O cabrito
Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
Os palácios assistiram sempre a traições, incestos, roubos, assassinatos. Nasceram neles os romances góticos. A poesia heroica. A literatura distraída. Nos casebres dos pobres transformava-se o esforço em milagre. A mãe borda flores de martírio na toalha do altar. Está sentada na sua pose de estátua passageira. Se repararmos bem, nos seus olhos voam algumas andorinhas da sua infância e corre alguma da água do rio. O pai parece um cata-vento. Os dois receiam a sua utilidade. Julgam-na inútil. A sua felicidade é feita de desilusão. Os seus filhos parecem anjos franzinos. Por vezes, os modos não correspondem aos afetos. A inspiração é uma espécie de estremecimento de ternura. Enervo-me quando tenho de entender. A ordem necessita de vontade. Toda aprovação esconde um sorriso disfarçado de uma outra coisa. Exige-se a inconveniência dos pequenos escândalos e a perplexidade dos aplausos. As personagens costumam encarnar no corpo do criador. Por isso se amam as máscaras. Nelas é sempre possível aplicar energia e hábitos sensatos. Os gregos sabiam bem o que faziam. A mãe acredita em fantasmas. Ela própria chocou alguns. Os beijos dos amantes podem ser vingativos. Quando assim acontece, os olhos cintilam de raiva. Os pássaros debicam as cerejas e afeiçoam-se ao desaparecimento. Falta ousadia às memórias mais recentes. A mãe enchia-se de nos contar e recontar histórias. A saudade é uma manta de retalhos. A vida por vezes necessita de folhetins e de confidências e de episódios sórdidos e exaltantes. A cortesia é uma espécie de nudez. Assobio baixo para não despertar a deceção. A mãe chorava muita lágrima por conta do desespero. A sua aflição costumava morrer antes de chegar a algum lado. Ninguém escolhe as manhãs que lhe toca viver. O peso da tarde aqueceu o ar. Procuro nas fotografias mais antigas o vestígio do tempo que não vivi. Há na casa vazia um excesso de espaço e de odores. As recordações mais densas foram embrulhadas em lençóis de linho. Viver é estar sempre disponível para novas ficções. Os rouxinóis, no meio das rosas, fazem parte dos romances consoladores. Dentro deles, as palavras apenas têm um sentido. Gosto de histórias construídas com pedaços de outras. Ulisses conhecia a sua própria história antes de a viver. A memória da avó parece repor o tempo. A do avô inclina-se cada vez mais para a obscuridade. Lembro-me de o seu riso bravo encher toda a casa. As palavras passaram a cobrir várias noções de família. Lembro-me de a mãe despejar em cima de mim a sua atenção. Passei a confundir aceleração com derrapagem. Dizem que a luz negra tudo devora. Convém poupar as crianças à tragédia do tempo. Lembro-me de tudo acontecer devagar. De me fixar nos perfis dos Santos, de desconfiar da solidez da terra e da rotina do seu movimento de rotação. Foram as esquinas do tempo que começaram a separar os irmãos. O amor começou a perder a sua precisão. A noção de destino humano transformou-se em pó dos caminhos. Os palhaços transformaram-se em anjos. E os anjos transformaram-se em palhaços. A sua trajetória é cada vez mais ambígua. A história é tudo imaginação. É como um mau sonho de Nabucodonosor. Tiro de cima de mim o peso da infância. Aprendi devagar a amar Zaratustra. Volto a acostumar as minha mãos à brincadeira da água.
Uma pessoa atreve-se a ler o livro de Frédéric Martel, “No Armário do Vaticano”, e deita as mãos à cabeça. É pá, até um agnóstico fica com os cabelos em pé.
O livro está baseado num enorme número de fontes. A investigação prolongou-se durante quatro anos. Foram inquiridas 1500 pessoas no Vaticano e em trinta países, entre elas 41 cardeais, 52 bispos e monsignori, 45 núncios apostólicos e embaixadores estrangeiros, além de mais de duzentos padres e seminaristas.
