Tapetes divinos
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Estamos em 2018 e, digo-o com certo pesar, apercebo-me de que as mudanças produzidas em Portugal afinal não são tão profundas como parecem. Sobretudo nas estruturas produtivas, nas estruturas empresariais, na organização das cidades, na organização dos espaços físicos e no território.
Os edifícios, o casario a crescer, o desaparecimento dos bairros de lata nas grandes cidades, as rotundas, os repuxos e, sobretudo, as autoestradas, deram-nos uma ilusória aparência de modernidade.
Mas, atenção, as autoestradas são a coisa mais fácil de fazer. Por isso encheram os bolsos de políticos, banqueiros e construtores. Foi fácil aos poderes públicos portugueses apostar nas rodovias. Criaram um departamento de expropriações, preencheram cheques e mandaram vir empresas para as construir. Não tiveram de mudar nada, nem mentalidades, nem estruturas produtivas, nem organização de trabalho, nem organização de empreses, nem estudar as primeiras letras, nem fazer o secundário e muito menos entrar na universidade. Com o que havia, fizeram tudo. Numa coisa se esmeraram: na criação das Parcerias Público-Privadas que endividaram o país até ao próximo século.
António Barreto tem razão: “A globalização, a metrópole, as massas, a rapidez, o automatismo, a competitividade e a uniformidade, geraram valores contrários à comunidade humana, ao pensamento, à qualidade estética, ao brio e à compaixão. Nem sequer a dimensão do que se ganha é suficiente para se esquecer o que se perde. Pode até ganhar-se mais. Mas o que se perde é uma amputação da humanidade e da cultura”.
Agora predominam os eventos, até os comentadores televisivos parecem licenciados em economês, pois falam na forma de “gerir” as relações amorosas, ou em “priorizar” os sentimentos. Utilizam, vá-se lá saber porquê, uma linguagem mecânica, dominada pela produção económica, pela tecnologia, pelo êxito comercial e pelo sucesso mediático.
Talvez por isso tenha surgido a necessidade da ideia da “geringonça”.
Independentemente dos preconceitos ideológicos, ou outra tralha sociológica e axiológica, temos de reconhecer que com a “geringonça” temos hoje a economia a crescer, o desemprego a baixar, o défice em valores nunca vistos, a dívida a cair e o investimento estrangeiro a aumentar.
É um facto que ninguém estava à espera que em pouco mais de dois anos os resultados positivos fossem tantos. Nem todos os resultados decorrem necessariamente da atividade deste Governo, é verdade, e é um facto, que a Europa está a crescer como nunca, mas temos de reconhecer que o executivo de António Costa tem demonstrado habilidade e jeito para fazer negociações entre o que é social e o que é empresarial, entre o que é económico e o que é europeu. A paz social facilita o aproveitamento desta conjuntura. O Governo tem mostrado capacidade para aproveitar e explorar a nosso favor esses resultados.
O mais preocupante é que, pelos vistos, os portugueses ainda não se decidiram definitivamente se toleram a corrupção ou se escolhem o primado absoluto do Estado de Direito.
É aflitivo observar o que se tem passado na última meia dúzia de anos: os processos que não chegam ao seu término, os processos que não se fazem, os casos de corrupção que não têm fim, as investigações, os atropelos às investigações, o desaparecimento de CD’s com escutas e as constantes quebras de segredo de justiça como tentativas óbvias de boicotar os processos e absolver os prevaricadores.
Necessitamos de um Estado de Direito que funcione, com meios de investigação, meios processuais, capacidade e forças de investigação, de instrução e capacidade de procedimentos judiciários.
É preocupante saber que há gente condenada há dez anos a não cumprir pena, pois continua a usar e a abusar de recursos, de procedimentos, garantias e mais não se sabe bem o quê. É verdade que em Portugal quem tem dinheiro não vai para a cadeia.
Perante estes problemas, nós adiamos, adiamos, adiamos.
E a Esquerda continua a insistir na retórica e na reivindicação, enquanto a Direita vai defendendo o seu, já que gosta mais de dinheiro do que de ideias.
Uma coisa também vos confesso. Isto de tratar sempre de dar opinião vai construindo a nossa própria solidão.
Termino citando de novo António Barreto: “Você diz mal de A e depois de B e depois de C e depois de D. E às tantas pensa “Oh, Diabo”! Já dei a volta ao carrossel. A independência é uma grande virtude, mas é uma grande solidão. E pode ser triste.”
