Poema Infinito (423): O pecado de Miguel Ângelo
Os génios são seres mortificados. Deus abandona-os sempre à sua sorte. Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni vai montado no seu cavalo persa transpirando melancolia, solidão e grandeza. Houve tempos em que se incrementava a poesia, quando o circo se enchia de parvos e elefantes brancos e papagaios e panteras. Há tantos parvos felizes. Os deuses jogavam xadrez e criavam bichos da seda. Os Papas combatiam a pestilência enquanto os guerreiros da cristandade disseminavam a sífilis e o nome de Deus em vão. Também se roubava gado e os poetas eram vistos como macacos que se acolhiam debaixo das vestes do clero. A nobreza repartia-se entre os bastardos e os avarentos. Também existiam vaginas sábias e pénis em forma de cardeais folgazões. Deus parecia ter medo da sua criação. O rei máximo da cristandade pedia que lhe dessem tudo em triplicado. Além do Pai, do Filho e do Espírito Santo, exigia três coroas, três reinos e três virtudes. Michelangelo pintou então o teto da Capela Sistina que, para Adriano VI, um Papa de origens humildes, não passava de uma casa de banho assassinada. Michelangelo, ao contrário do que se diz, pintou-o de pé e não deitado de costas. O trabalho fazia-lhe mal, não a criação. Séculos antes, Jeremias chorou lágrimas tão pesadas como o tempo, tentando fazer ressuscitar os ossos dos apóstolos. Asseguram que Adão já nasceu cansado, apesar de nem rapaz ter chegado a ser. Por isso nem sequer aprendeu a cantar, a rir, ou a sonhar. A Criação continua a parecer-me uma visão limitada da ilimitada omnisciência divina. Os rapazes da aldeia continuam a enxotar os patos, a atirar pedras aos pássaros, a balouçar os pés na água e a não dar descanso aos seus anjos da guarda. Deus parece ter medo de quem o criou. Dante é um chato e Petrarca também. No entanto, os leitores de D. Quixote acreditam que Deus, a existir, é Espanhol. Já os proditores são italianos. Lucrécia Bórgia foi uma boa administradora. O seu irmão César matou Sforza e congeminou a morte de Perotto, que foi estrangulado nos braços de seu pai. Tingiram-se os mantos brancos de sangue e os meses de inverno ficaram ainda mais frios. Passaram então os terroristas a suportar os locais mais sombrios e a percorrerem, como uma maldição, os desfiladeiros que levam ao Purgatório. A humildade católica passou a ser tratada como uma constipação infantil. Os mortos vagueiam agora pelo mundo como nuvens híbridas. Os jovens continuam a ser arrogantes e a sonhar em estrangular os bobos espalhados por esse mundo fora. Elevam-se da terra círculos de luz que eliminaram as trevas. Junto das serras ainda continuam a nascer crianças predestinadas. Os meninos e as meninas da escola aprendem a desalinhar os seus passos, a saborearem os rebuçados picantes e a descobrirem os lugarejos ridículos. Estão quase nus. Alimentam-se de inconveniências. As mulheres púdicas continuam desavergonhadamente a vestir as suas camisas transparentes. O pecado mora inevitavelmente ao lado. Os cegos tropeçam ininterruptamente nas pedras. Por isso Jesus sempre insistiu em indicar-lhes o caminho das pedras. A predestinação é sempre uma ferida da memória. A chuva lava sempre a melodia das cinzas. Os peixes vermelhos por dentro conversam com Herberto Helder. Longas são as velhas ondas do mar.