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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

29
Jul19

453 - Pérolas e Diamantes: Ironias e genocídios

João Madureira

 

 

A ironia de determinados acontecimentos dá que pensar, ou faz-nos rir, para não chorar.

 

Rembrandt – o mestre do claro-escuro, que revelou a luz nascida da escuridão –, por causa de um escândalo amoroso  passou os seus últimos anos na sombra, perdeu a casa e os seus quadros e foi enterrado num sepulcro de aluguer.

 

As obras de Veermer, quando morreu, vendiam-se por quase nada. Em 1676, a sua viúva pagou com dois quadros a dívida que tinha ao padeiro.

 

O monarca inglês Henrique VIII teve seis rainhas. Ou seja, enviuvava facilmente. Dizem que devorava mulheres e banquetes. Seiscentos lacaios serviam as suas mesas, onde transbordavam empadões recheados de perdizes, onde pavões eram servidos com toda a sua excelsa plumagem e onde enormes pedaços de vitela, ou leitão, eram esquartejados atribuindo-lhe o rei títulos nobiliárquicos. Quando teve a sua última rainha, Henrique estava tão gordo que não conseguia subir as escadas que separavam a cozinha do leito nupcial. Inventaram-lhe então um elevador que o levava da mesa para a cama, ainda de prato cheio.

 

O rei Ricardo III, um dos primeiros ícones dos assassinos em série, deixou na história inglesa e na obra de Shakespeare, um rio de sangue, na sua caminhada até a coroa. Matou o rei Henrique VI e também o príncipe Eduardo. Afogou o irmão Clarence num barril de vinho e acabou com a vida dos sobrinhos. A dois deles, príncipes ainda crianças, encerrou-os na Torre de Londres, sufocou-os com as suas próprias almofadas e enterrou-os em segredo debaixo de uma escada. Enforcou também o lorde Hastings e decapitou o duque de Buckingham, seu melhor amigo, o seu outro eu, para não se dar o caso de ele se lembrar de conspirar. Foi também o último rei inglês a morrer numa batalha.

 

Foi John Locke quem fundamentou filosoficamente a liberdade humana em todas as suas variantes: a liberdade empresarial, a liberdade de comércio, a liberdade de concorrência, a liberdade de contratação. Este paladino das mais amplas liberdades, defendeu também a liberdade de investimento. O autor do “Ensaio acerca do entendimento humano”, para dar coerência às suas ideias, resolveu investir as suas poupanças na compra de um pacote de ações da Royal African Company, empresa que pertencia à coroa britânica e aos apelidados de “homens industriosos e racionais”, dedicando-se a capturar escravos em África para os vender na América. Segundo a RAC, os seus esforços garantiam “um fornecimento constante e suficiente de negros a preços moderados”.

 

Durante os séculos XVI, XVII e XVIII, a África vendia escravos e comprava espingardas, trocando mão de obra por violência. Nos séculos XIX e XX, a mesma África entregou ouro, diamantes, cobre, marfim, borracha e café, recebendo em troca Bíblias. Trocava a pecaminosa riqueza da terra pela Divina promessa do Céu.

 

 Convém também lembrar que os próprios reis africanos tinham escravos e lutavam entre si.

 

Os traficantes de escravos, talvez devido ao seu sentido de humor apurado, chamaram aos seus melhores navios Voltaire e Rousseau. Alguns negreiros, provavelmente os mais devotos, batizaram os seus barcos com nomes religiosos: Almas, Jesus, Misericórdia, Nossa Senhora da Conceição, Profeta David, Santa Ana, Santo António, São Filipe, São Miguel, São Tiago. Outros davam testemunho do amor à humanidade por parte dos proprietários: Amizade, Esperança, Herói, Igualdade. Ou às aves: Beija-Flor, Rouxinol. Ou lembravam impulsos: Desejo. Outros ainda pretendiam homenagear as suas esposas ou as queridas filhas: Adorável Betty, Amável Cecília, Prudente Hannah, Pequena Polly. Os mais coerentes ficavam-se pela intenção disciplinadora: Subordinador e Vigilante.

 

Claro que muitos escravos tentaram fugir a tão triste condição. Os que falharam a sua tentativa sofreram castigos de mutilação, corte de uma orelha, tendão, pé ou mão. Nos meados do século XVI, o misericordioso rei de Espanha proibiu, em vão, “cortar as partes que não se podem nomear”. Aos reincidentes, cortavam-lhes, mesmo contra a vontade do monarca, o que lhes restava e enviavam-nos para a forca, a fogueira ou para o cepo. Nas praças das povoações, as suas cabeças eram exibidas em estacas.

