Paris
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No início do século XIX, nos EUA, aos serões falava-se de casamentos, de heranças e de cães negreiros. Os jornais do Mississipi, do Tennesse ou da Carolina do Norte ofereciam os serviços dos nigger dogs a cerca de cinco dólares por dia. Os anúncios destacavam as excelentes qualidades destes mastins na perseguição de escravos fugidos, pois caçavam-nos e devolviam-nos aos seus donos intactos. Com o seu faro apurado conseguiam seguir a pista muitas horas depois de a presa ter passado. A sua tenacidade e sua velocidade eram também muito apreciadas. Até porque os escravos apagavam o seu cheiro atravessando os rios ou espalhando pimenta pelo caminho. Mas os cães não se davam por vencidos e continuavam a farejar até recuperem o rasto perdido. O segredo consistia nos longos treinos a que eram sujeitos para não destroçarem a carne negra.
Nesse tempo ficou famosa Harriet Tubman que, ao contrário da indolência do seu marido que se sujeitou a continuar escravo, fugiu da sua plantação, para a ela regressar mais tarde, libertando os seus pais, os seus irmãos e muitos outros escravos. Fez dezanove viagens das plantações do Sul às terras do Norte, percorrendo, noite após noite, longos caminhos até à liberdade. Libertou mais de trezentos negros. Nenhum deles foi capturado. Foi a cabeça a prémio mais valiosa do seu tempo, com uma oferta de quarenta mil dólares. Gabava-se de não perder nenhum passageiro, pois tinha a fama de resolver a exaustão e os arrependimentos com um tiro. Ninguém reclamou o prémio. Tornava-se irreconhecível com os seus disfarces de teatro. Nenhum caçador conseguia competir com a sua habilidade na arte de apagar pistas e de inventar caminhos. Nem os caçadores brancos, nem os cães negreiros.
Antigamente aproveitava-se tudo: se os condenados fossem culpados pelos delitos cometidos, considerava-se o castigo justo. Se a culpa não fosse deles, o castigo ali estava para servir de aviso. Na América, além de índios e negros, começaram a crescer também judeus. Um deles ficou famoso em Portugal. Chamava-se António José da Silva. Veio do Brasil para Lisboa, onde fazia rir os portugueses mexendo os seus bonecos em palco. Mas deixou de o poder fazer pois a Santa Inquisição resolveu esmagar-lhe os dedos nas suas salas de tortura. No entanto, as suas personagens de madeira, as medeias, os quixotes e os proteus continuaram a provocar o riso e a consolar quem os via e ouvia. Depressa o folguedo acabou. Por ser judeu e brincalhão, António José da Silva acabou na fogueira, pois as suas marionetas não demonstravam o devido respeito pela Coroa ou a Igreja. D. João V, rei de Portugal, chamado o Magnânimo, observou do camarote real o ato de fé onde ardia o rei dos bonecreiros.
Para o salvarem das investidas de Napoleão, os ingleses levam para o Brasil um menino de nove anos chamado Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon, o príncipe herdeiro da coroa portuguesa. Com ele foi toda a corte. Nessa altura, o Brasil era colónia portuguesa e Portugal, segundo as más línguas francesas, era uma colónia inglesa. Quando fez dezanove anos, Pedro casou-se com Leopoldina, que era arquiduquesa da Áustria. Dizem que ele nem se inteirou do sucedido. Afirmam que por causa das noites ardentes do Rio de Janeiro, Pedro vivia perseguindo as mulatas mais fogosas que por lá havia. Com vinte e quatro anos proclamou a independência do Brasil e por isso passou a ser considerado o imperador D. Pedro I. Garantem que com a mesma pena e com a mesma tinta com que assinou o documento de investidura, rubricou os documentos relativos ao primeiro empréstimo com a banca britânica. A dívida externa e a nova nação nasceram em simultâneo. E ainda hoje continuam inseparáveis. Quando fez trinta e três anos, que é a idade com que Cristo foi crucificado, teve a abstrusa ideia de abolir a escravatura. Ainda teve tempo para molhar a pena no tinteiro, mas não chegou a assinar o decreto. Um golpe de Estado retirou-o do trono e deixou- sem pouso. Passado um ano, regressou a Lisboa e passou a ser o rei D. Pedro IV de Portugal. Passados dois anos morreu com a fama de ter sido rei de dois tronos. A mesma terra que foi sua mãe e sua inimiga, acabou por lhe servir de túmulo.
