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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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07
Fev19

Poema Infinito (443): As horas lubrificadas

João Madureira

 

 

O mal pode atingir-nos a todos? Há por aí tanto bem: a alegria, a mercadoria e todo o seu espetáculo infinito, comovente, repetitivo invariável, sempre renovável como uma ave-Maria, um Pai-nosso, uma cintilação do sol a curto prazo; todo o mal salgado, todo o mar sagrado, todos os focos de luz artificial, todos os reflexos num olho dourado, todos os manequins de olhos vendados, todos os computadores de olhos fechados, todas as horas lubrificadas. E lá vou eu deambular pelas horas labirínticas da quitanda das marcas. O meu prazer é solitário. Por isso me esquivo aos encontros que posso ter pelos caminhos. Tudo é autêntico de tão falso. Recuso a imitação. Somos descendentes de gente que sofreu muito. Enquanto os pobres suam, os ricos respiram. Os proletários não usam Ralph Lauren, nem que seja falso. Usam Pro-pro. Cobiço o desejo deliberado.  Mesmo imóvel, desço nas escadas rolantes uma e outra vez. Mesmo assim não vou ter a lado nenhum. Não quero ir. Apesar da insignificância dos gestos, não conseguimos abolir o tempo. Continuamos a ser seus escravos. Os espelhos continuam a surpreender-me: quando olho para eles, caminho sempre na minha direção. Somos peritos em colecionar sacos de plástico para combater o consumo excessivo de sacos de... plástico. Queremos branquear a política, como se ela fosse uma coisa de pretos. Para mal dos meus pecados, sofro de racismo instantâneo. Consigo adivinhar a igualdade reveladora da mudança de identidade. Sou um palhaço das conclusões. O branco é a cor do luto para os muçulmanos. O preto é a cor do luto para os cristãos. O mundo religioso é sempre a preto e branco. Acho que já não tenho realidade. Algum de nós perdeu a razão. Vamos ter de a procurar de novo. Aí, Sísifo, Sísifo, como custa aprender o teu mito. Ainda me obcecam as confissões, o seu medo, as suas contradições. O ar está carregado de eletricidade. Todos nós possuímos a fatalidade da felicidade. A sua memória é como uma ejaculação precoce. A linha do destino é invisível, estende-se sempre sobre as passagens superiores das autoestradas, sempre a cruzar a linha do horizonte, sempre a desviar-se. Rejeito o mal e a sua moral evidente. A chuva está eminente. Acredite-se ou não, a realidade é um pretérito simples. Apesar de tudo, os desejos são diferentes. E os pudores. E as expectativas. E o gozo. E o sofrimento. E a alegria. E também a tristeza.  Antigamente escondia as histórias nos buracos dos muros para ninguém mas destruir. Afinal, como se aprende a amar? Por vezes, os meus sentimentos voam de forma estonteante, carregados de imponderabilidade, de leveza. Louvado seja o Senhor, os anjos planam no espaço como os tapetes voadores dos contos árabes. O caos matou as fadas boas. A minha mãe continua a dizer-me para não chorar enquanto durmo. Levanto voo e recito de cor os versículos do coração. Reencontro um novo sentimento de imponderabilidade. Delicio-me com o silêncio comovido dos teus olhos. É bom que os espíritos bons não tenham nada de excessivo, nem de degradante. Os catálogos dos carros caros fazem a boa poesia parecer parva. A modernidade mais audaciosa encontra o sabor das tradições. O canto de trigo e a castanha de chocolate que o menino Jesus entregou à minha avó para ela me dar quando eu tinha oito anos ainda me aquece o coração.

04
Fev19

428 - Pérolas e Diamantes: Que não nos faltem as palavras

João Madureira

 

 

Quando quis falar, mandaram-me calar. Quando me calei, admiraram-se com o meu silêncio. Concluo que eles só me concedem o direito de palavra quando estou de acordo com eles.

 

O seu silêncio não significa que estejam a tentar esquecer. O que eles têm é medo de  recordar.  E conservam-no.

 

É curioso verificar que os amigos não têm as mesmas ideias que nós e aqueles que as têm não são nossos amigos.

 

Bernardino Machado escreveu que há uma lei na história da humanidade que domina todas as outras: “Nenhuma instituição vive, se sustenta e se radica senão pelo amor à liberdade.”

 

Os  democratas liliputianos da atualidade não se devem esquecer disso.

 

Parece que o nosso Estado de Direito foi construído com tijolos de corrupção, mentira e desconchavo ideológico cozidos nos fornos dos aparelhos partidários.

 

Com democratas deste calibre não precisamos de fascistas para nada.

