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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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06
Set18

Poema Infinito (421): O delírio e a sensatez

João Madureira

 

Comecei a escrever uma nova biografia do orvalho. Um rio passa perto do caderno. Muitas frases estão sentadas nas suas margens. Continuo a usar as aves para encontrar o azul.  A voz das águas tem um leve sotaque a nostalgia. Cai o silêncio em cima da sensatez do desejo. As árvores velhas iniciam o feitiço do tempo. As palavras estão preparadas. A cor da noite está coberta de afastamento. Necessitamos de mais espaço para um novo tipo de saber, uma nova fonte, um novo orgulho. Uma nova esperança. A alva tinge de forma transitiva a manhã. Os encantamentos necessitam de uma nova conjunção. A contradição atingiu a linguagem dos pássaros. Vamos ter de aprender a forma de reagir ao sol, à chuva, ao escuro, aos abismos, à confusão dos estorninhos. Os fantasmas sabem de cor a porta da noite que se abre primeiro. Observamos o abandono da velha casa, o musgo a crescer nas paredes, o mofo a fazer desenhos nos rebocos e na madeira carcomida, o mato a galgar os portões, as manchas traçadas nas fotografias, a bicicleta sem rodas encostada à parede do sótão e os batentes carcomidos pelo tempo. É o abandono a lamber tudo o que já nos foi querido. Na velha casa habitam agora os morcegos, as aranhas e os gafanhotos. O abandono fura-nos a retina, o silêncio grita de repente como se fosse manhã. Houve um tempo em que não havia limites. As pessoas misturavam-se com as aves e ganhavam asas. Depois chegou a ordem das coisas e as pedras começaram a rolar em direção ao destino. Apenas as palavras se salvaram. Apenas as palavras continuam sem limites. Ainda nos custa aceitar as pessoas que fecham portas, que olham o relógio e fixam o tempo, que vão às compras em horas determinadas, que aguçam os lápis para desenharem bagos de uvas, que fecham os lábios para darem beijos. O nosso delírio é uma outra forma de sensatez, com ele limpamos os versos para não serem contaminados pelas contradições. A linguagem teve o seu início na luz. Foi no orvalho que encontramos o formato do sol.  Os textos foram mudando a nossa existência. Aconteceram então os milagres estéticos provocados pelo instinto linguístico. A verdadeira sabedoria reside mais nas pessoas do que nos livros. Todos agora sabemos que o som teve a sua origem nas conchas do mar. É difícil fixar o silêncio. Ou fotografá-lo. Quando alvoreceu, a aldeia estava morta, não se ouvia nenhum barulho, ninguém passava no meio das ruas. O bêbado, depois de carregar o silêncio, adormeceu. Um pássaro enamorado começou a gorjear, para delírio das árvores. Todos sabemos que dessa árvore nascerão as flores mais perfumadas. Ainda clareava o dia quando a memória da avó abriu a terra e começou a botar as sementes à terra. Ali as deixamos para a chuva as enternecer. Entretemo-nos agora a decifrar a língua simples das abelhas, a entender os seus instintos primitivos e as palavras que correm por entre as pedras do rio. A saudade, para existir, requer trinados de dor. Na língua matinal do tempo ainda restam algumas réstias do nosso sol infantil. A avó, junto com as candeias, deixou-nos um aferidor de encantamentos. Com ele avaliamos os percurso das palavras até elas chegarem aos poemas, com a sua vaidade, o seu desvario e o seu livre arbítrio. Por isso os poetas podem arborizar os pássaros, podem humanizar as águas e podem aumentar o mundo com as suas metáforas.

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