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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Jan20

Poema Infinito (493): Mestrias

João Madureira

 

 

Continuo nas minhas tentativas de caligrafar a alma. Apercebi-me que as graduações são infinitas. Procuro a iluminação pelas palavras. A impassibilidade do real é um incómodo. Pequenos elfos vindos da floresta entraram-me pela casa dentro desarrumando tudo o que estava arrumado. Procuro a fuga por telepatia para as verdes colinas de África. O homem moderno perdeu a sua voz interior. Vive voltado exclusivamente para fora, esperando conquistar o exterior de forma implacável. As palavras são o lugar seguro do espírito. O destino é o meio da objetivação do acaso. É uma espécie de Big Bang ao contrário. Apesar dos sobressaltos da sua escrita, a sedimentação da poesia é lenta. A verdadeira arte não é o que se diz dela, nem mesmo o que parece ser. É antes aquilo que oculta. As epifanias incluem sempre o assombro e a reverência pela curiosidade. A tranquilidade está no vórtice. Os génios veem imperfeições que a outros parecem milagres. Da Vinci não terminou “A Adoração dos Magos” por causa disso. Aperfeiçoar a obra passou a ser intimidante. Os desafios da luz eram ainda mais complexos do que aprimorar as mais de sessenta personagens que tinham de reagir emocionalmente umas às outras. A sensação de narrativa tinha de ser coerente. Cada luz refletida, ou refratada, afetava a coloração e a gradação de cada sombra. O Mestre não conseguia ignorar uma questão de ótica. A reflexão da luz tinha de influenciar a luz e as sombras. E as emoções tinham de desencadear e refletir as emoções que afetavam as emoções dos que as emanavam. Este jogo de espelhos tornou-se irresolúvel. Mas a razão maior para a obra ficar inacabada foi que o Mestre preferia a conceção à execução. O futuro distraía-o do presente. O olhar do Comentador, apesar de apontar para Jesus, olha na direção de outra coisa. À semelhança de Leonardo, faz parte deste mundo, mas está separado dele. Na sua pintura os movimentos do corpo estão sempre ligados a movimentos de alma. Daí resulta a poesia. A força do olhar resulta sempre da força interior. A poesia é concebida de dentro para fora. Para isso, é necessário conhecer a anatomia da alma. Repito as palavras de Leonardo: “Digam-me se alguma coisa se completou... digam-me... digam-me.” Aproveito Vasari: Portugal trata os seus artistas como o tempo trata as suas obras. Mil livros. Mil estrelas. Mil sorrisos. A essência está dentro de nós. E linhas perfeitas dos voos das aves. E as lembranças. E o tempo incansável. Regresso às ausências. À saudade. Às casas. Ao som quente do lume aceso na lareira. A tarde ainda guarda muitos aromas. E o som de algumas palavras: pai, mãe, avô, avó, irmã, rio, vento, sol, rezas, contos, adivinhas, tojos, giestas, carquejas, pavias, maçãs, andorinhas, festas... E escola. E a luz no olhar dos meninos. E as letras escritas na lousa preta. Na porta ainda lá está pregada a ferradura do cavalo. Faz-me lembrar o Mestre. Dizem que Leonardo era tão forte fisicamente que enfrentava a violência de cara erguida. Conseguia vergar os outros à sua própria vontade. Dizem-no filho de Deus. Também entortava ferraduras e batentes de ferro como se fossem chumbo. Era tão generoso que alimentava todos os seus amigos, ricos ou pobres... Escuto o galope certeiro dos dias. Cada cavalgada leva ao seu destino. Ecce homo.

27
Jan20

478 - Pérolas e Diamantes: O nacional-populismo

João Madureira

 

 

Matheus Goodwin, um eminente professor de política na Universidade de Kent, apesar de reconhecer que figuras como Donald Trump e Marine Le Pen são perigosas, defende que a ansiedade de alguns grupos é legítima perante o falhanço das elites políticas.

 

A sua tese é desconfortável tanto para a esquerda como para a direita: o nacional-populismo não nasceu da crise nem de fenómenos de desinformação e não vai desaparecer tão cedo.

 

O nacional-populismo aspira a defender os interesses e a cultura do grupo nacional contra o que eles identificam como as elites corruptas, que apenas se servem a si mesmas, revelando pouco interesse em preservar a comunidade.

 

Na sua perspetiva, existem preocupações mais importantes do que as económicas: a perceção de ameaças à cultura nacional, à identidade nacional e ao modo de vida e ainda à ideia de que o grupo nacional está a perder face a outros.

 

Se analisarmos os votos em Trump e no Brexit, podemos verificar que eles estão enraizados em preocupações relativas a mudanças culturais e não apenas no crescimento económico ou nos salários.

 

O denominado nacional-populismo nasce de reclamações legítimas quanto à forma como a nossa sociedade está a mudar. É bom de ver que a maior parte das pessoas que vota nesses partidos não é fascista, nazi, racista, xenófoba ou intolerante.

