No elevador
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Um Cristo sequinho olha para mim como se tivesse fome. Sei que ele partiu lá de longe para outras terras ainda mais distantes. Dizem que não foi homem de desistir. As suas palavras serenas não conseguiram semear a paz. Tateio as paredes perseguido pelos seres da escuridão. Oiço o ar a desembocar no labirinto. Com ele, todo o cuidado é pouco. Aconchego-me no frio da cama. A mãe morreu devagar, pensando que já ninguém pensava nela. Os seus olhos encheram-se de imagens desfocadas. A sua memória estava repleta de retalhos. Os infelizes anseiam por desastres. O tempo vai e volta como se fosse um só. Absorvo-me no cruel exercício da abstração. A fragilidade é uma forma de punição humana. A curiosidade dos outros adquire a forma de pedradas. É uma outra configuração de hostilidade. As paredes de granito grosso amortecem os gritos do exterior. Chegam até nós os sons reduzidos de uma voz decepada. Nem sempre se acerta com o destino. Era frequente a avó conversar com o sossego, transformar os objetos em uso, caminhar as distâncias de forma sábia, respeitar as estranhezas, atenuar os acessos de loucura dos vizinhos, arredondar as más notícias, equilibrar os sorrisos, compor os insucessos, fazer engolir os maus orgulhos aos desprezíveis. Depois da morte do avô, acendeu-se-lhe no olhar uma luz difusa de sofrimento. Os seus olhos começaram a penetrar a escuridão. Os anos morderam-lhe ainda mais um pouco a sua singela beleza. Nos se demorava nem no riso, nem no choro. Poupava nas emoções. Não desperdiçava nada. Apenas não poupava no silêncio. Ria-se algumas vezes para que a raiva não a cansasse em demasia. Conseguia limpar as coisas interiormente. Apesar da magreza, o espaço crescia dentro dela. A justeza encontra causas, não desculpas. A ação compensava-lhe os motivos. Eu costumava rir-me com as suas fantasias, com os seus entendimentos e com as minhas obsessões. As palavras só interessam quando queremos compreender. Comecei a alinhavar invenções e a desenvolver esquisitices. Arranjei feitio para a vergonha. Nela tudo era transparente, menos o desgosto. O extremo da paisagem que daqui observo parece o infinito. A memória força-me a arranjar personagens que anteveem o destino. É da tradição os velhos avisarem os novos sobre as tristezas da idade. As nossas conversas estão repletas de curvas. Há palavras que levantam iras e outras que impelem ao perdão. Nas noites de verão, a obscuridade possui outra leveza. Há pessoas que arreliam as brisas e as afastam dos jardins. A história não costuma registar esquecimentos. As ofensas costumam vir carregadas de pólen. Querem parecer inofensivas. A razão não se esconde atrás de segredos. A desilusão costuma magoar mais do que a culpa. Quando se ouve bem ganha-se confiança. A arte está em oscilarmos e não nos desequilibrarmos. Também eu já tive a minha ocasião de pássaro, inventando grandes paixões, coisas gloriosas, esvoaçando de espanto, debicando raios de luz. Agora penso nos enigmas, na clareza dos perigos, na falência dos sonhos. Os sonhos têm agora asas grosseiras. Distraímo-nos demasiadamente com o mal. A bondade emagreceu, curvou-se, ficou cheia de dores. Percorro devagar o caminho de casa. No quintal, a folhagem ganhou a cor vermelha da fatalidade.
É costume ouvirmos falar os presidentes dos EUA em nome de Deus. O que nenhum deles revelou ainda é a forma como costumam eles comunicar com Ele. Se por processos tecnológicos ou por telepatia. Em 2006, mesmo sem sabermos da Sua concordância, ou da falta dela, Deus foi proclamado presidente do Partido Republicano do Texas.
Ao que se sabe, o Todo-Poderoso primou mesmo pela ausência na época da independência. A primeira Constituição nem sequer o mencionava. Perguntaram a Alexander Hamilton qual a razão para tal esquecimento. Explicou que não necessitavam de “ajuda externa”.
George Washington, no seu leito de morte, não quis orações, nem sacerdote, nem pastor nem outra coisa parecida.
Benjamim Franklin afirmava que as revelações divinas eram pura superstição. Thomas Paine gostava de dizer que a sua mente era a sua igreja, já o presidente John Adams considerava que “este seria o melhor dos mundos possíveis se não houvesse religião”.
Tomas Jefferson considerava os sacerdotes católicos e pastores protestantes como “adivinhos e necromantes” que tinham dividido a humanidade em dois: uma metade de tontos e outra metade de hipócritas.
A Enciclopédia francesa (l’Encyclopedie), marcou com a sua sabedoria o “Século das Luzes” que, de alguma forma, lhe ficou a dever esse nome. O papa de Roma mandou queimá-la e determinou a excomunhão de quem quer que tivesse um exemplar de obra tão blasfema.
Diderot, d’Alembert, Jaucourt, Rousseau, Voltaire e mais alguns dos seus autores, arriscaram ou sofreram mesmo prisão e o exílio para que este trabalho coletivo pudesse influenciar, como influenciou, a história futura das nações europeias.
Passados que são dois séculos aqui ficam, por sugestão de Eduardo Galeano, algumas definições que são um convite ao pensamento.
Autoridade: “Nenhum homem recebeu da natureza o direito de mandar nos outros.”
Censura: “Não há nada mais perigoso para a fé do que fazê-la depender de uma opinião humana.”
Clitóris: “Centro do prazer sexual da mulher.”
Cortesãos: “Aplica-se àqueles que foram colocados entre os reis e a verdade, com o fim de impedirem que a verdade chegue aos reis.”
