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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

31
Jan19

Poema Infinito (442): O que o profeta diz

João Madureira

 

O profeta disse que quando tocava nas zonas periféricas da luz sentia o seu calor e depois conseguia dividir o vento, abrir as searas profundas, entender o valor das palavras e pesar a sua capacidade de abstração. Os objetos em que toca ficam a brilhar. No entanto, as dúvidas continuam a passar de boca em boca. As mãos crispam-se em espasmos. Os corpos desejosos de luz e orgasmos tremem como varas verdes. Os sítios da infância assemelham-se a poços sem fundo. O vento bate as searas, o ar levanta-se. As pessoas aproximam-se dos seus nomes e os nomes dos seus hologramas. Tu és a minha abundância. As estrelas ainda remoinham na mesma clareira onde eu costumava brincar. Lembro de a minha boca devorar a tua em forma de metáfora ininterrupta. Os dedos do tempo movem o mundo. A sua leveza desequilibra o amor. Algumas vezes, tanto vigor. Outras, tanta impotência. Sinto a eletricidade das cópulas primaveris, quando ampliamos os abraços, acendemos os sexos e atingimos a claridade reflexa das cores transitórias. As nossas bocas parecem labaredas. A combustão é instantânea. Sinto-me crescer dentro de ti. Esse é o meu sentido de posse. Essa é a minha pose. As mãos compõem a sintaxe do desejo. A sua ampliação. É quando perdemos o juízo que vamos dar ao paraíso. As estrelas mais claras aparecem nos corpos mais morenos. As estrelas mais morenas aparecem nas peles mais claras. Há quem me interprete como vindo de outra encarnação. A estupidez continua a ter futuro. Deixem enferrujar as espadas. Descansa o medo nas minhas pegadas pelo meio do monte. As folhas da macieira continuam a recolher o luar. O sabor da desilusão é sempre amargo. Por vezes as cicatrizes do amor brilham com uma intensidade violenta. Por vezes bebo da tua loucura e fico enflorado como se fosse um cometa que desliza sobre a água do mundo. Noutras alturas fico aluado com o fôlego obsessivo do ato sexual. A fosforescência do teu sexo, os botões dos teus mamilos dulcíssimos, a ideia meteórica de tudo aquilo que se espalha. Os espelhos, por vezes, espargem a luz. Andamos a apurar a substância melíflua das voragens, o poder do arrebatamento, os territórios silenciosos das mães. As laranjas do laranjal transformaram-se em meteoros, envoltas nos seus tecidos suaves. Vibram as rosas. A lenha arde por causa da sua resina. As curvas do tempo ficam mais harmoniosas. Corre a luz entre o teu peito e o teu sexo. Os dez dedos das mãos estremecem. As palavras ficam encharcadas de desejo e de sémen. As estrelas redemoinham. Abre-se o vento. A luz abre a noite. A gramática fica abrasada pela volúpia dos sentimentos. Cresce uma arte louca em nosso redor. Iluminam-se os lados das casas, os mistérios, a massa dos átomos que alivia a memória. Os dias separam-se da saudade. Resistimos à força do fogo protegidos pelas armaduras da leveza. Tudo o que é natural desaparece. Inclinamo-nos nos dias inteligentes, quando as sombras naturais se queimam na sua própria exatidão. Os vestidos têm o desplante de deformarem os corpos. O amor acumula-se. A alma aperta-se. Os campos de trigo ficam extraordinários. Respiro a tua doce dissipação. Que absurda tarefa é a do esquecimento. A inteligência pode ser cruel. Continuo a procurar o sentido da vida por entre as pedras. Amo-te mesmo debaixo dos relâmpagos.

28
Jan19

427 - Pérolas e Diamantes: Da estupidez

João Madureira

 

 

Musil dedicou algum do seu tempo a refletir sobre a estupidez. Escreveu até um breve tratado: “Da Estupidez (Uber die Dummheit).”

