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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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29
Nov18

Poema Infinito (433): A evidência das causas

João Madureira

 

Aí está a máquina da guerra a perseguir-nos. Aí está a máquina da paz a escutar-nos. Aí estão elas. Aí estamos nós. Ali estou eu. Penso nos objetos de guerra como se fossem verdadeiros. Penso nos objetos de guerra como se fossem falsos. O problema está na autenticidade das reverências. No prova do tempo. No protagonismo da História. Na generalidade do homem. Tememos tudo, até que as fotografias nos roubem a alma. Nós que somos uns desalmados. Os olhares mais simples incomodam por causa da sua evidência. Sinto em ti uma fragrância de timidez. Uma timidez secreta que carrega um medo inconfessado. Dou-te muito mais do que aquilo que julgas. As cores ajeitam-nos a casa. Apercebemo-nos agora da outra maneira de sermos iguais. Os conceitos simplificam a vida mas não a explicam. Tudo estremece depois do vendaval: as vozes, os passos lentos, a constante claridade das lâmpadas, os fantasmas silenciosos, os deuses, os demónios, os anjos, os monstros, os reis. E até os heróis. No entanto, as horas permanecem quietas. Lá fora os carvalhos encolhem a sua virilidade aparente. É tempo de nevoeiro. As outras árvores olham o vento, a sua densidade suspensa e as janelas erguidas da mansão. Um druida brando oscila entre a fantasia e a claridade. Por vezes, até as sílabas mais desequilibradas nos parecem divinas. Nenhum murmúrio quebra a noite. Mesmo os rumores avançam devagar. Foi num tempo assim que Roma ardeu, longínqua nos seus incêndios, efémera no seu esplendor, desprendendo faúlhas rutilantes de desejo e de decadência. Mesmo os Neros mais ajuizados morrem desesperados. As verbenas de rosas já não possuem o mesmo odor. As fontes que alimentam as flores estão mais pálidas. Mete dó a miséria de Jesus e a indecência de Pilatos. A plebe continua ignara, cheia de carne e de fome, com uma sede voraz. Toda a multiplicação dos peixes, do pão e do vinho é um milagre inútil. António continua eretivo e Cleópatra lasciva. As escravas continuam lentas, movendo os seus leques dentro de um filme de David Lynch. E seminuas. E pálidas. E indiferentes. Os guerreiros absorvem em êxtase os seus aromas que flutuam como um bendita maldição. As esfinges lembram esfinges em atitudes palpitantes. E também lembram complexos. Depois de amaldiçoar Salomé, Deus resolveu absolvê-la. Já nada é como antigamente. Nem o pecado, nem a virtude, nem o calor maldito da redenção. Abençoados sejam os pecadores. Abençoados os ébrios e os deslumbrados. Abençoados sejam os festins nus e o silêncio absorto dos apóstolos. Os soldados do apocalipse passeiam nas margens do Jordão. As mulheres uivam de raiva e de desejo. Os generais dormem tranquilamente nos seus leitos agarrados aos seus eunucos. As mulheres que tocam violino continuam a tocar. E a espiar. Uivam os lobos por cheirarem ao longe o receio. Os sacerdotes degolam os carneiros e têm orgasmos. Sanção já não ama Dalila, nem os seus seios, nem os seus joelhos, nem o seu regaço, nem a sua vagina que mais lhe parece um hieróglifo. Tudo nele é agora cansaço, os seus traços são mentirosos. Até o seu semblante é agora lânguido. Já não lhe ardem os beijos. Tudo agora é demorado como os espasmos. Até a traição deixou de ser silenciosa. Lá fora o gado passeia pelo meio das ruínas do templo. Sansão rapou o cabelo para ser futebolista. Por vez deixa-o crescer sete centímetros e meio para fazer publicidade a um champô que elimina a caspa. Dalila, essa maldita, que emagreça para caber dentro da lingerie. Sansão converteu-se ao islamismo e Dalila ao lesbianismo.

26
Nov18

419 - Pérolas e Diamantes: Os olhos vingativos das sereias

João Madureira

 

 

Muita da literatura que por aí vigora é dedicada a desconstruir instituições tão “perigosas” como  a família, a escola, a lei e o estado-nação através dos quais a herança da civilização ocidental foi passada até nos.

