Vilarinho Seco
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Nomeio o vento e a sua passagem, as árvores e a sua condição, a alegria da infância, os primeiros frios de outono, as diversas flores que habitam as estações do ano. E também as cidades em construção, os gestos que as fazem emergir, o relento, o sol do dia mais próximo e as palavras que ainda são novidade. As multidões parecem florestas de braços caídos, condescendentes, apesar dos seus sentimentos aparentemente meigos. As paisagens multiplicam-se. As tardes parecem Santos crucificados pelo dever e pela fé. Os seus rostos estão nus como os rios. Os seus gestos são os estritamente necessários. Dentro de casa renascem as distâncias. É tempo de grandes descobertas. Os objetos parecem sítios minúsculos. Sentamo-nos e levantamo-nos como se fôssemos absolvidos pela magnanimidade dos sentimentos mais reservados. As pessoas parecem infelizes. As manhãs nascem para lá de nós, assemelham-se a memórias publicadas. A revolução já vai lá longe, pelos caminhos da perdição. As suas grandes questões nunca estiveram em mãos prudentes. Por isso as suas flores murcharam e foram substituídas por imagens semelhantes de plástico. O seu perfume complexo transformou-se em guerra e desilusão. Os camaradas tornaram-se imbecis e fecharam-se em gabinetes com as persianas fechadas. As suas vozes transformaram-se em insólitos pores do sol. E as crianças começaram a demorar ainda mais as suas vozes. A eternidade começou a medir-se por horas. Os velhos começaram a temer os dias. E o amor. E, sobretudo, as memórias. Diminuíram então as arcas e as crianças e escureceram as tardes ainda mais cedo. Até os lábios ficaram parecidos com frutos aborrecidos e maduros de mais. Os caminhos deixaram de ir dar a qualquer lugar. Os gestos começaram a nascer já ensinados, como se fossem coisas definitivas. E nas casas são já mais as esquinas que as paredes. A solidão é uma forma de sombra silenciosa, uma espécie da árvore onde os pássaros ficam prisioneiros. Bastam os pequenos gestos para as palavras mais frágeis se quebrarem como flores secas. As montanhas tornam as terras ainda mais distantes. A boca da noite é triste e incoerente. A claridade transforma a desgraça em loucura evidente. O amor, por vezes, pode ser amargo. As almas mais discretas deslizam de forma indecisa. A bruma da madrugada extingue os pássaros mais atrevidos. Os pequenos insetos perdem-se no interior das horas mais vagas. Vibra dentro de nós o som das despedidas. Os ventos de agosto levaram tudo, mesmo as árvores mais humildes. Os homens procuram uma outra forma de esperança. As paisagens estão mais cansadas e o rio mais imóvel. É tempo de as crianças soltarem os papagaios de papel. A vontade vai reconhecendo o desejo dos corpos estendidos, os seus segredos e os seus níveis de desespero. Tudo parece sobrenatural. Tudo resplandece até ao fim. Não é a geometria quem define a distinção entre as noções do bem e do mal. Imagino agora a dignidade dos mares, a circunstância dos sonhos, a parte invisível de tudo aquilo que é visível. A saudade ganha cada vez mais nitidez. Disfarço-me naquilo que sou. A manhã nasceu no meio da nossa alegria sossegada. O frio é agora uma pequena lembrança. O reflexo da realidade é uma espécie de revelação. Observo a oscilação das cores.
Ler Faulkner ou Saramago exige esforço. O seu tom autoirónico e de autoenaltecimento criaram um estilo. Por vezes podemos confundi-los com velhos vagabundos que alimentam pombos. Mas é engano. Os artistas costumam ser extremamente vaidosos e estranhamente endiabrados.
Dizem que faz parte da dignidade de um ser humano o longo sofrimento e o orgulho desprezível. Tretas.
Se a Humanidade é uma criação de Deus, estou em crer que o Criador acha que fracassou. Há quem confunda brutalidade com beleza.
A procura do sentido da vida remete-me para a velha história de Nicolau de Cusa. Este monge afirmou que quantos mais lados acrescentarmos a um polígono regular inscrito num círculo mais ele se parecerá com o círculo. Mas, teoricamente, é cada vez menos um círculo, porque um círculo só tem um lado. Para resolver o paradoxo, Nicolau disse que só podemos eliminar a distância entre os dois através de um ato de fé. É o tal salto no escuro.
O problema é quando finalmente encontramos o inimigo e o inimigo somos nós.
Por vezes sinto-me uma avestruz a sair de uma fábrica de frangos. Tudo o que sei é que já não sou um pintainho.
Penso que a minha cidade deixou de pertencer ao futuro. Mas eu sou um pessimista.
Tenho de admitir: sou um agnóstico do progresso. Mas também sei que o velho mundo ordeiro não é coisa em que se possa confiar, nem sequer para escrever um livro. Os sons da modernidade, em vez de harmonizar o que era discordante, criaram ainda mais discórdia.
Não é à toa que vivenciamos a nossa irrelevância. De facto, a irrelevância pode ser divertida até ao momento em que deixa de o ser.
A democracia dá ares de esgotamento. Votamos no partido com que alinhamos, mas ele já nada nos diz interiormente. Aqui chegados, lembro-me sempre que há duas maneiras de tirarmos um penso-rápido.
Os radicais acham que para se mudar o mundo é necessário dizer “não” a tudo e dessa forma se encerra o assunto. Mas eu, depois destes anos todos, sei que não é possível mudar nada se não se estiver disposto a dizer sim.
Ter variedade de escolha não é o mesmo que ter liberdade de escolha. Sobretudo quando são as outras pessoas a determinar essa escolha e não nós. Não é nada agradável ser uma espécie de exemplo ilustrativo de um argumento qualquer.
