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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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08
Nov18

Poema Infinito (430): Das catástrofes imaculadas

João Madureira

 

 

A natureza do teu templo é um dos pilares que me mantém vivo. As frases podem ser confusas, mas os símbolos da tua nudez vagueiam em mim como fósforos acesos. Pareces um anjo atrapalhado, de olhos e boca abertos e de asas desfraldadas. Até os acontecimentos mais inocentes são percursores de catástrofes únicas. Do paraíso sopra um vento que fecha as asas dos querubins. O progresso é uma espécie de tempestade. A catástrofe também. Também as lágrimas caem sobre o leite. A tua tristeza é limpa. O silêncio acomoda o pó dos caminhos. Doem-me os ossos. O nevoeiro transforma as montanhas em mar. Os seus cumes são as novas ilhas. As auroras estão mais maduras. O meu corpo segue o silêncio do teu. Antigamente, os anos passavam cheios de leveza. E ríamos. Os sorrisos eram deliberativos. A alegria era uma espécie de prefácio. A água perseguia as árvores e os lameiros. Os animais perseguiam a água. O azul defendia as tardes. Deus era o Verbo difícil. Depois tornou-se impossível. Fomos abandonados à alegria e, mais tarde, à tristeza. O peso do teu corpo é doce.  E imaculado. Alegro-me com o abandono das horas. O dia ascende minucioso pelas paredes da casa. A luz impõe o seu poder. As curvas voluntariosas dos corpos desejam ser discernidas meticulosamente pelas mãos de quem lhes dá prazer. Respirar o ar mútuo é uma das estratégias da sedução. A luz lamina os lençóis brancos. Cheiram a alfazema e a sémen. Os nossos gritos são quase sempre interiores. O amor chega vagaroso, mas é persistente. Nem tudo pode ser perfeito. A madrugada sobe atravessando as paisagens meio adormecidas. A sua frescura é longa como o rio que corre no vale. O teu corpo respira a fragilidade cansada da manhã. A tarde na floresta estará impregnada de barbitúricos. Os pinheiros vestem-se de seiva. No meio da caruma despontam os níscaros. O seu silêncio é lívido. Aprendemos com eles lições de subversividade estática. Os cães, de língua estendida, procuram os seus donos. A tarde ajuda a amadurecer os frutos. O tempo impõe as suas regras às agilidades sexuais. Um Deus emérito define a dose de engenho e louvor que cada sexo deve usufruir. Extinguiram definitivamente a máquina engenhosa de fazer aldeias. Para lá das janelas, as aves percorrem os gestos trágicos do início e do fim do mundo. Tudo é tão breve. Os domingos derramam-se pelos jardins. O crepúsculo desfaz-se em pedaços. Todas as máquinas nascem enganadas pelo seu destino. Falam-nos os deuses. Nós falamos de Deus. As horas mais densas têm o sabor da carne crua. Apetece-me agora falar da razão pragmática da crítica. Os sindicatos e o patronato fazem dos salários a sua religião. As religiões ruminam os seus cadáveres. Os santos mais sábios continuam em busca do Graal e do cântico dos cânticos. Dizem que gostam de comer romãs e beber água benta pela concha dos bivalves peregrinos. As paredes brancas suam. O teu corpo sua. O meu corpo sua. A busca do amor torna a vida impossível. Ainda hoje a cristandade sofre por causa dos infidelíssimos romeiros de Canterbury. As suas cópulas arrojadas transformaram os corpos infiéis em artesanato noturno. No entanto, os carpinteiros, pegando no exemplo de Jesus, aplainavam a madeira como se os troncos das árvores fossem mulheres ácidas. Os artesãos colocavam matéria sobre matéria para construírem as almas mais puras. E comiam as suas mulheres à mesa como se fossem ovelhas de Deus.

05
Nov18

416 - Pérolas e Diamantes: Populismos e outras tolices

João Madureira

 

 

 

A esquerda, apesar de manter a centralidade da relação entre opressor e oprimido, pensa ter evoluído no conceito transferindo estes termos para outros protagonistas. Os opressores são os capitalistas, os burgueses, os brancos, os colonizadores, os homens, os heterossexuais e os religiosos. Já os oprimidos serão os colonizados, os não brancos, os homossexuais ou pessoas de sexualidade alternativa, os globalizados e os livres-pensadores.

