouco mais acima. Onde se põe agora o menino Jesus, onde se coloca a vaca, onde se instala o burrinho? Onde caralho se põem os reis magos e os pastores? O presépio já não tranquiliza ninguém, nem as bochechas rosadas do filho de Deus. José deu em bebedor. E a mãe do divino ser já não sai do casebre. As santas beatas continuam a assustá-la com a sua voz esganiçada. As palavras são uma nova forma de contrariedade. A tradição vem sempre fora de tempo. E a evolução é uma forma de angústia. O tempo da infância, de tão doce, tornou-se amargo. Agarramo-nos à vida como se ela fosse uma tábua algorítmica. Mas, todos o sabemos, não se podem calcular os milagres. Nem a inspiração. Nem a saudade. Os velhos parecem crianças enjeitadas, por isso a esperança vem-lhes em forma de espera. E quem espera...
34 seguidores
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.