No lagar
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O som acionado pelo teu cérebro amplia a velocidade do tempo. Em sentido contrário move-se o egoísmo estrutural da auto preservação. Os nossos estados mentais são em número superior às partículas elementares do universo. Já não conseguimos distinguir a alma do cérebro. O maior drama é termos consciência de nós e continuarmos limitados. Os homens e as mulheres nunca conseguirão chegar a deuses. A hesitação dos teus suspiros parece quase sobrenatural. A dádiva divina perdeu o seu segredo original. Somos duas pessoas noturnas absortas nos seus pensamentos. São quatro da manhã e a noite continuar a ronronar. O mundo exterior está branco como num conto de fadas. O luar torna nítida a paisagem, repreendendo a escuridão. Delineio as letras do teu nome na geada que se fez sobre o vidro da janela. A beleza inalterada dos montes abre fendas nas feridas do livro compacto das memórias. A terra continua a ser inundada por planaltos de luz e sulcada pela água da chuva. O silêncio invade o sonho breve dos animais. As recordações e a saudade que a elas se agarra são como relíquias que o avô nos pediu para preservar. Foi também ele que pediu para analisar o passado. Lembro-me de alguém abrir um mapa da aldeia e de eu colocar o dedo molhado sobre a Clérga e a tinta esborratar no sítio preciso da confluência dos rios. O mapa é demasiado abstrato, não consigo ver os caminhos que levam a terras galegas. Contemplo o céu na esperança cega de me orientar. Os pássaros mais pequenos continuam a escapar à indiferença dos deuses. As cartas parecem casas breves, salpicadas de hesitações e de regressos, de desgastes. A admiração é que continua incansável, como o sofrimento. Nas guerras, fecham sempre fronteiras. Olhamos para trás para ver se o tempo pode recuar. A voz do pai continua embriagada e melodiosa. As festas da família são sempre ruidosas. Os tios e primos mais chegados afastam-se sempre aos gritos. As guerras resolvem sempre o passado. Apenas o passado. O mais difícil é libertarmo-nos de nós próprios. Tudo parece uma questão de sorte ou de azar. A ingratidão e o engano faz-nos compreender o desaparecimento. Deus joga connosco às escondidas. As sombras resumem a sua mensagem. O mundo está povoado de instintos. A memória da mãe continua a ser uma surpresa povoada de referências, impregnada de tristeza. A sua imagem está cheia do reflexos e com os olhos marejados de lágrimas. Agora já não sinto nem vergonha nem medo delas. Tudo está prestes a desintegrar-se. Já não é possível voltar atrás, nem suspender o tempo, torcê-lo ou abri-lo. A noite continua amarrotada, desço as escadas traiçoeiras e passeio pelas ruas sossegadas em frente das casas silenciosas. Um carro fura o silêncio. Eu desvio-me com a lentidão dos velhos. As janelas continuam a afastar-se. As ruínas interiores competem com as exteriores. A indispensabilidade das coisas tornou-se dispensável. Estou a tremer e volto para casa. Estou rodeado de terra. O meu olhar dá de frente com um Jesus iluminado na cruz. Sinto pena. Por vezes a pena pode ser imerecida. É isso o que mais nos magoa. O olhar da minha mãe desliza rumo ao infinito. Tento ensinar-lhe o princípio da distância. Lembro-me que uma vez pedi ao meu pai que construísse uma lua. Ele disse que sim, com um cuidado muito frio. A sua perplexidade oscilou na minha frente. Depois levantou-se e atravessou o pátio com as mãos nos bolsos. A neve começou a cair depondo um fino lençol branco sobre as pedras do muro e sobre a terra do caminho. Neste preciso momento oiço a sua voz ao fundo do pátio. Depois tudo se desvanece. Tenho medo de nunca mais o encontrar.
Das entrevistas dadas pelos ex-presidentes da República ao Expresso, a de Cavaco Silva foi a pior. E também a melhor. A pior porque evidenciou a sua personalidade egocêntrica e mesquinha. E a melhor porque revelou o seu carácter reacionário, presunçoso e definitivamente medíocre.
