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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

20
Set18

Poema Infinito (423): O pecado de Miguel Ângelo

João Madureira

 

 

Os génios são seres mortificados. Deus abandona-os sempre à sua sorte. Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni vai montado no seu cavalo persa transpirando melancolia, solidão e grandeza. Houve tempos em que se incrementava a poesia, quando o circo se enchia de parvos e elefantes brancos e papagaios e panteras. Há tantos parvos felizes. Os deuses jogavam xadrez e criavam bichos da seda. Os Papas combatiam a pestilência enquanto os guerreiros da cristandade disseminavam a sífilis e o nome de Deus em vão. Também se roubava gado e os poetas eram vistos como macacos que se acolhiam debaixo das vestes do  clero. A nobreza repartia-se entre os bastardos e os avarentos. Também existiam vaginas sábias e pénis em forma de cardeais folgazões. Deus parecia ter medo da sua criação. O rei máximo da cristandade pedia que lhe dessem tudo em triplicado. Além do Pai, do Filho e do Espírito Santo, exigia três coroas, três reinos e três virtudes. Michelangelo pintou então o teto da Capela Sistina que, para Adriano VI, um Papa de origens humildes, não passava de uma casa de banho assassinada. Michelangelo, ao contrário do que se diz, pintou-o de pé e não deitado de costas. O trabalho fazia-lhe mal, não a criação. Séculos antes, Jeremias chorou lágrimas tão pesadas como o tempo, tentando fazer ressuscitar os ossos dos apóstolos. Asseguram que Adão já nasceu cansado, apesar de nem rapaz ter chegado a ser. Por isso nem sequer aprendeu a cantar, a rir, ou a sonhar. A Criação continua a parecer-me uma visão limitada da ilimitada omnisciência divina. Os rapazes da aldeia continuam a enxotar os patos, a atirar pedras aos pássaros, a balouçar os pés na água e a não dar descanso aos seus anjos da guarda. Deus parece ter medo de quem o criou. Dante é um chato e Petrarca também. No entanto, os leitores de D. Quixote acreditam que Deus, a existir, é Espanhol. Já os proditores são italianos. Lucrécia Bórgia foi uma boa administradora. O seu irmão César matou Sforza e congeminou a morte de Perotto, que foi estrangulado nos braços de seu pai. Tingiram-se os mantos brancos de sangue e os meses de inverno ficaram ainda mais frios. Passaram então os terroristas a suportar os locais mais sombrios e a percorrerem, como uma maldição, os desfiladeiros que levam ao Purgatório. A humildade católica passou a ser tratada como uma constipação infantil. Os mortos vagueiam agora pelo mundo como nuvens híbridas. Os jovens continuam a ser arrogantes e a sonhar em estrangular os bobos espalhados por esse mundo fora. Elevam-se da terra círculos de luz que eliminaram as trevas. Junto das serras ainda continuam a nascer crianças predestinadas. Os meninos e as meninas da escola aprendem a desalinhar os seus passos, a saborearem os rebuçados picantes e a descobrirem os lugarejos ridículos. Estão quase nus. Alimentam-se de inconveniências. As mulheres púdicas continuam desavergonhadamente a vestir as suas camisas transparentes. O pecado mora inevitavelmente ao lado. Os cegos tropeçam ininterruptamente nas pedras. Por isso Jesus sempre insistiu em indicar-lhes o caminho das pedras. A predestinação é sempre uma ferida da memória. A chuva lava sempre a melodia das cinzas. Os peixes vermelhos por dentro conversam com Herberto Helder. Longas são as velhas ondas do mar.

17
Set18

409 - Pérolas e Diamantes: É só inquietação, inquietação...

João Madureira

 

 

A propósito do seu álbum de “Inéditos 1967-1999”, editado recentemente, José Mário Branco confessou ao Jornal de Negócios que quando tinha quatro anos, foram dar com ele a chorar, agarrado ao rádio. Perguntaram-lhe: “O que é que tu tens, Zé Mário?” Estava a tocar um minueto do célebre violoncelista Boccherini. Respondeu: “Eu quero tocar ’ito.”

 

José Mário Branco é um dos grandes compositores musicais portugueses. Ou seja, pode não tocar Boccherini, mas chegou longe. Coisa de génios.

 

Também eu, quando tinha quatro anos, em frente ao rádio Siera lá de casa, situada na rua Presidente Arriaga, em Lisboa, me punha a dançar quando passavam as músicas da moda. Dizia a minha mãe que eu até bailava bem.