 

Esta nossa República assemelha-se muito aos anos finais da monarquia onde, como escreveu Bernardino Machado, os homens estavam cada vez mais divididos por ambições e interesses. “Dum lado os Fósforos, do outro os Tabacos.”

 

Também agora, como nesse tempo, os homens vão dia a dia diminuindo de estatura moral.

 

Raul Brandão, nas suas memórias, escreveu a 2 de dezembro de1907: “O D. Carlos a um oficial do exército, depois da luta com o João Franco, das descomposturas ao rei, etc. – e referindo-se aos políticos: – Tu ouve-los falar, não é verdade? Pois se lesses as cartas que todos os dias me escrevem, e que estão ali naquela gaveta, enchias-te de nojo.”

 

Foucault tinha razão. Existem na vida momentos em que a questão de saber se é possível pensar de forma diferente de como se pensa e aprender de forma diferente de como se vê se torna indispensável para continuar a olhar e a refletir.

 

Todas as ilusões utópicas costumam acabar sempre da mesma maneira. Cito o poema de Manuel António Pina: “(...) O café agora é um banco, tu professora do liceu; / Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu. / Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes, / e não caminhos por andar como dantes.”

 

A desilusão é sempre a mesma: quem andou já não tem para andar.

 

E também trago à liça esse grande dia com que todos sonhamos, pelas versos de W. B. Yeats, pois já que nos sobram as lágrimas, que não nos faltem as palavras: “Viva a revolução e o tiro das armas! / Um mendigo a cavalo chicoteia um mendigo a pé. / Viva, voltou a revolução e o tiro das armas! / Os mendigos trocaram de lugar, mas o chicote permanece.”

 

Os conceitos que resultam de um diálogo normal advêm da necessidade de compromisso, de obter concordância, de estabelecer coordenação pacífica com indivíduos que não partilham dos nossos projetos ou das nossas preferências, mas que necessitam tanto de espaço como nós.

 

A grande astúcia do marxismo foi apresentar-se como ciência. Ao estabelecer a pretensa distinção entre ideologia e ciência, Marx propôs-se provar que a sua própria ideologia era uma ciência em si mesma. O que é uma falácia autoinduzida.

 

A objetividade científica foi-a buscar à pretensão interesseira da teoria de classes.

 

A análise marxista de classes, as teorias do Estado de Direito, a separação de poderes, o direito à propriedade, etc., exposta pelos pensadores “burgueses” como Montesquieu e Hegel, demonstrou não procurar a verdade mas os aparelhos de poder, que mais não são do que formas de manter os privilégios conferidos pela ordem burguesa.

 

Os marxistas numa coisa são peritos: em instigar um sentimento de superioridade moral aos seus apaniguados, resultando na perda espiritual que se manifesta quando as pessoas sentem mais prazer em minimizar os outros do que em se elevarem.

 

O objetivo dos democratas baseia-se  na intenção manifesta de conduzir a nossa vida social de forma a que não exista ressentimento. Devemos viver em ajuda mútua e em verdadeiro companheirismo, não para nos tornarmos iguais e inofensivamente medíocres, mas para conquistarmos a cooperação dos outros nos nossos pequenos sucessos.

 

Os marxistas também são bons em inventar o passado para distorcer o presente e impor um futuro feito à sua imagem e semelhança. Os seres humanos, na sua definição, apenas são “forças”, “classes” e “ismos”. As instituições jurídicas, morais e espirituais apenas ocupam um lugar marginal ou são introduzidas na sua argumentação somente quando podem ser facilmente identificadas em termos das abstrações que se justificam a si próprias.

 

Parece que, para a esquerda atual, a livre economia não é à propriedade privada, mas a propriedade privada dos outros.

 

Por outro lado, a esquerda urbana e bem colocada, mostra-se perturbada pela exibição de posse por parte das pessoas banais e correntes, grosseiras e sem educação.

 

O “consumismo” para ela não resulta da democracia, é apenas a sua forma patológica.

 

Ou seja, o resultado destas lutas sociais todas é que as ditas classes, tal como agora existem, continuam fluidas, temporárias e sem aparentes atributos morais.

 

Na verdade, existem nitidamente duas classes sociais: os empregados e os desempregados. Nenhuma tem o monopólio do poder sobre a outra, pois o processo político em curso fornece a cada uma defesa contra a coesão.  A nossa querida democracia possibilitou que entre as duas exista a máxima mobilidade social. A social-democracia e o socialismo democrático resultaram nisto.

 

Empregado hoje, desempregado amanhã. Desempregado hoje, empregado amanhã. Pelo meio vai-se vivendo às custas do Estado.

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