Ele, um dos primeiros-ministros que mais contribuiu para o foguetório e o esbanjamento dos fundos comunitários, diz que não se ilude com os números do crescimento porque, na sua douta opinião de homem de pau (carunchoso), Portugal cresce menos do que os outros países da UE, mesmo num quadro de benesses externas.
Revela que não alinha nos foguetes de cada vez que sai um número do INE. De facto, o sr. Cavaco, quando os números são positivos, deve ter uma contração do estômago, deve ranger (ou esterrincar, como se diz na minha aldeia) os dentes e largar uma flatulência que não deve cheirar propriamente a rosas.
O azedume é mais forte do que a razão. Diz que é um homem de sorte. Talvez até seja, mas, na minha humilde opinião, a sua sorte foi sempre o nosso azar.
Elogiou Macron, Rui Rio, Passos e António Costa (e lá vai canelada), “um político muito hábil”.
Todos percebemos que o elogio ao atual primeiro-ministro não é elogio nenhum. O sr. Cavaco não quer dizer que a habilidade de António Costa é benigna, pois utilizou o adjetivo como querendo significar que é um homem tortuoso, que sabe manipular as pessoas e os meios de informação. Não o quer definir como apto, capaz ou ágil, mas sim como astuto.
Pensando bem, talvez diga António Costa, querendo designar Marcelo Rebelo de Sousa, de quem tem uma inveja imensa, disfarçada de indiferença.
Foi ele que, num dado momento, querendo referir-se a um seu companheiro de partido, afirmou que a má moeda vence a boa moeda. Eu até concordo com o dito, pois foi essa “força maior” a que lhe permitiu triunfar no partido, no governo e na presidência do país.
O sr. Cavaco foi um atraso de vida.
Na sua perspetiva de ave agoirenta, o sr. Cavaco considera que devemos corrigir os nossos desequilíbrios estruturais como forma de preparar o futuro. A saber: o enorme endividamento do país (que ele potencializou); a insustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (que ele dinamitou de forma tortuosa); a baixíssima taxa de poupança das famílias, que está a um nível historicamente baixo (ó sr. Cavaco, como é que alguém pode poupar se nem dinheiro tem para chegar ao fim do mês? Não se deve esquecer que “o seu menino bonito”, Pedro Passos Coelho, cortou nos vencimentos da classe média de uma forma escandalosa).
A simples ideia da reestruturação da dívida provoca-lhe pesadelos, por isso é frontalmente contra, pois podia levar os bancos portugueses à falência, o que seria uma situação dramática para o nosso sistema financeiro. O problema é que os bancos foram mesmo à falência e o sr. Cavaco nem disso se apercebeu. Além de termos de pagar a enorme dívida, atualmente também nos toca pagar a recapitalização e o financiamento do setor bancário.
Agora deu-lhe para citar várias vezes Emmanuel Macron. Diz que ganhou interesse pelo presidente francês ao ler o jornal que lhe chega diariamente, o Le Monde, e uma revista semanal, a L’Express.
Começou a ler os discursos do presidente francês e a sublinhar determinadas frases e encontrou algumas semelhantes às suas, escritas nas Memórias. Ou seja, em vez de ser Cavaco a ler Macron, afinal foi Macron que leu Cavaco e se aproveitou das suas ideias.
Cá para mim, o homem não se enxerga.
E citou-o: “Enquanto presidente, não podemos ter o desejo de ser amados, o importante é servir o país e levá-lo para a frente”.
Cá para nós que ninguém nos ouve, o sr. Cavaco aproveita as palavras de Macron para criticar o presidente Marcelo.
Segunda citação e mais uma alfinetada em Marcelo: “Estou a pôr fim à cumplicidade entre a política e os media.”
E ainda outra, esta direta ao Estadista dos Afetos: “Para um presidente, falar constantemente com os jornalistas, não tem nada que ver com proximidade com o povo” (ai não que não tem, o sr. Cavaco morde-se de inveja).
E ainda mais alguns dardos apontados e Marcelo: “A proximidade entre jornalistas e políticos é negativa para os jornalistas e para os políticos.”
Em relação à questão do posicionamento de Macron entre a direita e a esquerda é ladino: “Nem de direita nem de esquerda, porque de direita e de esquerda”.