 

Esta literatura, que foi glorificada e fertilizada nos escritos de Foucault, apresenta como “estruturas de dominação” o que cada um de nós identifica como instrumentos de ordem cívica.

 

Ou seja, segundo esta interpretação, é urgente libertar as mulheres da opressão masculina, libertar os animais do abuso humano, lutar ao lado dos homossexuais e transexuais contra a homofobia, e mesmo cerrar fileiras ao lado dos muçulmanos para combater a islamofobia. Mas, a fazê-lo, é necessário deixar-nos absorver pela agenda da esquerda. De outra maneira, nada feito.

 

É triste, mas verdadeiro, o  igualitarismo mais radical dos marxistas e anarquistas do século XIX, que lutaram sem tréguas, e sem hesitações, pela abolição da propriedade privada, já não possui o poder de atração global de antigamente. O slogan “proletários de todos os países uni-vos”, foi chão que já deu uvas.

 

O objetivo igualitário não permite que nada, nem ninguém, se meta no seu caminho. Nenhum costume, instituição, hierarquia ou lei existentes, pode triunfar sobre a igualdade.

 

A proclamada justiça social continua a lavar a História. Uma mão lava a outra...

 

Marx defendeu n’A Ideologia Alemã algo extraordinariamente poético. A seguir à ditadura do proletariado, o Estado definhará. Não existirá nem lei, nem a necessidade dela. Tudo será de todos. Não existirá divisão laboral. Toda a gente irá gozar em pleno as suas necessidades e desejos, “a caçar de manhã, a pescar à tarde, a reunir o gado ao fim do dia e a discutir literatura depois do jantar”. A seguir à ideologia veio a prática. E depois foi aquilo que se viu.

 

Diziam os apóstolos dessa boa nova que tudo isso era “científico” e não utópico. Afinal, tudo não passou de uma piada. Que rica seria a vida sem propriedade privada.

 

Os marxistas “científicos” diziam que só um pensamento sério nos faria acreditar que a História caminhava, ou devia caminhar, no caminho do socialismo. Depois da realidade indecorosa desse “materialismo dialético”, os historiadores de esquerda passaram a minimizar as atrocidades cometidas em nome do socialismo e a culpar as forças reacionárias pelos desastres que fizeram retardar o avanço socialista.

 

Roger Scuton, considera que “a assimetria moral, que atribui à esquerda o monopólio de virtude moral e usa a ‘direita’ como um termo de abuso, acompanha uma assimetria lógica, nomeadamente, a admissão de que o ónus da prova cai sempre no outro lado e não pode , jamais, ser retirado”.

 

A esquerda uma coisa conseguiu: burocratizar a liberdade e a justiça social.

 

Eric Hobsbawm, por exemplo, nos quatro volumes da sua História do nascimento do mundo moderno, faz uma síntese enganadora tentando branquear a experiência comunista e culpar o capitalismo de todo o mal  no mundo, o que, bem vistas as coisas, é, além de sinistro, um pouco antiquado.

 

Todos sabemos que os factos são mais interessantes e memoráveis quando fazem parte de um drama. Por isso é que a esquerda passa a vida a dramatizar porque, na sua visão, a vida moderna só pode ser dramática. Sem drama não há revoluções.

 

A História marxista só adquire significado com a classe operária no topo das prioridades. Por isso há que demonizar a classe alta e romantizar a baixa. Faz parte do jogo. Faz parte do vício.  Faz parte do drama.

 

No seus livros, Hobsbawm, por exemplo, não se incomoda com pormenores como a lei e os processos judiciais, não vê necessidade em mencionar o decreto de Lenine, de 21 de novembro de 1917, que anulava os tribunais, o foro judicial e toda a advocacia, deixando as pessoas sem a única proteção que tinham, ficando por isso sujeitas à intimidação e à prisão arbitrárias.  

 

Lenine criou a Cheka, percursora do KGB, e o poder que lhe atribuiu para usar métodos terroristas necessários para expressar a vontade das “massas” contra a vontade do simples povo, também já se esqueceu. A borracha comunista é impressionante.

 

Eric Hobsbawm também nada diz sobre a fome de 1921, a primeira das três vagas de fome provocadas pelo Homem no início da História soviética, fome que foi propositadamente usada por Lenine para impor a vontade das “massas” aos desafiadores camponeses ucranianos, que ainda não tinham aceitado incorporar as leis do socialismo científico, nem o seu papel na História.

