472 - Pérolas e Diamantes: Ideias entusiasmantes
À sua maneira, Demi Gambus, o célebre filho de Miquela, de forma metódica e organizada, empenhou-se em investigar vários ramos de delito. Para isso, elaborou uma longa lista de complexas e variadas formas da nobre arte de roubar.
Logo de início, defrontou-se com uma exasperante surpresa: quase todas as possibilidades já tinham sido experimentadas pelos seus antepassados. E ele, por dignidade própria, negou-se a repeti-las.
No entanto, chegou a conclusões que, apesar de simples, são incontestáveis: há milhentas formas de roubar e de intrujar, mas a melhor de todas baseia-se numa combinação de métodos. Por exemplo: roubar alguém, arruiná-lo e logo de seguida, após a ruína, oferecer-lhe um empréstimo com um juro usurário.
Mas a conclusão mais pertinente foi a de que o mesmo acontecimento, dependendo da época, não só não era considerado crime, mas até podia ser motivo de louvor.
Dedicou-se então ao estudo profundo da sua época e em procurar uma forma de roubar que, ao mesmo tempo, o fizesse ganhar prestígio com esse ato.
Logo de início percebeu que os crimes praticados com violência eram os mais desprezados pela sociedade. Provavelmente porque são os mais evidentes e expõem mais os seus autores. Essas são ainda as formas mais primárias, as mais primitivas. Estão fora de moda vai para muito tempo.
A burla e o abuso de confiança agradavam-lhe sobremaneira, eram procedimentos mais refinados. Mas também eles implicam correr muitos riscos e dão muita visibilidade aos seus autores.
Concluiu que é necessário burlar, mas de uma posição sólida. Tal solidez só é possível na legalidade. Esta é a verdadeira solução. No mundo civilizado, não existe nenhuma lei que penalize o enriquecimento resultante dos rendimentos, mesmo que abusivos, de determinados negócios.
Por exemplo: comprar por cinco o que vale dez e de seguida vendê-lo por mil não é considerado uma burla, mas antes um bom negócio.
Depois de muito matutar, o filho da velha Miquela, apercebeu-se que estava muito cansado. Decidiu então tomar um banho quente em plena madrugada. Acordou um dos seus criados e pediu que lho preparasse. Bem aconchegado na sua água morninha, reviu a última pasta e leu uma frase escrita com a sua letra: “Também posso roubar através da usura.”
A ideia entusiasmou-o. Tinha já aprendido em família a meter-se em campos escuros e escorregadios, no limiar da legalidade, com a habilidade de um equilibrista de circo. Deogracies-Miquel Gambus sabia que a usura implica sempre uma união tentadora, muitas das vezes contranatura, entre as leis e a moral.
A história da usura não lhe saía da cabeça. Lembrou-se então de um episódio familiar, atribuído ao primeiro dos Gambus. Em 1850, Miquel Gambus I conseguiu organizar uma frota de quinze embarcações, de diferentes tonelagens, que secretamente transportava várias centenas de cavalos ao longo da costa africana. Todos roubados, como não podia deixar de ser. O destinatário era o fabuloso rei N’Geco do Daomé, que estava em guerra com a França pelo controlo do Golfo da Guiné. A ideia do monarca africano era surpreender os franceses com um regimento de mulheres guerreiras montadas a cavalo.
Sem incidentes significativos, que não passaram de pequenos encontros com piratas berberes que não faziam ideia com que pirata se metiam, aquele porta-estandarte da delinquência organizada chegou ao Porto de Cotonou.
Gambus I foi o convidado especial do rei N’Geco, que o cumulou de atenções e lhe pagou a encomenda com pedras de ouro, a mais pequena pesava cem gramas, e, para arredondar, um par de raparigas.
Uma daquelas pedras douradas foi conservada sempre à vista de todos, na vitrina da sala de jantar do chalé de Alcagaire, à altura ainda chamada de El Cagaire. Das duas raparigas, uma morreu na viagem. A outra viveu ainda vários anos. Os suficientes para escurecer, mesmo que ligeiramente, os genes de umas quantas famílias da vila.
Eram outros os tempos, tempos românticos e aventureiros em que era possível ser ladrão e herói ao mesmo tempo.
Gente desta guarda dentro de si uma última esperança: que o inferno não exista.