O sr. Cavaco, nem a mão esquerda tem à esquerda.
Perguntaram-lhe a sua opinião sobre o exercício de funções do atual presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Cito a resposta, que é uma aldrabice pegada: “Tomei por princípio não fazer comentários nem sobre os meus antecessores nem sobre quem me sucede”.
Em duas coisas admito que tem razão: na nossa democracia notamos um afastamento crescente das elites profissionais, dos quadros técnicos qualificados, em relação à participação política e o sistema eleitoral dá um peso excessivo aos partidos, em comparação com o que dá às pessoas.
A autocrítica fica-lhe bem. Pena é que tenha vindo tão tarde e a tão má hora.
O teu olhar costuma acalmar a minha tempestade, dominar os ventos que nascem dentro de mim, acalmar as minhas marés interiores e deixa continuar a brilhar os pontos de sol que por vezes se refletem dentro da minha alma. É comovente a minha capacidade de te amar. Mesmo fustigados pelo vento, os frutos renascem devagar, desprendendo-se dos ramos das nossas mãos. Brisas poderosas anunciam maravilhas. O odor das camélias invade o jardim e a nossa nudez que por ali passeia. As palavras sagradas transformam-se em pétalas. Ou em pão. Ou em mentiras piedosas. No entanto, as crianças continuam a beber a água pura nos fontanários das praças. As suas mãos parecem taças douradas pelo sol. Desenhaste o teu corpo dentro dos meus olhos. Agora eles são como lagoas luminosas. Nas encostas da montanha, as uvas amadurecem ao sol. O amor é uma nova construção, uma nova estrada. Abraço-te com o mesmo carinho com que se fazem as curvas dos caminhos mais apertados. A arte está na forma de tecer a manhã, na melancolia entusiástica da aprendizagem, na medição dos sonhos, no entendimento dos segredos e na compreensão dos sorrisos. Gosto da acidez da tua pele, do calor dos teus lábios e do sabor perpétuo da ideia do paraíso. Cada vez renascemos mais devagar, como as flores trazidas pelo vento, como o pólen revelado pelo segredo da fecundação. Reaparecemos vagarosamente, como as brisas poderosas, como os gestos das crianças invadindo os jardins, apanhando as lágrimas depositadas pela chuva nas pétalas das flores. Pousamos então olhar nas árvores mais direitas que nos permitem fixar o deslumbramento das paisagens e recitar as preces da alegria em nome da terra abençoada. As flores não são abstrações, assim como os frutos são sempre a possibilidade feroz de uma outra árvore. A memória é outro tipo de ilusão. O brilho da noite orienta-me nos caminhos do teu corpo. Nele tateio a esperança. Uma língua de fogo transforma o corpo em desejo. Cobrem-se os corpos de beijos e os poemas de versos. O desejo é uma outra forma de esperança. Recolho-me dentro de ti e adormeço. As mãos reproduzem o firmamento, o corpo reflete calor, os teus olhos iluminam a noite. Repetes a palavra “amor” até ela fazer sentido. Dizes que existem palavras tão grandes como “amor”, palavras que possuem o mesmo sentido grandioso: imensidão, essência, eternidade, plenitude. E outras que evidenciam um sentimento único e verdadeiro: idealista, íntegro, renovador, precioso. E ainda outras que simbolizam a continuidade e a regeneração: profundidade, harmonia, envolvência, posteridade. A musicalidade da tua voz abre sulcos no meu corpo, deixando nele linhas incandescentes, onde depois o silêncio semeia a verdade. O nosso olhar fica fixo e cristalino. Os gestos são agora mais tranquilos, cingem o meu ao teu corpo. Lá fora, o rio transborda de vida e as árvores enchem-se de frutos. Cá dentro, as nossas bocas definem as memórias mais íntimas. Procurei as ondas do mar nos teus olhos. Sonhei que chegavas radiante de alegria e com as tuas mãos carregadas de espigas. Depois subimos a montanha transportando o elmo de ouro. O azul iluminava o céu. A razão reconstrói sempre a vida. Há quem se entretenha cantando a beleza que dizem eterna. Eu apenas colho o rosmaninho junto ao rio e busco a nossa barca do destino.
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