Poema Infinito (427): O desencanto dos vasos floridos
Gosto das ruas que descem até aos rios. De todas elas. E dos rios que sobem até às ruas. Nos rios faço exceções. As quintas dos ricos parecem-me sempre gólgotas, os românticos caminhos da morte. Os ingleses parecem-me paredes de granito vestidas com portões verdes sorrindo para meninas pensativas. Sou tão xenófobo que até me rio do Brexit. Para disfarçar leio Saramago, Aquilino, Eça, Ferreira de Castro, Agustina e outras reticências e pontos de exclamação e vírgulas e virgos. Admiro a velha literatura e as novas tecnologias. Fascinam-me até os livros de leitura obrigatória que abrem as caudas dos vestidos das raparigas com pinceladas de perfume. Imagino-me a descer as escadas de pedra antiga, a cruzar os jardins de árvores e canteiros e, de mão dada contigo, a nomear de cábula na mão as japoneiras, os rododendros e araucárias. Não há nada mais ordinário do que descrever as tílias frondosas que deixam tombar os cachos de flores e o seu perfume e a sabedoria pedante das sibilas e das cartas de amor e a Amália e o Eusébio e Fátima e até o Fernando Pessoa. Pois pim para todos eles. E viva o Almada Negreiros. Dizem que os escritores consagrados têm risadas cristalinas. O meu conselho é lê-los. Ou escutá-los. Ou assim-assim. Entediam-me as salas repletas de quadros, de fotografias antigas e de conversas que parecem ocasionais, repletas de miríades de pequenos objetos. Os peitoris das janelas assemelham-se aos livros das estantes, colocados para apoio dos braços que seguram o queixo de quem se põe à janela para conquistar o príncipe desencantado com os vasos floridos, com as épocas inesperadas, com a transparência dos vidros, com as tesouras que antigamente podavam as vinhas e agora cortam os frangos e os leitões. Os vizinhos de hoje são tão chatos como os seus gatos e tão defecadores como os seus cães. Já não há nem homens nem animais vadios. Eu não gosto da Anna Karenina. Eu gosto é da Valentina. Já cada vez menos se varrem as folhas de outono. Agora tudo é soprado por máquinas estrepitosas e depois enviado para a reciclagem. As primaveras têm todas o mesmo cheiro. Todas as rosas possuem as mesmas certezas,. Os lugares míticos possuem todos o mesmo tipo de iluminação. Com o avançar da idade percebemos melhor Rembrandt, todos nos sentimos rondados pela noite, pelos seus indícios e pelos seus presságios. Todos imaginamos as possibilidades perdidas, as conversas encetadas, os sentimentos exemplares. É preciso vencer a timidez. Depois adoecemos. Toda a caligrafia fina tem o seu sentido oculto. Tudo é evidentemente inócuo. Assustamo-nos com o íntimo das nossas vidas, com as palavras que fecham portas, com a geografia patética dos livros. No apeadeiro onde espero é outubro, o ar está muito quente e há um cheiro paternal a ervas, resina e folhas secas. A sabedoria cria poucos amigos. Aprendi a disfarçar a impaciência. Estou quase em ruínas. Subo as escadas devagar, devagarinho, como quem se confessa perante a força da gravidade. O pátio reflete o sol. Adivinho a chuva que há de cair inclemente durante as horas do desassossego. Estou virado a sul. Quase alegre. Quase triste. Ouço arrepiado os sinos da igreja. O pai e a mãe converteram-se num lugar, num jazigo. Numa dor permanente. Antigamente por aqui havia videiras. E macieiras. E nogueiras. E figueiras. Tudo foi desmantelado. Os remendos rebocados das casas possuem uma aparência fantástica.