Para agravar a minha admiração por Voltaire, também eu resolvi dedicar-me a cultivar o meu jardim, eu que não tenho jardim nenhum e apenas passeio nos que são públicos. Rego as flores com música, defino-lhes a cor pela premeditação da forma, acarinho as justificações do mal, pelo bem que lhes quero. Quero ignorar a razão para salvar o mundo. Quero ignorar o mundo para salvar a razão. Mas a cor do crepúsculo impõe-me dúvidas. Uno o pudor do desejo à memória dos vivos. Andamos a roubar os sonhos uns aos outros, por puro ciúme. Pertencemos ao cenário inquieto da noite. O som do luar torna a noite calma. A brisa desliza em surdina pela folhagem das árvores. Alguns sítios explicam-se, outros defendem-se. É a clara falência dos sonhos. Os grãos de milho descansam na terra, alisados pelo tempo. As mãos evidenciam os frágeis tecidos da desgraça. Nestas horas impera o senso comum. Poucas são as fantasias. A loucura vive do amor extremo. Há perguntas a que não se pode responder. As estações do ano agora nascem maldispostas, fatigadas, com os dias obsessivos. As flores chegam a azedar. O vento curva-se. E as sombras parecem pinturas abstratas, de tão amarfanhadas. Continua a cumprir-se o trabalho. Os sons mudam de lugar, elevam-se para logo amortecerem. O ar modificou a fina vaporação da erva. A água agora imita a imperfeição do pânico. A avó confiava apenas nos sentidos. A avó estende as suas mãos para a floreira da memória e os seus olhos ganham uma espécie de luz própria do gelo. A mãe tinha os olhos desvairados da mãe dela. Os campos agora são tédio e indiferença. O silêncio ocupa as vozes. São descuidados os poucos ruídos produzidos pela única criança que habita na aldeia. Alguém nos arrasta para o seu próprio naufrágio. É a hora das catástrofes. Das memórias que enlouquecem, das visões aciduladas, de ler as searas, de encaminhar as águas que se enganaram, de asfaltar o tédio, de perseguir com o olhar o voo complexo das aves do desgosto e da solidão. Borboletas de luz atravessam o espelho do velho armário. Os meus dedos viajam pelo teu corpo. O seu mapa tanto perde como ganha sentido. As fotografias antigas parecem-se todas umas com as outras. Descubro nelas um estranho equilíbrio entre peso e leveza. Os rostos revelam uma inimitável lividez. Uma sensibilidade fatal, rígida e involuntária. As pessoas ganharam definitivamente a severidade dos objetos. Só os segredos se movem. A frescura da velha casa é pegajosa. As palavras perderam o embalo e dissipam-se sobre o efeito do seu próprio vazio. Lembram os murmúrios dos amantes num jardim. O tempo de espera depende das circunstâncias. A memória não tem ângulos. A despedida não vale a frieza do encontro. As formas poucas vezes coincidem com a razão. Tudo acaba por murchar, até os pormenores. A velhice mostra os dentes e boceja. Tudo se transforma numa graça. Até o brilho hostil da loucura. O ar continua a estremecer. O freixo da quinta morreu de doença. Já ninguém mais poderá dormir a sesta de verão à sua sombra. A memória adquiriu tons de cólera. O medo transformou-se em excitação. As couves crescem como se fossem árvores. O vento frio do norte fez alastrar os líquenes. Alguém me pergunta se sou daqui. A verdade é que não lhe sei responder. Penso então na secreta identidade que me possa devolver alguns prazeres da infância.
Atualmente, o nacionalismo tem tanta importância que tendemos a acreditar que faz, e sempre fez, parte da nossa natureza. Mas, como afirmou acertadamente Ernest Gellner, “ter uma nação não é atributo inerente da humanidade”.