 

No século XVII, por toda a América, multiplicaram-se os baluartes dos fugitivos livres, que se escondiam nas profundezas da selva, ou rodeados de areias movediças, ou em terrenos firmes mas com falsos caminhos, pejados de estacas aguçadas. No Brasil chamaram-lhes quilombos.

25
Jul19

Poema Infinito (466): Sempre

João Madureira

 

A fogueira ardeu durante toda a noite até as nossas lágrimas secarem. Os frutos da árvore do tempo estão já maduros de mais. Oiço as vozes desfeitas pelo desespero. O dilema ganhou a forma de meditação.  Chego e parto. Os olhos dos vivos parecem chagas. Jazem em repouso frio as mãos que arrancaram beleza aos montes que nos rodeiam. A terra dos vinhedos está recalcada. Fermentam nela ainda restos de força e cansaço. Outra vida começa. Outras imagens. A fogueira de lenha é coisa do passado. A fé já não aprecia ser aquecida. A terra parece mais humana, mais funda. Tento inspirar-me na sua ternura. A forma do tempo é mais límpida. O vento faz oscilar a razão. A luz da madrugada é pesada e fria. Alguém acena no meio da bruma. Parece que grita mas não se ouve som nenhum. Os caminhos são agora mais vagos. Sinto a expressão da sua angústia. Toda a beleza possui o seu próprio sentido secreto. Alguém desenhou no céu uma lua nova. Corre na velha árvore do largo uma seiva cansada. As suas folhas parecem versos esgotados. Nos baixios, a água está parada. Lembro-me da velocidade antiga do rio, da alegria das crianças, da quentura da mães, do olhar fraterno dos avós e da força interior do olhar dos pais. Ao sol levedava a grandeza das colheitas, a chuva descia sobre nós de forma alada. Os pássaros mais alegres bebiam as gotas matutinas do orvalho. Dói-me a ausência da voz da mãe. Custa viver no Purgatório e escutar o silêncio do Céu. A covardia vive agora no Paraíso. Foge-nos a forma das coisas, o abandono dos ninhos. A vida descansa na terra, nas sementes, nos caules e nos animais. Apenas um galo cantou na escuridão para afastar o medo. Por vezes desperto dentro de uma onda de calor. A aldeia parece uma ilha rodeado de lagos, bosques e luar celeste. Fecharam há pouco as portas a essa ilusão. As horas são agora mais despidas e incertas. Muita gente nasceu aqui. Muita gente viveu aqui. Muita gente morreu aqui. Para sempre. A mentira dos sonhos também pode ser uma forma de beleza. Ergo o olhos da terra que está de poulo. Poucas são as leiras semeadas. As nuvens são parecidas com as de antigamente. Dizem que as tempestades também possuem a mesma ferocidade. E que as quimeras, as ambições e os desejos se assemelham a ecos dos gritos antigos. Os beijos e os coitos são agora definidos e consumados a céu aberto. Já ninguém sonha com a lei da ocasião. A inocência nunca passou de uma promessa. A memória das suas brasas continua a queimar-me por dentro. Que alegria tão triste produziu. Um clarão de fantasia iluminou a escuridão. As mãos dos cegos desenvolvem sentimentos tácteis. De um lado terra.  Do outro lado gente. Pela janela aberta entram segmentos dóceis do firmamento. Sinto o chão a arrefecer. Os sonhos também podem ser desumanos. O fumo sai das chaminés das velhas casas de pedra com a sua forma irónica. Quem olha consente. Os milagres davam-se sempre durante o inverno.  Apesar do frio, tudo ressurgia como se fosse pão a levedar. Banho o olhar no rio claro que passa na cortinha. A memória da dor oscila, mas não muda de condição. A distância do desejo brilha junto ao outeiro. Parece uma sugestão de verdade. A vida já não leveda como o pão. Os caminhos adquiriram o azedume da erva. Os rouxinóis parecem meditar os seus trinados. O Senhor do Calvário continua mudo e dorido como sempre.

22
Jul19

452 - Pérolas e Diamantes: Desumanizações

João Madureira

 

 

Continua a dar que pensar o facto de, como concluiu Norbert Frei, o nazismo não ter constituído uma monstruosa excrescência, mas ter-se revelado estar enraizado no mais profundo das estruturas sociais, mentais e culturais da Alemanha.