 

Considerava que – para não cair nas armadilhas que a idiotia apresenta contra a presumida inteligência – a modéstia é a melhor arma contra a estupidez. Explicava ele que cada inteligência tem uma estupidez que lhe corresponde.

 

Em “O Homem sem Qualidades” fala-nos da dialética entre a estupidez e a inteligência: “Se de dentro a estupidez não se assemelhasse tanto à inteligência, se de fora não pudesse passar por progresso, génio, esperança, aperfeiçoamento, ninguém quereria ser estúpido e a estupidez não existiria. Ou, pelo menos, seria muito fácil combatê-la.”

 

O que é certo é que o próprio Musil se absteve de responder com uma definição à pergunta que ele formalizou inicialmente: “O que é ao certo a estupidez?”

 

Todos sabemos que entrar em guerra aberta contra a estupidez é quase sempre inútil e, muitas vezes, um pouco estúpido.

 

Flaubert avisou-nos que a estupidez é inabalável, pois nada a ataca sem se despedaçar contra ela.

 

A estupidez atual não é isolável. Está disseminada por todo o lado, nomeadamente nas regras do jogo social e político e mesmo no fluxo cultural.

 

Mas é na política que a estupidez atinge o máximo esplendor. Ela é a própria lei do seu discurso. Ser inteligente no palco da ação e do debate político equivale a dizer que se aceitam as regras da estupidez, nomeadamente o pragmatismo sem ideias, a política sem substrato ideológico, a ação sempre legitimada pelo mesmo discurso, a tática que coincide sempre com a estratégia.

 

Musil distinguiu dois tipos de estupidez: a estupidez como ausência de inteligência e a estupidez como renúncia da inteligência. Foi esta última, por ser mais perigosa, que deu origem à Segunda Guerra Mundial, que lhe estragou a vida.

 

Há um filme que retrata bem aquilo de que estou a falar: “Bem-vindo Mr. Chance”.

 

O jardineiro Chance (Peter Sellers) faz papel de estúpido. É viciado em televisão e por causa dela exprime-se com longos e embaraçosos silêncios, ou então com os artifícios próprios da linguagem televisiva, quase sempre fora do contexto e de uma elementaridade desarmante.

 

A este tipo de estupidez outra se lhe vai opor, para a complementar, uma espécie de estupidez inteligente dos ilustrados.

 

São estes que atribuem qualidades superlativas a Mr. Chance (tais como a agudeza, a profundidade e a sapiência) e o propõem para presidente dos EUA.

 

No ano da sua estreia, o filme de Hal Ashby pôde ser visto e interpretado como uma alegoria. No tempo atual, tutelado pelo capitalismo afetivo, adquiriu contornos de profecia.

 

Logo de início avisei que se deve situar a estupidez para além da oposição à inteligência.

 

Como todos sabemos, nunca antes existiu uma época tão prolixa na produção de inteligência como a nossa. O problema é que também estamos profundamente dependentes dela.

 

Neste fenómeno de inversão induzida, nunca a estupidez foi tão encorajadora e vista como uma ameaça.

 

De facto, a mais inteligente das invenções do nosso tempo, a inteligência em estado puro,  conhecida como Internet, está sob suspeita de nos tornar estúpidos.

 

Diante de tantos dados, a inteligência humana, em vez de aumentar, retrocedeu.

 

A estupidez faz-nos até pensar que é melhor escutar atentamente os que pensam da mesma forma que nós, ou os que têm autoridade.

 

Convém perceber que os algoritmos nos fornecem apenas aquilo que quem os concebeu neles quis inscrever.

 

Chegou-se ao paradoxo de despender mais tempo e dinheiro no controlo das despesas e das atividades produtivas, do que na realização das próprias atividades.

 

Uma pergunta se impõe: Se regressar à ignorância é uma estupidez, poderá uma quantidade ainda maior de informação fornecer a solução?

 

Yves Michaud responde: “Deste ponto de vista, a obsessão contemporânea com a informação, a quantificação, a medida e a avaliação, é perfeitamente compatível com aquilo que lhe escapa, a saber, o dinheiro sujo ou branqueado, as fraudes, os tráficos criminais, a prostituição, as ações de psicopatas e os tráficos de influência.”