 

Mas agora, o conservadorismo adotou a forma de populismo.

 

Roger Scruton (autor do livro Tolos, Impostores e Incendiários) desconfia. Para ele, “populismo é a palavra usada pela esquerda para se referir ao povo quando o povo não a escuta […] Quando o povo toma uma direção diferente da que lhe estava destinada pelos intelectuais de esquerda, a esquerda conclui que o povo está a ser manipulado por demagogos”.

 

Mas parece que não existem apenas “populismos” conservadores ou reacionários, há-os para todos os gostos: Syriza, na Grécia; Podemos, em Espanha; Lega Nord e 5 Stelle, em Itália; Front National, em França; Freiheit Partei, na Áustria; Alternative für Deutschland, na Alemanha.

 

São muitos e variados os “populismos” que têm vindo a ganhar votos e a eleger deputados.

 

Para Jaime Nogueira Pinto, os partidos do “arco constitucional”, e os seus “intelectuais orgânicos”, atribuíram a estes perturbadores o epíteto de “populistas”, que é uma designação depreciativa associada à demagogia, oportunismo, ausência de ideias, “caudilhismo, radicalização na ação política e sectarismo social e étnico”; para contrastar com o discurso obeso dos “partidos da democracia representativa instalada, supostamente mais sábio, sóbrio, moderado, maduro, legítimo e objetivo”.

 

Na sua opinião, devido a uma longa presença no poder, que moldaram “aos seus princípios, práticas e tabus, ameaçados  dentro das regras do jogo democrático pelo voto do povo usado como arma, os partidos do sistema procuram defender-se, desqualificando o adversário, o estranho, o inimigo. Foi sempre assim que os civilizados, os ilustrados, as elites, trataram os que se amontoavam às portas das cidades e que queriam entrar”.

 

Um facto é evidente: os designados como populistas têm por inimigo comum os partidos sistémicos, denunciando as oligarquias políticas, económicas e mediáticas que acusam de terem “usurpado ou confiscado o poder do povo”, criando “uma falsa legitimidade” ou uma ilegítima representação dominada pelos poderes paralelos.

 

O populismo de esquerda é, essencialmente, antiglobalista económico, criticando as economias de mercado e o capitalismo, que diz combater através de medidas sectoriais mas de alcance tendencialmente global e, portanto, internacionalista.

 

Já o populismo de direita, sendo também antiglobalista, criticando o “capital internacional financeiro” privilegia a nação como estrutura defensiva, defendendo medidas protecionistas.

 

Os populistas de esquerda dizem-se herdeiros inconformados das Luzes, saudosos da sua revolução inacabada, netos de uma utopia igualitária ainda por cumprir, porque foi traída, dizem, pelos socialismos reais, ou pela corrupção e rendição ao capital da esquerda anémica que ocupa o poder. No entanto, exigem mais igualdade, mais laicizado e tendem a negar as identidades que a direita considera naturais: religiosas, nacionais e familiares.

 

Já os populistas de direita desconfiam de tudo: desde o progresso à mudança voluntarista, valorizando, ao contrário da esquerda, as pequenas comunidades, a família, a identidade nacional, as tradições ancestrais. São ainda críticos dos mecanismos transnacionais, nomeadamente a União Europeia ou o denominado mundialismo económico. Gostam, no entanto, de afirmar que não são contra a economia de mercado e a democracia representativa.

 

Estes dois populismos são inimigos figadais. O de esquerda, composto por intelectuais, estudantes, jovens e alguns velhos nostálgicos do Maio do 68, defende o multiculturalismo e a integração plena e acelerada dos imigrantes, mesmo extracomunitários. O de direita advoga precisamente o contrário, o que leva a que a esquerda acuse a direita de fascista, racista e xenófoba.

 

Isso não inibe essa esquerda de integrar alianças eleitorais e mesmo de governar. É esse o caso do Sirysa que, chegado ao governo, resolveu abandonar os seus “sãos” princípios, acabando por se resignar às políticas de austeridade impostas pela UE. Cá se fazem, cá se pagam.

 

Já o Podemos decidiu ter um pé dentro e outro fora do sistema. Em Itália, o 5 Stelle também faz parte do governo com a Lega Nord. Por cá, o BE, resolveu, para não destoar, viabilizar um governo socialista, possibilitando, dessa forma, derrotar o partido mais votado, o “reacionário” PSD de Passos Coelho.