Propostas genuinamente pessoais e pagas do próprio bolso: Música: Deran – Bombino; Leitura: Também os brancos sabem dançar – Kalaf Epalanga; Viagens: http://www.destinosvividos.com/visitar-peneda-geres-ermida/; Restaurante: Aprígio – Chaves
Rio do suposto juízo de Rubens, do seu barroco lânguido, das suas formas enseadas, na frescura impossível do amor e da vida que corre sem cessar. O céu está agora no lugar do mar. O espelho grande absorve todo o Leonardo da Vinci, os seus anjos deliciosos com sorrisos de demónios e as sombras misteriosas dos sorrisos femininos. Rembrandt parece a cruz do seu próprio mundo, cheio de murmúrios, repleto de preces e choros e raios de sol transversais. Miguel Ângelo também deve andar por aí, misturado com Hércules e Cristo e outros fantasmas que se erguem tentando impor a sua própria soberania diante da luz divina. Por aí andam ainda os faunos, com os seus corpos franzinos, com a sua bondade altiva, com a melancolia soberana dos proscritos, com a beleza dos patifes. Watteau dança misturando no seu carnaval os mais ilustres arlequins, as cenografias mais despojadas, as borboletas mais flamejantes, tudo iluminado pelo desvario e pelos bailarinos risonhos. Goya assusta-se, e assusta-me, com os seus pesadelos, com os seus cenários dantescos, com o reflexo das velhas ao espelho, com crianças vestidas de antiguidades sexuais ajeitando as meias como se fossem anjos do deboche. Tentam dessa forma o inimigo. Delacroix continua a pintar anjos maus à sombra dos pinheiros envolvendo-os de verde e de céus lamentosos e de fanfarras estranhas que passam por nós como se fossem suspiros de Deus e do Demónio. Envolve tudo na beleza dos deserdados, na imprudência dos guerreiros, na sua bondade altiva e na melancolia soberana dos proscritos. A musa de Baudelaire continua de cama, doente, com os seus olhos cavados marejados de visões noturnas. O amor e o medo são os seus principais pesadelos. A musa venal continua puta e com os peitos espetados como a República. As brasas aquecem-lhe as coxas, o traseiro e o sexo. Raios de luar atravessam as persianas dando sentido ao vazio ascético da sala. Os frades fantasiaram os antigos claustros com a realidade mais cruel. Pensam confortar as mulheres devotas, tornando quente a sua piedade. Os homens estão tristes porque o granizo queimou as flores das árvores de fruto, deixando-as sem viço e sem cor. O outono chega de mansinho. É tempo de pegar no sacho e no engaço, de mexer na fecundidade da terra, de abrir fendas para a água passar. O tempo dói. A entropia dói. Os sonhos místicos nascerão leves. É chegado o tempo de descobrir os tesouros escondidos e de erguer uma outra vontade. Sinto ainda mais forte a profunda solidão das ondas, as criptas dramáticas onde se sepultam os anjos, o lento sacrilégio do poente, a inutilidade espantosa da música lucidamente elaborada. O céu está carregado de nostalgia. O mar reflete a luz da liberdade. Não nos cansamos de contemplar a infinita oscilação da sua rebentação. O pescador agarra com ímpeto vingador os remos. As sereias tornaram a furar-lhe as redes. Na praia, várias mulheres oferecem aos olhares dos transeuntes os seios através dos vestidos entreabertos. Dizem que Don Juan foi para o inferno porque se fartou do amor das mulheres atrativas. A vergonha reclamou os seus honorários. Dizem que as suas amantes exibem agora um sorriso sublime onde brilha a meiguice e as primeiras juras de amor eterno. Já não lhes interessa o seu sexo ereto que as fendia. Os seus bocejos tragam o mundo e o tempo.
Como se já não bastasse venderem-nos como genuínos o patriotismo dos políticos, a integridade dos primeiros-ministros, ministros e deputados; o celibato e outros desvios sexuais de padres e bispos; o amor à camisola dos jogadores de futebol; o altruísmo e a honradez dos presidentes dos grandes clubes de futebol; a honestidade dos banqueiros e economistas; a honestidade intelectual dos escritores de sucesso; a independência da opinião dos comentadores políticos televisivos; a beleza estruturante e genuína das top-models; a maioridade das nossas instituições nacionais e da nossa democracia; a irradicação do sarampo e da cunha nacional; o cumprimento das promessas eleitorais dos presidentes das câmaras; o amor à democracia por parte dos comunistas e fascistas; o amor à social-democracia por parte do PSD; o amor ao socialismo por parte do PS; o amor à ecologia por parte do PEV; o amor aos proletários por parte do BE; e o amor ao cristianismo por parte do CDS; a ASAE veio confirmar que em Portugal há pota a passar por polvo, paloco a fazer a vez de bacalhau, peixe com aditivos que retêm a água para ficar mais pesado, azeite virgem aditivado com produtos vegetais refinados, mel com açúcar, produtos que em vez de carne de vaca contêm carne de porco ou de cavalo, queijo de cabra feito com leite de ovelha, vinho com adição de açúcar e água, e aguardentes vínicas adulteradas com destilados de frutos baratos – um negócio que gera lucros ao nível do tráfico de droga.
