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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

27
Jun19

Poema Infinito (462): Solidão

João Madureira

 

 

Começo a perceber a importância das coisas desnecessárias. O tempo não cresce sempre de maneira uniforme. As recordações são como imagens de gente que corre sem sair do lugar. É vã a tentativa de me separar da minha sombra. Custa-me ver os quadros incompletos virados para a parede como se estivessem de castigo. A imagem da proteção é sempre iridescente. De repente vi-me rodeado de um grande sossego. Deus alimenta-se de sonhos e de crânios vazios. Os rios continuam a batalhar, mesmo que por vezes de forma subterrânea. O tempo parece que chora, vergado pelo descontentamento. É estranho o vento soprar em agosto. Nos montes, florescem as saudades. As flores silvestres nascem agora de forma inconstante. Primeiro perdemos a distância, agora perdemos também a metódica duração dos passos que nos levavam até ela. Já não entendo as canções, apenas consigo interpretar alguns murmúrios. Os rostos mudam de lugar sem mudarem de expressão. A ternura teima em ser lavrada. Toda a esperança elabora a sua própria biografia. Algumas vezes é a glória que escreve a história, outras é a história quem define a memória. Os caminhos de regresso estão cada vez mais sombrios. Os dilúvios bebem a cor das estrelas. A sua luz parece mais instável. A vida tende para Eros, para o seu infinito. Para a sua destruição. Um tédio imenso engole tudo. Sinto a mão da mãe pousada sobre o meu cabelo de criança como fazendo parte da eternidade. Troco o sacrifício pela iluminação. O êxtase da tarde espera por nós. Ouvimos o sotaque inútil das palavras obscenas. O jejum já vem de longe. Não vale a pena tentar perceber o tempo, nem a viagem ligeira das almas. Tudo o que o tempo tem o tempo o gasta. Apenas a inquietude permanece a mesma. O frio repousa dentro dos livros mais antigos. As ruas da aldeia estão vestidas de caras tristes e monótonas. Uma espessa névoa húmida acerca-me da infância. As recordações são como vidros ásperos. O engano também pode ser insistente. A culpa move-se como uma cobra. Agora é o tempo dos crepúsculos. Também há rigor na imperfeição. A culpa pode transformar-se em amor e ganhar a nitidez das estrelas. Lembro-me de os ceifeiros cantarem e de o ar agitar as searas do centeio. Nesse tempo, a terra respirava. Ainda não havia ausências. Tudo era. Tudo estava. Agora a memória é branca, sem destino, mesmo que por vezes faça algum sentido. As crianças matavam os monstros e depois fugiam através de labirintos guiados pelos sorrisos das mães. Os poemas eram feitos de desordem e danados para a brincadeira. Até o silêncio da noite adquiria a velocidade mágica dos encantamentos. O tempo estava carregado de inocência. Os velhos esperavam pelos novos. E os novos esperavam pelos velhos. Depois as palavras começaram a arrefecer e os astros a ficar em silêncio. Só a sinceridade continuou a falar claro como a água. Apenas as pequenas histórias são consequentes. O desassossego continua ansioso como sempre foi. É o andar que faz os caminhos mais simples.  As janelas das casas abandonadas sofrem agora a violência do sossego. O tempo adquiriu a densidade da monotonia. Os labirintos emaranharam-se e transformaram-se em grutas profundas. Tudo adquiriu a mágoa das distâncias. As epifanias atravessam o universo repletas de caos e eternidade. Cada estrela possui a sua própria solidão.

24
Jun19

448 - Pérolas e Diamantes: Prosélitos e terapias

João Madureira

 

 

Quando tinha vinte e poucos anos, Leonardo da Vinci foi acusado de “cometer sodomia na pessoa de Jacopo Saltarelli”. Nessa altura, a homossexualidade pagava-se com o fogo.

 

Foi absolvido por falta de provas e, para bem da Humanidade, regressou à sua vida.