 

Em noites de jantarada, muitos dos convidados, seduzidos pelos balanços da criança, davam-lhe dinheiro para os brinquedos e para as guloseimas. Hoje nem sequer me atrevo a dar um pé de dança nas festas familiares. Coisas dos medíocres.

 

De facto, cada um é para o que nasce.

 

Fora as devidas distâncias, alguma coisa temos em comum. Também eu me convenci que tinha nascido numa geração com a noção de que podia mudar o mundo. Ou melhor, com a noção de que era necessário mudar o mundo.

 

Na minha juventude era normal saltar de projeto para projeto, de ideologia para ideologia,  de radicalidade para radicalidade.

 

Quando se deu em o 25 de Abril eu era católico praticante, mas, em poucos meses, saltei para PC, por ser o sítio onde se podiam fazer coisas com um mínimo de organização e consistência. Apesar da adesão intempestiva ao marxismo-leninismo, que é uma filosofia política muito aborrecida e cheia de contradições, a história de Jesus nunca me abandonou. Continuo a achar que existe uma contradição profunda entre a história de Cristo e a instituição Igreja. Concordo com José Mário Branco quando ele diz que a história desse homem é uma das mais belas histórias, senão a mais bela, que a humanidade inventou.

 

Esse homem calmo e pacífico enfrentou com o seu exemplo e a palavra os dois grandes poderes (o judaico e o romano)  na terra onde nasceu, cresceu e morreu com apenas 33 anos. Foi ele que disse uma das coisas mais subversivas de sempre: “Deus és tu”, como quem declara: “Essa gente que diz que é dona de Deus, e que vive e domina a sociedade à custa disso, não serve para nada, está a perverter.”

 

A sua temporalidade é admirável.

 

Se nos situarmos na época, e até podendo relativizar o ponto de vista histórico e místico, o que aquele homem fez pela dignidade do ser humano é de facto notável.

 

Alérgico a partidarite, José Mário Branco saiu do Bloco de Esquerda, partido que ajudou a fundar. Disse na sua intervenção uma coisa com a qual me identifico plenamente: “Eu nunca saí de partido nenhum, os partidos é que saíram de mim.”

 

Nos partidos não se está para procurar realizar os valores da justiça da liberdade, está-se lá para “outras jogadas”. Por isso não se revê em nenhum partido. Nem ele, nem eu.

 

Considera que o mundo está muito feio. Tal como ele, também eu cresci num sistema em que havia opressão física, em que se a pessoa não cumprisse as regras arriscava-se a castigos físicos, à pancada, à prisão e à tortura, coisa que ele experimentou.

 

Agora a música é outra. José Mário Branco considera que o desenvolvimento da sociedade e do sistema em que vivemos é tal que, globalmente falando, a ditadura foi transportada para dentro do cérebro das pessoas por processos de massificação e atomização. Cada ser humano está sozinho. Há um processo de desculturação. Quanto menos souberes, melhor, quanto mais tiveres uma mente padronizada e reduzida a um único modelo, melhor. Portanto, “há uma capacidade incrível de recuperação da contestação”.

 

José Mário Branco viveu o Maio de 68 em França. Estava lá imigrado.

 

Nessa data memorável, houve uma catarse libertária lindíssima, que foi logo boicotada pelo PCF a troco de um aumento de salários de 10% nos acordos com Pompidou. O movimento reivindicativo durou um mês, com 2 milhões de operários em greve, com ocupações. Mas rapidamente se esboroou. Passados poucos meses desse aumento salarial, o custo de vida já tinha aumentado 12%. O saldo foi, portanto, negativo.

 

Entendamo-nos, o Maio de 68 não foi projeto de coisa alguma. Resumiu-se a um espetáculo libertário, a um ato de vida. A um grito.

 

“Debaixo do asfalto cresce a erva”. Foi bom enquanto durou.

 

José Mário Branco conta um facto a que assistiu e que define na perfeição o Maio de 68.

 

Ia no seu Fiat 600, subindo Le Boulevard Saint- Michel, quando avistou um grupo de 30 a 40 pessoas, desde o estudante anarquista e cabeludo, até ao senhor de gravata, passando pelas donas de casa com os sacos das compras, ou, ainda, os operários de fato-macaco, padres, novos, velhos e gente de meia idade.  Resolveu parar e perguntou, como quem se alivia: “Há algum problema? Ao que alguém respondeu: “Não, não. Estamos a discutir o que é ser feliz.” Isto para ele, e também para mim, define o Maio de 68. As pessoas divertiam-se a discutir umas com as outras.