A fraude alimentar tem um custo global de 45 mil milhões de euros e afeta um em cada dez produtos.
No entanto, a fraude intelectual, política, social e económica ainda não foi quantificada. Mas é capaz de, feitas as contas, dar para pagar a dívida soberana do Estado Português e com os trocos fazer um país com superavit, possibilitando a todos os portugueses comprarem uma rulote e irem de férias por essa Europa fora para os indígenas estrangeiros verem como é dolorosa a pegada ecológica dos turistas.
Estas coisas dão-me sempre vontade de rir, de nervoso, claro está. Não vão os estimados leitores pensar que sou um intelectual masoquista subsidiado pelo Ministério da Cultura de Lisboa e arredores.
Quando assim acontece, e o tempo ajuda, vou para o campo à noite esticar o pescoço tentando identificar a Via Láctea e as constelações que aprendi na juventude: Órion, Cassiopeia, Ursa Maior, Ursa Menor, Andrómeda, Pegasus, etc. Cada uma delas eternamente perfeita. Depois pergunto-me com que finalidade terá o Divino Deus criado as estrelas no céu para um dia nos supormos cheios de inspiração e, no dia seguinte, verificarmos como somos insignificantes.
Sinto-me então como o príncipe Rostov, personagem de um livro de Amor Towles, que quando é subestimado por um amigo, fica ofendido, pois os nossos amigos devem sobrestimar as nossas capacidades. Devem possuir uma opinião exacerbada acerca da nossa força moral, da nossa sensibilidade estética e do nosso estofo intelectual. “Aliás, deviam praticamente imaginar-nos a saltar por uma janela, num abrir e fechar de olhos, com a obra de Shakespeare numa mão” (no meu caso o D. Quixote de Cervantes) “e uma pistola na outra.”
Temos de aprender a ser pacientes. Razão tem a Condessa Rostov quando comenta, muito a seu gosto, que se a paciência não fosse tão facilmente posta à prova, não seria precisamente uma virtude.
Por isso nos dá, a mim e ao meu amigo Conde, para as inclinações filosóficas que, tanto num caso como no outro, são também inclinações meteorológicas. Acreditamos na influência indeclinável dos climas clementes e inclementes, na influência das geadas temporãs e nos verões prolongados, nas nuvens agourentas e nas chuvas delicadas, na densidade mitológica do nevoeiro, na inclemência do sol e na beleza fria e densa dos nevões. Mas numa coisa diferimos. Ele acredita na transformação dos destinos causada pela mais pequena mudança de temperatura. Eu, pelo contrário, talvez mais agnóstico, acredito piamente que essa transformação se dá especialmente quando se muda de poleiro.
Ele costuma dar como exemplo da sua crença o facto de uma simples subida de temperatura média fazer as árvores florir, os pardais desatarem a cantar e os bancos encherem-se de casais, jovens e velhos.
Eu contraponho que a gente que muda de poiso e se senta na poltrona do poder vê elevar-se, como por milagre, a árvore das patacas no seu jardim, a sua frota automóvel melhorar consideravelmente, em qualidade e quantidade, consegue, também, por pura magia, adquirir uma ou várias vivendas, uns quantos apartamentos, frequentar os melhores destinos turísticos e colocar uma soma considerável de dinheiro num offshore à prova de investigação judicial.
Ele ri-se.
Eu também.
Depois deita o primeiro milho aos pardais enquanto eu me entretenho a ler mais um livro a confirmar a minha tese.
Ele ocupa o seu tempo com jantares, conversa, leitura e reflexão.
Eu, no tempo que me sobra da escola, continuo a esgrimir a minha pena com os resultados que todos os estimados leitores conhecem.
Propostas genuinamente pessoais e pagas do próprio bolso: Música: Mesh Baghanny – Maryam Saleh; Leitura: Breve história de sete assassinatos – Marlon James; Viagens: http://www.destinosvividos.com/visitar-lisboa-dicas/; Restaurante: A Talha – Chaves
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