O novo recrudescimento dos nacionalismos é, sobretudo, um reflexo da incompetência dos governos democráticos em responder com eficácia aos novos desafios da modernidade. Os conflitos étnicos tem tendência a decorrer paralelamente com as questões de inserção social.
A democracia, em muitos países, como por exemplo na Grã-Bretanha, e muito especialmente na Espanha, é agora uma espécie de “prisão dos povos” em regime de liberdade condicional, que, quando se atrevem a defender a sua autonomia ou independência são imediatamente apelidados de antidemocráticos. O caso mais flagrante é o da Catalunha.
Claro que uma nação é um lugar, mas tem de ser mais do que isso: uma ideia.
Os nacionalistas possuem uma característica intimidatória: andam sempre à procura daquilo que os distingue dos outros povos em vez de procurarem o que possuem em comum.
Foi Goebbels que disse: “Se todos os tratados celebrados fossem cumpridos, a espécie humana não existiria atualmente.” Ele sabia bem daquilo que falava.
A última cruzada de Steve Bannon é a favor do Brexit, pois, para ele, que é americano, o processo de saída da GB da EU é ainda mais interessante por provocar o caos. Esta gente considera que um caos provocado pelas elites é a prova absoluta de que o poder tem de ser devolvido às nações e aos povos.
O êxito dos novos populistas de esquerda e direita deve-se ao facto de se fixarem na recente tendência que cruza um populismo ilusoriamente básico com alta tecnologia.
O que se passa por essa Europa fora é que os grupos étnicos autóctones (nacionais) são os que menos crescem.
O nacionalismo foi sempre profundamente rural, apoiado nos camponeses que agora são mais raros que o burro mirandês.
No entanto, é nos centros urbanos onde residem a riqueza e os privilégios, onde existe a ganância, proliferam as burlas e vivem os agiotas. A corrupção é, sobretudo, inerente ao mundo urbano e forasteiro. O trabalho urbano e industrial relegou o trabalho manual para o limbo do artesanato.
No fundo, o nosso nacionalismo, para o bem e para o mal, é artesanal. E velho. Ligeiramente xenófobo e incongruente. Mas abrangente. Já não faz mal a uma mosca.
O nosso patriotismo é folclórico e romântico. É fado, vira e corridinho. A vida na província verga-se ao peso dos impostos. O interior é conservador.
Todo o bom português é um agricultor embuçado. O zelo da sua alma é ainda balizado pelo sermão dominical do senhor abade. O português fala mal mas porta-se bem.
Os lusos são mais patriotas que nacionalistas.
Nós, por cá, continuamos a ser verdadeiros cristãos, súbditos leais e bons portugueses. Aos reis chamamos-lhes agora presidentes, mas a pândega é a mesma. A nossa hierarquia não é étnica, é apenas social. Entre nós nem o fascismo pegou. Aqui não se perseguiram judeus, apenas se descriminaram alguns negros e meia dúzia de ciganos.
Apesar de filhos de marinheiros, descobridores e pescadores, mal entramos num barco ficamos logo enjoados.
Como dizia Eça de Queirós, que sabia bem daquilo que falava, pois roubou muito aos escritores franceses, Portugal continua a ser um país traduzido do francês. Lá a extrema-direita vestiu coletes amarelos e foi para a rua partir montras e incendiar carros. Cá, apesar de ameaçar infiltrar-se nos protestos, causar distúrbios, cortar estradas, resolveu fazer tudo no aconchego do lar e ir ao programa matutino do Goucha.
Depois de uma revolução nacional, tivemos uma revolução social, mas foi tudo dar ao mesmo: continuamos orgulhosamente no fundo da tabela dos países europeus.
Grande parte dos portugueses continua a defender a superioridade da velha moral camponesa contra os decadentes valores ocidentais modernos. Por baixo de um citadino lisboeta existe quase sempre um camponês.
Agora verifico sempre se as bonitas e frescas flores das jarras são verdadeiras ou de plástico fino.
Ainda me lembro das aldeias, todas elas, serem sujas e pobres. Até os cavalos abanavam as suas cabeças fidalgas para espanar as nuvens de moscas. E os grilos e as rãs cantavam até de noite.
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