 

Pintou obras-primas que inauguraram o esfumado e o claro-escuro na história da arte. Escreveu contos, lendas e receitas de cozinha. Desenhou perfeitamente, e pela primeira vez, os órgãos humanos, estudando a anatomia nos cadáveres. Confirmou que a Terra girava.

 

E, para que se saiba, inventou o helicóptero, o avião, a bicicleta, o submarino, o para-quedas, a metralhadora, a granada, o morteiro, o tanque, a grua móvel, a escavadora flutuante, a máquina de fazer esparguete e o ralador de pão.

 

Aos domingos, com o dinheiro que ganhava, comprava pássaros no mercado e abria-lhes as gaiolas.

 

Há pessoas que se revelam naturalmente educadas, mesmo quando abordam assuntos escabrosos. Como existem outras que são grosseiras até quando dão os bons-dias. No fundo, o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita.

 

Dizem que Leonardo nunca abraçou uma mulher. Mas todos sabemos que pintou o retrato mais famoso de todos os tempos: A Gioconda.

 

A arte nasce sempre de uma forma de solidão fecunda.

 

Agora a arte é outra. Uma ideologia tão diversa que apenas é única numa coisa: a idiotice.

 

Como diz António Vitorino de Almeida: Há que temer bastante mais certos encómios do que a própria boçalidade dos atolambados que enveredam pelo insulto soez e pela consequente recusa das “intrínsecas qualidades”.

 

Dizem que o compositor Mahler, um judeu que se fez batizar já homem feito, quando um dia recebeu a visita do maestro e seu assistente Bruno Walter, no seu retiro de férias – que na realidade era o seu laboratório artístico –, verificando que ele se colocara na varanda a contemplar a paisagem, levou-o para dentro de casa argumentando que escusava de olhar, porque tudo o que dali via estava na sua Sinfonia.

 

Em parte das suas nove sinfonias – obras monumentais com introdução frequente da voz, quer a solo, quer em coro –, utilizou instrumentos que não eram nada habituais na orquestra sinfónica, tais como xilofone, harmónio, guitarra, badalos de vacas e até um martelo para bater no estrado de madeira dos percussionistas.

 

O problema maior, como esclareceu Gilles Deleuze, é quando somos apanhados no sonho dos outros, pois não há nada a fazer, já que não nos podemos safar acordando.

 

A religião é uma crença supersticiosa e as terapias alternativas são como drogas. Os profetas da new age não se cansam de nos falar dos benefícios da homeopatia, do reiki, da medicina quântica, do comunismo temperado, da cinesiologia, da magnoterapia, do nacionalismo internacionalista, da sanação holística, do bom fascismo, da bio-energia, da fé redescoberta, dos adivinhos, dos curandeiros de todos os géneros e da terapia sexual alternativa.

 

O dito homem pós-moderno é barro em estado puro pois pode-se modelar à nossa vontade. É pau mandado, um convencido que anseia brilhar, despido de caráter e de iniciativa. Ou seja, faz o que lhe mandam e costuma dizer que a mais não é obrigado. Confunde habitualmente classe dominante com classe dirigente.

 

Alguns deles ainda se entusiasmam com a aventura dos bolcheviques. Gostam de ver filmes antigos.

 

Como escreveu Raymond Aron, a verdade é que a pretexto de substituir o governo dos homens pela administração das coisas, o socialismo real administrou os homens, incluindo o seu pensamento.

 

Uma coisa ficou provado com a impulsão do comunismo: os homens manipulam pela técnica as forças naturais, mas não as forças sociais. Os planificadores sociais do Leste revelaram-se impotentes.

 

Estamos a assistir ao fim das grandes ideologias e ao renascimento das ideias.

 

Claro que continua a haver razões para não estarmos satisfeitos com esta realidade imperfeita. Era o que mais faltava! Claro que podemos, e devemos, criticar as injustiças de certas instituições e a mediocridade da maioria das vidas. Mas uma coisa é certa: os prosélitos  dos amanhãs que cantam são incapazes de opor à sociedade existente a imagem de uma sociedade radicalmente diferente.

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