Homem: “O homem não vale nada sem a terra. A terra não vale nada sem o homem.”
Inquisição: “Moctezuma foi condenado por sacrificar prisioneiros aos seus deuses. Que teria dito se visse alguma vez um auto de fé?”
Escravidão: “Comércio odioso, contra a lei natural, no qual alguns homens compram e vendem outros como se fossem animais.”
Orgasmo: “Existe alguma coisa que mereça tanto ser conseguida?”
Usura: “Os judeus não praticavam a usura. Foi a opressão cristã que forçou os judeus a transformar-se em prestamistas”.
Nessa altura, os judeus não possuíam pátria. Também não tinham hino. Os alemães entoavam um que colocava a Alemanha uber alles, acima de todos.
Regra geral, os hinos foram compostos para confirmarem a identidade de cada nação através de ameaças, de insultos, de autoelogio, da glorificação da guerra e do dever honroso de matar e morrer.
Raramente falam de mulheres. Mas, como todos sabemos, são femininos os símbolos da Revolução Francesa: mulheres de mármore ou bronze, belos seios nus, com barretes frígios e empunhando bandeiras ao vento.
Também sabemos que a Revolução Francesa proclamou a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. O que pouca gente sabe é que uma militante revolucionária, de seu nome Olympe de Gouges, propôs a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”. Pela ousadia, foi presa. O Tribunal instituído pela revolução que ela ajudou a triunfar julgou-a e condenou-a à guilhotina.
Junto ao cadafalso onde foi executada, Olympe perguntou: “Se nós, as mulheres, podemos subir ao patíbulo, por que razão não podemos subir às tribunas públicas.”
O parlamento revolucionário decidiu mesmo fechar todas as associações políticas femininas e proibiu que as mulheres discutissem com os homens em pé de igualdade.
As companheiras de luta de Olympe de Gouges foram fechadas em manicómios pois só podiam estar doidas.
Nem a mulher do ministro do Interior se conseguiu salvar. Manon Roland foi condenada pela sua “tendência contranatura para a atividade política”. Tinha traído a sua natureza feminina, que lhe mandava cuidar do lar e parir filhos valentes.
A guilhotina acabou-lhe com o desvario.
O lado positivo do amor resulta da predisposição. Gosto de jogar o jogo da intimidade e do repouso. A vida respira. Sinto os sítios com renovada ansiedade. O cio abre-se à liberdade. Depois é o desejo que se evade. É débil a oferta dos afetos. Acostumas as tuas mãos à tristeza da água. Os nossos olhos estão gastos de saudade. Por aquele caminho muito jumento passou a caminho do velho moinho. Colhiam-se amoras nas silvas. Dos campos já não retornam ternuras. Deus entornou o cálice da eternidade. A cor iluminada das lágrimas comove todo o tipo de inquietação. Dormem as sombras longe das estrelas. Os gritos são lisos e frágeis. Os suspiros vagarosos. Esta solidão provoca tonturas. O medo vibra. É débil a oferta dos afetos. A guerra é uma espécie de círio pascal que não para de arder. A paz é impura e gelada. O ódio é duradouro. Os homens são como os dias transitórios. É infindo o outono. O seu tecido veste o tempo. O tempo é uma aranha que constrói a sua teia com as horas a consumir. Durmo como um peregrino vagaroso e febril. Impõe-se então o mar com os seus gestos firmes e a sua profunda atração. Chega a névoa entre as árvores. As águas abrem linhas pelo meio dos aloendros. Duvido do tempo incerto. As terras estão de pousio. Os bois ruminam. As carroças já não sabem ir nem como regressar. O inverno matou as profissões que tinham acesso ao ar. Já não há quem ande lá por fora. Os animais pastoreiam sozinhos, limitados por cercas. As ribeiras tanto secam como transbordam. Os frutos apodrecem dentro da sua madura tristeza. O inverno repete-se. Continua a chacina dos animais. Os temporais devoram os caminhos das serras. Os sinais de ruína acumulam-se. Recordo as mãos dos lavradores a abrirem os sulcos na terra com os seus arados, os grãos de centeio a caírem como chuva na terra, os semeadores a progredirem nos sulcos, os seus vultos a movimentarem-se de impaciência. E também a vibração fixa dos olhares. Agora os fornos do povo estão frios. Os céus parecem curvados de tristeza. O desejo já não faz parte das suas vidas. O silêncio parece deter a próxima floração. Crescem as arestas. A chuva abafa os ruídos. Daqui vê-se o caos. A estabilidade das estradas de asfalto. Os declives. O ócio. Os mais velhos continuam com o vício de fumar saudades. Chupam o cigarro até ao fim. As janelas parecem arder por dentro. O esquecimento mata as lembranças. Qualquer dia Deus deita-lhes a mão. As saudades ardem mal. Ali está a avó sentada como se fosse o sol-pôr. As suas mãos parecem uma tapeçaria. Os seus últimos dias foram feitos de linho. À sua despedida vieram pássaros lá das alturas e pousaram no corrimão da varanda. A mãe desfez a sombra com as mãos. E bordou nuvens. E lágrimas. E a dor que todos sentíamos. As palavras transformaram-se em círios. O presente e o passado deixaram de fazer sentido. O futuro deixou de existir. Sinto que preciso do campo. Das folhas e das brisas. Dos rios transparentes. A luz deixou de ter a firmeza de antigamente. O dia ficou claro. O vento serenou. Lembro-me como a avó comia os figos com pão. Caminho pelo campo verde como se caminhasse na lua. Passam os anjos com as suas espadas de silêncio por cima das muralhas. Sinto que pertenço a um outro espaço. A tarde sussurra tristeza. A dor transborda. O mundo acaba de acabar.
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