 

A morte libertou-os das dúvidas.

 

O que mais me surpreendeu na leitura do livro “A Era dos Extremos” foi o não ter sido considerada uma obra equivalente à do branqueamento do Holocausto por David Irving.

 

Mais uma vez descobri que os crimes cometidos à esquerda não são verdadeiros crimes. E que aqueles que os desculpam, ou ignoram, em silêncio cúmplice, têm sempre bons motivos para o fazer.

 

É bem verdade, a raposa pode mudar de pelo, mas não muda de hábitos.

22
Nov18

Poema Infinito (432): Matar saudades e outras coisas

João Madureira

 

O meu tio João fazia-me acreditar. Fazia-me acreditar que. Fazia-me acreditar que assobiava tão bem como os pássaros. Eu, entretanto, observava as borboletas e os escaravelhos. Sou daqueles que se engasga quando está a nadar. Por vezes sou um náufrago. Outras vezes sou uma ilha. Lembro-me de mover os dedos e de ouvir o silêncio. É necessário continuar a nadar. Vamos repetir o teatro da modéstia. Vamos marcar território. Estudo o método do saudável otimismo da juventude. Recupero o fôlego, a compaixão, o rosto fixo de dor da minha mãe. O rosto sério do meu pai. Agora limito-me a citá-los. Antigamente custava-me aceitá-los. Penso que a minha mãe sorriu no seu parto com dor, apesar de estar com o rosto sério. Não há felicidade depois do parto. A minha mãe era a mais linda do mundo. Todas as mães são as mais belas do mundo, se as deixarem ser. Ou não ser. Tudo faz parte da mensagem obscura da sobrevivência. Ainda há homens que escrevem poemas para as suas amadas. Que desperdício. A inocência é infinita. A estupidez é infinita. Faz parte da humanidade ultrapassar a violência. Para percebermos a verdadeira dimensão das palavras é necessário tirá-las do seu contexto. A sala do tempo engole todas as direções. Lembro-me das dificuldades matemáticas, do desânimo, das náuseas, das deferências fingidas, das exaltações, do esquecimento. Lembro-me dos treze de maio, das manifestações dos adeptos dos milagres, dos lenços brancos, das constipações, das obstipações, dos suspiros de alívio de Deus quando acabava a noite. Por vezes parecia ofendido. Torço os dedos para evitar a desgraça. Encolho entretanto os ombros e o meu olhar mais cândido. Tudo ofende Deus. Nada ofende Deus. Improviso a rapidez da resposta. Ou a sua lentidão. Depende do objetivo. Estou cheio de saudades. Eu agora quero é matá-las. Pretendo juntar o óbvio às futilidades. Parodiar as caricaturas. Procuro acalmar a virgindade. Ou a falta dela. As saudades envenenam-me. Eu sinto saudades de quase tudo: do assombro, da imaginação, das vacinas, das tigelas de caldo, da catequese, do som do riso da avó, das interrupções do avô, da relutância dos gelados, dos sussurros, da melancólica meditação dos néscios, dos monólogos dos doidos, dos palavrões do Birtelo, da fome infinita dos porcos, do chamorro dos coelhos e do gogo das galinhas chocadeiras. A excitação e o remorso gritam dentro de mim. Tenho cada vez mais dificuldades em acreditar. Os clérigos esforçam-se por morrer em Jerusalém para estarem mais perto da intricada noção de imortalidade. Não sabem que já nem a alma nos basta. Ou nos salva. Todo o castigo é crime. Esforço-me bastante para conseguir rir. Já não distingo a atração da excitação. Todos oramos pela ereção das almas. Procuramos agradar sempre à esperança. Sou agora um pagador de promessas. Ó meu rico São Caetaninho, peço-te que a antimatéria não faça parte da ciência exata do céu. A nós basta-nos o Purgatório. Até a humanidade um dia se vai transformar em poeira cósmica. Abençoado seja o Senhor. Já fui um velho educado, agora sou apenas um miúdo cínico. Agora ando no meio das estradas. Chego sempre cedo de mais às paragens do ridículo. Lembro-me do meu relógio Cauny Prima que me tapava o pulso fino. Espreitava então as horas com um nervosismo crescente. Agora apenas me limito a resistir à realidade.

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