É da ciência antiga: as pessoas generosas são más negociantes.
Quando começa a ambição, terminam os bons sentimentos.
Se podemos dizer tudo o que nos apetece é porque aquilo que dizemos não faz diferença nenhuma.
As minhas certezas estão carregadas de dúvidas. E as minhas dúvidas estão, cada vez mais, carregadas de certezas.
Já os políticos mais apreciados e queridos pelo povo são os que desenvolveram a arte de dizer sim para conseguir chegar ao não e os que aprenderam a dizer não para conduzir a um sim. São ainda capazes de se dizerem apreciadores, e cultivadores, de uma tal pobreza honrada, enaltecendo o velho relógio da sala que nos remete para uma abastança já desaparecida. Gostam de dizer enfaticamente, lembrando Balzac, que compreender é igualar.
A social-democracia é a mãe de todas as vaidades. E de todas as desculpas. E de todas as justificações.
O pudor, mesmo disfarçado, possui os seus requintes. Isto gostam de repetir os que apreciam os bons lugares-comuns, como o tal de que não foram eles que escolheram a política, mas que foi ela que os escolheu.
É a crua realidade dos factos: vivemos entre o deslumbramento do homem executivo e do socialismo agnóstico.
Além disso, todos acreditamos em milagres. E esse é o principal milagre.
Em “A Minha Luta”, Karl Ove Knausgard reflete sobre o nosso tempo, sobre o fosso que existe entre o que se deve pensar e o que verdadeiramente se pensa, entre o que se devia sentir e o que sente realmente. E também entre o que o mundo devia ser e o que é. Ou seja, entre a ideologia e a realidade, entre a política e a literatura.
Cresci a sonhar com a possibilidade de fazer algo heroico. O radicalismo parece levar-nos a esse caminho. Mas sei agora que os heróis não existem, a não ser no papel.
Nem Ulisses foi capaz de fugir ao seu destino.
Na vida, ser sensível é mau, muito mau. Mas um escritor não consegue viver sem esse defeito.
PS – Descobri porque gosto muito, mas mesmo muito, de Bach, sobretudo das fugas. Apesar de revelarem uma estrutura altamente cerebral, quase matemática, estão carregadas de emoção.
Dizem, os que dizem ter fé, que no princípio era o verbo. Há outros que afirmam que no princípio houve a grande explosão e que, a partir daí, o universo se encontra em expansão. Provavelmente, isto tudo que existe sempre existiu. Tudo aquilo que se vê e não vê. No entanto, o que nos interessa é que os homens abençoados amam a terra como se dela tivessem nascido, falam com os pássaros e praticam o riso. As suas palavras fundem o metal. Os seus olhos são a memória do mundo. Dizem que Zaratustra tinha uma voz reflexiva e que dentro de si a religião nasceu quando Deus morreu. A sua voz provocava visões. Já Adão nasceu de um pedaço de barro que, tombado na relva, esperava que Deus fizesse o que tinha prometido num dia de raiva. Do futuro nasceu a terra, do escuro nasceu o homem. Ao grande Júlio César, os mais atrevidos chamaram-lhe o putanheiro careca e diziam que ele era marido de todas as mulheres e mulher de todos os maridos. Roma vestiu-o de púrpura, que era a única toga dessa cor em todo o Império. Cingiram-lhe na testa uma coroa de louros. Depois proclamaram-no ditador vitalício. Essa foi a sua marca mortal. O seu bem-amado Marco Bruto apertou-o dentro de um forte abraço e cravou-lhe nas costas a primeira punhalada. Outros punhais se seguiram. No corpo tombado nem os escravos se atreveram a tocar. Mal José saiu do quarto de Maria, o anjo entrou-lhe pela janela. Gabriel crê em tudo. Até naquilo que lhe dizem para dizer. José aceita. Maria sente que é predestinada. O seu prestígio provém da virgindade. São José passa a acenar-lhe de longe enquanto enxota a pomba que a engravidou. Nenhuma mão de homem a tocará. Maria foi concebida sem pecado, quer dizer que também a sua mãe era virgem. Passado muito tempo, os crentes em Espanha rezavam uma prece infalível: São José, tu que tiveste sem fazer / faz com que eu faça sem ter. Eva era matreira, mas não pecadora, pois ainda não sabia o que era o pecado, por muito suculenta que a maçã fosse. Já Maria Madalena era uma mulher da vida que se fez Santa. As mulheres, impuras por herança de Eva, conspurcaram a música sagrada, que passou a ser entoada por meninos ou por homens castrados. Misteriosos são os caminhos do Senhor. Nasceu depois um menino que batizaram de Jesus e a quem chamavam o Messias. Não se lhe conhece profissão ou residência. Dizia que era filho de Deus. E que tinha descido do Céu para incendiar a fé dos homens. Foi foragido no deserto, alvoroçava aldeias, bairros e cidades. Seguiam-no ladrões, malfeitores e gente de má vida, miseráveis, escravos, loucos, bêbados e até prostitutas, porque ele não se cansava de lhes prometer o paraíso. Dizem que até fazia prestidigitação, pois curava os leprosos, os paralíticos e os cegos. Era bom a multiplicar os pães e os peixes e a transformar a água em vinho. Era um fora da lei porque nunca respeitou a autoridade de Roma, nem a velha tradição judaica. Por causa disso, o seu pai avisou-o de que uma Cruz o esperava. Depois morreu. Dizem que Nossa Senhora nesse dia se desesperou como nunca o tinha feito. Dizem que o Cristo ressuscitou. Junto ao rio cantam agora os galos, enquanto em Jerusalém amanhece. Xerazade ensinou o mundo de que foi do medo de morrer que nasceu a arte de narrar. E assim viveu mil e uma noites num palácio em Bagdade, nas margens do rio Tigre.
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