 

O principal efeito dos partidos populistas de esquerda europeus, e também latino-americanos, nomeadamente na Venezuela e no Equador, tem sido o de contribuírem para a crise e a ruína dos partidos da esquerda tradicional, socialistas e comunistas. No entanto, não têm o relevo ideológico e o papel político dos movimentos e partidos de direita. Ainda vão ter de percorrer muito caminho.

01
Nov18

Poema Infinito (429): O desejo e o isolamento

João Madureira

 

 

 

Metidos no buraco, não alcançamos a linha do horizonte. Vence-nos a preguiça, na tarde morna. No verão, o sol é abrasador. No inverno, as geadas vidram os ribeiros e o frio mata os pardais. O pinhal continua a ser protetor e a guardar mistérios. Na casa da lavoura, as portas estão cerradas. A avó, o avô, a mãe e o pai já  não sobem os degraus. Aqui não há portas traseiras. A cozinha fica do lado esquerdo e os quartos situaram-nos do lado direito. O tanque é apenas parcialmente visível. Entardece. Ouvem-se ainda os balidos mansos das ovelhas. A luz das candeias principia a desenhar sombras. Junto à lareira começam a contar-se histórias antigas, as intrigas dos vizinhos, enquanto o pote de ferro coze lentamente as batatas, as couves e as carnes. Da varanda, os mais afoitos assistem ao extraordinário fogo do pôr do sol. Para mim, esse é o retrato que representa o fim do mundo. Com a ajuda dos livros relembro os natais antigos, os quartos caiados, as candeias toda a noite acesas. Jesus tremeluze e os adultos olham com indiferença o presépio. O oiro e a neve são falsos. As crianças adormecem junto do calor da lareira. Lá fora, o imenso e silencioso céu permanece imutável. O isolamento atual é opressivo. As ruínas são irremediáveis. Já ninguém escora vigas, nem conserta caleiras. A nossa felicidade afasta-se cada vez mais. As manhãs de aguaceiros ainda possuem a mesma luz de prata. Lembro-me do agosto à beira-mar ter vento e levantar o pano das barracas e de fazer rolar os chapéus de palhinha para o oceano. Mesmo à beira-mar, a tranquilidade das igrejas era sombria. Ainda hoje continua a ser assim. O vento faz sentir nas pernas o chicote de areia. O vento faz voar o cabelo. Até a mãe parece uma alma penada bonita. Esse tempo media-se pelo calendário das festas litúrgicas e das procissões. Agora o tempo é outro. As construções são de cimento armado. Já não há vidros nos cafés para refletirem os sorrisos sensuais das raparigas, as meninas bonitas já não puxam as saias para esconder as pernas. A mãe e o pai já não fazem parte do nosso ambiente mágico. As tardes na província são como inaugurações sem direito a notícias. Ainda me lembro das meninas finas enterrarem os grilos mortos que lhes oferecíamos junto das magnólias do jardim público. Os seus olhos pareciam abelhas e os seus corpos conventos. Os seus hábitos eram tranquilos. A memória precisa de ventilação para não morrer asfixiada: as carteiras impecavelmente alinhadas, os mapas de Portugal e das colónias, o crucifixo suspenso sobre a secretária do professor. No pátio continuam melancólicas as macieiras, os diospireiros, as figueiras, as pereiras e as camélias. As meninas pareciam móveis novos pintados de velho, como se fossem flores sem tempo e sem cor. Pareciam hóstias irisadas, bonecas vestidas de sossego que se riam como se já fossem infelizes. As mais devotas sabiam  histórias da Bíblia que misturavam com partes de filmes de aventuras. Triste sina é ter vocação para a escrita e nela não descortinar qualquer tipo de utilidade. A cidade é sempre o lugar da mudança. O comboio antigo já deixou há muito tempo de apitar mal irrompia a manhã. As dúvidas exaltam a tristeza. A escrita é uma espécie de milagre que permite recriar, com total liberdade, a criação do mundo. No entanto, a minha depressão ainda não atingiu esse grau de profundidade. Eu sou assim. Mesmo quando estou prestes a desistir, o som de passos ligeiros faz-me sempre ter esperança.  

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