 

Isto da revolução é como o Mito de Sísifo. Quando se está a atingir o topo da montanha, o penedo cai e volta a rolar montanha abaixo.

 

É, também, o paradigma da Esquerda, das ideias da fraternidade, da igualdade e da liberdade. Quando se está a conseguir esse objetivo, lá cai o rebo ao chão e toca a rolar até ao sopé da montanha. E lá volta o coitado do Sísifo a pegar no penedo e a subir a encosta.

 

Claro que também há algo de novo e que bate muito forte: a tal desculturação. Hoje já não há referências, não há contacto com os livros, com os livros de História. Hoje tudo se resume aos jogos informáticos. Até o poder.

 

Propostas: Música: Com Todo El Mundo – Khruangbin; Leitura: Pedro Páramo – Juan Rulfo; Viagens: http://www.destinosvividos.com/visitar-peneda-geres-ermida/; Restaurante: Zé Bota – Porto.

13
Set18

Poema Infinito (422): O vento da realidade

João Madureira

 

 

 

A vida é o destino do quotidiano como a ilusão é a outra forma da amargura. Depois ficam as sombras. E as promissões. E a confiança frágil das crianças. Uma muralha de gritos levanta-se.  Há no mundo tanta cobardia alucinada que amedronta. Antes da comunhão, a avó costumava repartir o vinho e o pão pelos de casa. Era uma espécie de alegria demarcada. Depois levaram-lhe o corpo, depois a alma e a terra comeu-lhe até a memória do próprio nome. Ficou dentro de mim a sua consciência e o tormento dos fantasmas invisíveis que alimentam o sono. Depois tu bateste à porta da minha solidão e rodeaste-me com a direção fraterna da tua ternura. Foi então quando perdi todos os pecados e deixei de pensar no inferno. Essa é ainda a paz permanente do meu desespero. Ardem-me os olhos com a nitidez das brasas e dos versos, com o protesto das cinzas, com a amargura do rio, com a voz da avó que cantou contra o mundo e contra a solidão. O esquecimento é outra das formas da loucura. D. Quixote andou sozinho a combater as velas dos moinhos perante as penas, as lágrimas e os lamentos de Sancho. Não me lembro quando foi feita a última colheita do centeio. Sei que o dia estava limpo, luminoso e cheio de ilusão. Já não há dias assim. No inverno seguinte choveu e nevou e Eva disse adeus ao paraíso. Já nada a comove, já nada a excita, já nada a martiriza. Os rapazes e as raparigas continuam alegres sonhando com a quentura das romarias do futuro. Os trovadores continuam roucos e os revolucionários sentem-se sempre os eternos desgraçados. Quando apetece cantar já ninguém canta, nem grita, nem foge, só chora. Van Gogh tinha razão, os lírios no seu apogeu continuam a parecer luminosidades. O vento da realidade vai espalhando as brasas da lareira. O borralho vai-se apagando. Fecham-se as portas. Continuamos a receber os sonhos e a abraçar a pouca luz que nos rodeia. O tempo conseguiu precisar uma nova definição de angústia. Os versos nascem como cogumelos no meio dos pinheiros. São como os sentimentos. Não distingo os venenosos. Especializamo-nos em adiar os outonos. Os nossos braços são agora como ramos tristes. Os sonhos e a alegria ardem em nós como velas meias gastas.  Também eu me senti um ribeiro que fugia da sua nascente sem querer. O sol partiu sem me avisar afagando as nuvens e fazendo a seu belo prazer uns dias maiores e outros mais pequenos. Quando se sobe um monte há sempre um momento para descansar. Também fazemos sempre uma pausa nas curvas dos caminhos mais difíceis. Foi numa fonte de água fresca que bebi o primeiro carinho. Foi na tua pele que senti que me surgiam os dedos incendiados pela tua delicadeza. Tudo então começou a tremer à nossa volta: a subtileza, a luz do tempo, os peixes do rio, as magnólias. Eras uma espécie de paisagem deslizante, rodeada de flores. É necessário salvar a infância da obscuridade, libertar e beleza da sua insensatez. Cavalguei então a tua grandeza de mulher, sentindo as tuas folhas e o teu sabor a maçãs. Percebi então que as paisagens também podem tremer de medo, que a luz pode ser inquieta e as festas dolorosas. Levantámos voo de mãos abertas. Aprendemos o ritmo do sexo com o corpos a arder. Fixei para sempre em mim a lembrança da tua luz, a forma de um paraíso azul, a forma de um grito narrativo. A alegria também pode ser aflitiva.

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