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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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16
Jan20

Poema Infinito (491): O voo limpo do silêncio

João Madureira

 

 

A casa onde se nasce é um organismo vivo dentro da nossa cabeça. Agora benzem-nos com a depressão. Procuro a verdade do tempo dos meus antepassados dentro da verdade do meu tempo. Utilizo o neorrealismo para combater o neorrealismo. O relevante é a imperfeição, não a representação. A imperfeição tortura a forma. O futuro faz parte de uma experiência anterior. O acaso é fruto do trabalho surrealista das mãos dos anjos. A limpidez do teu olhar entrou em mim com a força selvagem dos indomáveis. A simplicidade é a máxima obra-prima. E ali estamos nós no ateliê do Boulevard Saint-Jacques, na incómoda companhia de Mário Cesariny ai meus deus de Vasconcelos, a assistir à pintura de Helena Vieira da Silva e de esse tal Arpad, o húngaro (Deus os abençoe), preenchidos pelo estranhíssimo espírito das revelações inéditas. Todas as mãos dentro da água engelham. O dia cresce entre a terra e o céu. Dois bois deitados sobre a barriga olham de frente tudo o que fica longe. O seu pelo ainda tem restos de orvalho. O aroma verde dos campos distribui-se de forma harmónica. O mesmo sol aquece as terras antigas. Nem as nuvens se mexem. Nem os rios se ajeitam. O silêncio separou-se da realidade. As brisas são como lembranças. Na tua mão quieta pousam borboletas trémulas. A memória cobre o crepúsculo, as árvores e a inclinação desajustada dos corpos. Garças voam por cima do nosso sono. Adivinho a flutuação da espuma, as densas brumas da eternidade, o débil tributo do amor. Acredito no rigoroso acaso do nascimento do homem. Deus criou tudo isto a partir da sua cegueira, pois só um cego consegue criar tanta beleza sem dela se aperceber. Não é necessário ver para criar. Os dias felizes viajam rápido dentro de nós como se fossem nuvens empurradas pelo vento norte. Nesses momentos, a maioria das palavras são inúteis, ao contrário dos olhares que nos fazem fluir como a luz do sol. Cintilam agora os insetos mínimos ao pé dos ciprestes vagarosos. Mais logo, quando voar o silêncio, ficarei à escuta para ouvir a música da chuva e do vento. Quando os vultos humanos se aproximam do jardim, fogem os pássaros e as borboletas. Dissolvem-se no tempo todos os nossos vestígios. Apesar de o vento ser o mesmo, o movimento das folhas é diferente. Cordas de chuva caem sobre a cabeleira clara da manhã. O arco-íris salta para a manhã seguinte como se fosse uma serpente chinesa. Descanso os olhos sobre o vale que se acalma depois da tempestade. Os cães ladraram a noite inteira. Na madrugada, o canto dos galos rodeou toda a aldeia. A noite chuvosa destruiu as últimas flores. Os homens parecem arrependidos do seu tempo. Dizem que para eles perdeu todo o sentido. Sentem-se como cigarras no deserto. Os reis magos esqueceram a posição da sua estrela polar. Perderam-na na busca da sua utilidade. Não encontraram o menino. Coitado do menino. Coitados dos reis da magia. À mãe nasceram-lhe lírios nos pés. Ao pai, matou-o o remorso. Tenho os olhos molhados de lembranças: os ruídos, os silêncios atordoados, o caminho das uvas, a voz coada dos pássaros, o canto dos grilos, os tambores de lata, gnomos a descerem pelos raios de luar. Mil lírios. Um milhão de estrelas. As ausências são cada vez mais. São elas que me dessangram os caminhos. As suas sombras. As horas sem relógio. Os poemas brancos. A infinitude dos sonhos.

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