 

Ou nos pomos a pau ou toda esta inteligência vai acabar por nos tornar estúpidos.

24
Jan19

Poema Infinito (441): Os nomes simples

João Madureira

 

 

Os nomes simples nascem dentro de nós. E depois, lá fora, crescem os nomes dos elementos, as forças externas, o sonho do fim das guerras, o ar angélico dos demónios, o ar demoníaco dos anjos, o significado das estrelas, as bocas árduas, as zonas iluminadas a partir do centro, a vibração dos rostos, tudo aquilo que nos devora as células: o amor, a comida, o sono. E também o valor hormonal da decadência, as queimaduras, a respiração do vidro, a aceleração da respiração, a encarnação, a assunção, o desespero, a ordem nominal do mundo, os objetos que nos tremem nas mãos, tudo o que nos arde no cérebro, o nome dócil das máquinas, o deslumbramento dos nomes perfeitos, o batismo, os segredos inaugurais, o reino dos segredos, as palavras que os mestres carregam, o número inexplicável de prodígios, os sentimentos imóveis, o vento que passa eriçando a pilosidade de Deus. Irrita-me que o nome da liberdade seja invocado em vão, pois tudo o que é efémero se desfaz. A pátria está dividida, a terra exausta, o céu cinzento e o mar feito em pedaços. Apenas consigo alcançar os horizontes com o olhar. Já consegui identificar a partícula atómica que define a fronteira entre o dia e a noite. A glória de Deus ficou silenciosa. Adormeço no teu corpo escutando a sua música interior, a volúpia em dispersão, o medo, o sonho imortal do medo. Amplia-se o espaço. Eu tenho medo de ter medo, medo da tristeza, medo da dúvida, medo do desejo, medo da eternidade, medo da morte. Fez-se silêncio no teu corpo. Não há verdade sem palavras. O tempo é tão inútil que chega a enlouquecer. Não sei de onde vêm os caminhos que vão dar a ti. Cobrem-se os tempos de novas maldições. Os deuses de agora tudo deixam passar, põem os braços em cruz e exibem-se nos caminhos mais largos. Ventos virão de novos nortes, provocando outros dilúvios. As nuvens afogam-se dentro das águas do mar. A própria chuva não tem fim. Continuo à procura da palavra perfeita, da sua voz, do seu tempo, do seu mundo. As cores quentes espigam no meio dos abismos. O vento dispersa os gestos magníficos, as formas artísticas dos planaltos. Os corpos dançam. As labaredas iluminam as pedras e as árvores. Os nomes vibram como se fossem estrelas. Os dedos tocam-nas. As folhas brilham. Os segredos repetem-se. E repetem-nos. A eternidade é muito longa. Dizem que não tem forma, nem termo, nem explicação. É como uma luz difusa. Ninguém consegue entender a sua linguagem. Até a sua simplicidade é difícil de decifrar. Por isso o seu encanto é triste. Não se pode mostrar porque ninguém a pode ver. Nela não há bondade, nem tristeza, nem amor. A sua alma pesa como se fosse feita de mercúrio. Por vezes a tua voz acaba com as ameaças. Gosto quando me quebras a angústia. Não há mundos, mas caminhos. As árvores estão floridas, os seus frutos dispersar-se-ão pelo solo. Os seus ramos são serenos. As cores e as linhas do desejo adquiriram novas formas. O teu olhar está mais além. És o meu sonho realizado. Sinto a tua presença silenciosa. Os objetos da eira esperam pela luz. Os espíritos são como algoritmos, números sem tempo e sem nome definido, intermitentes, que não deixam rasto. São uma extensão dos sentidos de Deus. Pões as tuas mãos sobre a minha finitude. Pareço uma árvore que pensa. Escuto o vento que passa. Sinto o seu medo e o seu júbilo. Sinto a sua ternura e a sua saudade distante. A chuva desce vagarosa sobre nós.

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