O livro revela a face escondida da Igreja Católica e o sistema em que se sustenta, desde os seminários até ao Vaticano, que, pelo revelado, assenta numa vida homossexual escondida e sobre a mais radical homofobia.
O Papa Francisco, quando pronunciou que “por detrás da rigidez há sempre qualquer coisa escondida”, e, “em numerosos casos, uma vida dupla”, queria sintetizar que, assim como os juízos de Deus são insondáveis, também a esquizofrenia da Igreja o é. Ou seja, quanto mais um prelado é homofóbico em público, mais provável é que seja homossexual na vida privada.
A tese do livro é que existe um segredo que liga o celibato dos padres, a interdição do preservativo pela Igreja, a cultura do segredo em torno do tema do abuso sexual, a demissão do papa Bento XVI, a misoginia do clero, o fim das vocações para o sacerdócio e os ataques ao Papa Francisco: Sodoma.
A cidade bíblica de Sodoma terá sido destruída por Deus por causa da homossexualidade dos seus habitantes. Ou seja: atualmente é no Vaticano que se encontra uma das maiores comunidades homossexuais do mundo.
Um padre franciscano avisou o autor do livro de que dizer a verdade sobre o “armário” e as amizades particulares no Vaticano era a forma perfeita para ninguém acreditar nele. Falarão em invenção porque por lá a realidade ultrapassa a ficção.
Amiúde, refere o autor, vários prelados, pequenos e grandes, tentaram engatá-lo recatadamente.
O livro, verdade seja dita, não visa a Igreja em geral, mas um “género” particular de comunidade gay.
Cito: “Muitos cardeais e prelados que oficiam na cúria romana, a maioria dos que se reúnem em conclave sob os frescos da capela Sistina, pintada por Miguel Ângelo – uma das cenas mais imponentes da cultura gay, povoada de corpos viris, rodeado pelos Ignudi, esses robustos efebos desnudados –, partilham as mesmas “inclinações”. Parecem uma “família”. Com uma referência mais disco queen, um padre segredou-me: “We are family!””
Os homens do Vaticano, que cá para fora projetam uma imagem de piedade, levam uma vida bem diferente em privado. As aparências de uma instituição talvez nunca tenham sido tão enganadoras. Como enganadoras são as profissões de fé sobre o celibato e os votos de castidade que escondem uma realidade completamente diferente.
Quando o papa Francisco chegou ao Vaticano pensava que havia por lá umas ovelhas tresmalhadas. Mas o que descobriu foi que se tratava de um sistema. O rebanho era basto. Representando a grande maioria.
Para Francisco não é tanto a homofilia que é insuportável, mas antes a hipocrisia vertiginosa dos que pregam uma moral estreita e ao mesmo tempo têm um companheiro, aventuras, e, por vezes, acompanhantes pagos.
Francisco repete com frequência críticas duras à cúria romana, apontando o dedo aos “hipócritas” que levam “vidas escondidas e dissolutas” e a todos aqueles que “maquilham a alma e vivem de maquilhagem”.
O autor encontrou nos palácios do Vaticano clérigos que lhe apresentaram sem pudor os seus companheiros como sendo seus assistentes, substitutos, minutadores, motoristas ou os seus criados de quarto. Quando não os próprios guarda-costas.
O tema do livro é a sociedade íntima dos padres, a sua fragilidade e o seu sofrimento ligado ao celibato forçado, transformado em sistema.
A dimensão gay não explica tudo, como é evidente, mas é uma chave de leitura decisiva para quem quiser compreender o Vaticano e as suas posturas morais.
Também o lesbianismo é uma importante chave de compreensão da vida dos conventos, das religiosas em clausura, das irmãs e das freiras.
Mas o mais importante é que a homossexualidade é uma das chaves para explicar o encobrimento institucionalizado de crimes e delitos sexuais que atualmente se contam às dezenas de milhar.
Para grande parte dos entendidos, a Igreja tornou-se sociologicamente homossexual a partir do momento em que proibiu que os padres se casassem.
34 seguidores
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.