 

Apesar da escala ser diferente, o mesmo se pode dizer do fascismo português.

 

Desta forma, fica posta em causa a noção segundo a qual teria existido um totalitarismo sem limites sobre a sociedade alemã e de que os indivíduos teriam sido privados de todos os seus quadros de referência e integração sociais e intelectuais, “atomizados” e inteiramente submetidos à violência e à doutrinação.

 

Sabe-se hoje que a base social do partido de Hitler foi maior do que se pensava, ultrapassando em muito o número dos militantes do NSDAP e as fronteiras de uma só camada ou classe.

 

Primo Levi, um dos mais famosos sobreviventes de Auschwitz, demonstrou que nos campos de morte não existiam unicamente as vítimas e os carrascos, mas também muitos outros comportamentos. Foi ele que alertou para o facto de os criminosos nazis serem feitos do mesmo tecido (humano) dos outros seres humanos, e de os seus atos resultarem de uma educação e de outras circunstâncias particulares, em que se dera uma transferência do normal para o patológico no seio de um sistema em que os fins justificavam os meios.

 

O mesmo processo se desenvolveu nos gulags, os campos de extermínio comunistas.

 

Foi a desumanização das vítimas, a especialização profissional e a forma tecnológica como cada um exerceu a sua parte do crime, o que baniu do seio dos “perpetradores” toda a espécie de consideração moral.

 

Com esse fim, foi eliminado qualquer tipo de empatia com as vítimas. As noções de lealdade, dever e disciplina tornaram-se imperativos morais.

 

Como escreveu Irene Flunser Pimentel, “indivíduos normais tornaram-se instrumentos da vontade de outrem, sem se sentirem pessoalmente responsáveis pelo conteúdo das suas ações”.

 

Christopher Brown, tentando procurar os motivos que levaram tantos a matar milhões de pessoas, dividiu os perpetradores em quatro grupos diferentes: os ideólogos e os crentes fanáticos no regime nazi, tomando como exemplo paradigmático Heydrich e os que estiveram à sua volta na RSHA; os especialistas e profissionais alegadamente apolíticos, dos quais faziam parte generais, industriais, médicos e cientistas que colocaram em prática e partilharam os objetivos nazis; os banais burocratas e funcionários dos escalões intermédios e baixos da administração pública; e, por último, os homens vulgares, recrutados ao acaso para a Wehrmacht, a polícia de reserva, e as autoridades de ocupação, participantes nos massacres de civis.

 

Depois distinguiu três tipos de argumentos: os usados pelos próprios assassinos, de que teriam sido forçados a matar; as explicações dadas pela Escola de Frankfurt com recurso ao conceito de “personalidade autoritária; e a “explicação cultural”, que responsabiliza pelos crimes toda a cultura alemã.

 

A análise histórica diz-nos que a grande maioria dos perpetradores de “baixo” pensava que estava a combater pelo triunfo da Alemanha e também pelo da civilização ocidental cristã. Muitos dos que prestaram testemunho reconheceram ter sido enganados. Mas talvez não tenha sido bem assim. Há diferença entre ser enganado e deixar-se enganar.

 

Tanto os perpetradores menores como os denominados espectadores dos crimes deixaram de ser anónimos, pois caiu o mito de que o genocídio apenas teria sido levado a cabo pelos elementos da SS e dos Einsatzgruppen, e não pela “decente” Wehrmacht. Mas convém não esquecer a cumplicidade prática com os crimes nazis e a Shoah por parte de ucranianos, bielorrussos ou civis lituanos.

 

A abertura dos arquivos nos países de Leste e na URSS, nos anos 90, veio revelar que participaram diretamente nos crimes e na Soah atores não alemães, nomeadamente: estónios, romenos, ucranianos, letões, lituanos, polacos e croatas. Ou seja, sendo um processo imposto pelo ocupante alemão, o genocídio dos judeus apoiou-se em pulsões de violência antissemita de populações locais.

 

Uma coisa sabemos: não são as estruturas que matam, mas sim as pessoas. A verdade é que os denominados “homens vulgares”, enquanto indivíduos, participaram com iniciativas próprias e com as suas próprias ideias e práticas no processo de extermínio. Hitler, Himmler e os outros nunca estiveram sós.

 

Ou seja, tanto o Estado como o partido nazi, dependeram de uma verdadeira indústria de denúncias. Foram os “alemães vulgares” quem contribui para a radicalização da violência no seio do regime.

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