 

Muitos deles sentem-se simplesmente excluídos do debate público. Apesar do seu evidente lado negro, o nacional-populismo dá voz a muitas pessoas que se sentem abandonadas no diálogo sobre o futuro de todos nós.

 

A maior parte das pessoas aceita a imigração e o multiculturalismo e outros aspetos de uma sociedade liberal, assusta-os é a velocidade desta globalização cultural. Desejam que as modificações se façam a uma escala moderada. Estas são, a nosso ver, uma queixa e uma visão legítimas.

 

Convém lembrar que no Brexit, um terço dos negros e de representantes das minorias votou pela saída da União Europeia. E que, nos EUA, um terço dos latinos e dos hispânicos apoiou Donald Trump.

 

É simplista pensar que o nacional-populismo se baseia na velha questão da supremacia branca. O problema é bem mais complexo.

 

Não é reconfortante observar o facto de existir tanta gente de esquerda a tentar desvalorizar estes movimentos como um regresso ao fascismo dos anos 30. A redução é totalmente imprecisa. Apesar de neles existirem extremistas, de uma forma geral, a maioria está adaptada ao regime democrático. 

 

A questão tem mais a ver com o facto de os defensores de uma democracia liberal darem prioridade aos direitos individuais, mas, muitas vezes, não prestarem a devida atenção aos laços que unem as pessoas das diversas comunidades.

 

Alguns dos dados que Matthew Goodwin utilizou para escrever o seu livro revelam que a maioria dos votantes nos partidos populistas considera a emigração uma coisa boa  e reconhece a força da diversidade. A preocupação está no ritmo da mudança social.

 

Convém perceber que se Donald Trump, Nigel Farage e Marine Le Pen são políticos que recorrem à xenofobia e, por vezes, ao racismo, não é líquido que as pessoas que votam nesses partidos partilhem essas ideias.

 

A primeira tentação é sempre assente na ideia abstrusa de banir e marginalizar os partidos populistas e excluí-los do debate democrático. A experiência europeia revela que essa é uma péssima estratégia, pois nas democracias em que foram banidos acabaram sempre por se fortalecer com o tempo, como se viu na Suécia e na Espanha.

 

A verdade é que os partidos mainstream não estão a ser capazes de lidar com as preocupações que estão a puxar pelo nacional-populismo. De facto, os verdadeiros liberais têm de realizar um melhor trabalho para poderem resolver as questões que levam as pessoas a votar nesses partidos, em vez de os ignorarem.

 

Como diz Matthew Goodwin: “O nacional-populismo é um sintoma, não uma causa.”

 

Não é tranquilizador observar o fenómeno crescente da demagogia populista. Mas não é difícil partilhar de alguma simpatia pela ansiedade de quem vota nestes movimentos.

 

Os trabalhadores apercebem-se que a famosa globalização não está a ser tão benéfica para eles como o é para outros. Sentem que têm sido constantemente excluídos do debate, não lhes sendo atribuído o respeito, a dignidade e o reconhecimento devidos.

 

Por muito que nos custe, Mário Centeno tem razão: “A redução do papel do Estado foi longe demais nas últimas décadas. Isso abriu caminho ao populismo radical.”

23
Jan20

Poema Infinito (492): A cama dos olhares

João Madureira

 

 

Eu dou-me melhor com o caos. Sempre quis ser artista. O quadrado é sempre a pior representação de ser humano. A luz do lago sobe entre mim e as árvores. A paz é uma alma frágil. A pouco e pouco, o horizonte vai ficando mais nítido. O cume da torre da igreja ergue-se para a auréola cinzenta da madrugada. O fumo espalha-se por cima das casas. Os primeiros raios de sol assemelham-se a poeira pairando no ar. A pena do gaio ainda está dentro da caixa que o padrinho me deu nos meus anos. A luz da manhã brilha por entre as folhas tenras. O silêncio por detrás das portas ainda é maior do que nas ruas. O frio voltou. O gelo bordeja as poças de água. Durmo embrulhado no capote do pai, com as mãos cruzadas entre os joelhos, como ele fazia. Ainda tenho na boca o sabor a pão e a queijo que comi durante a tarde. A luz do entardecer enche de sombras os caminhos da Ribeira. Farrapos de nevoeiro estendem-se sobre o pequeno vale. Não se vê uma única pessoa. A faixa risada do entardecer a leste serve de cama ao meu olhar cansado. As ruas da aldeia possuem traços antigos das lágrimas. Pombas voltejam sobre os pombais arruinados. Encho o copo com a água da fonte que continua a correr por detrás da escola abandonada. As videiras deixaram de ser podadas. A vida é como a água, escorrega entre as pedras. Sonho em ti. Por isso te escrevo, pensando nas hortênsias luminosas com que brincam as crianças e na cerejeira da Clérga que no verão se enchia de frutos vermelhos e carnudos. Psiu, psiu, psiu, diz a alma da avó. A noite ficou inconsolável. Os pássaros adormecem fatigados e medrosos. A erva recebe o orvalho que pela manhãzinha se transformará em prata. Por essa altura, as formigas pretas começarão a percorrer os seus insondáveis caminhos. Nalguns lugares do monte ainda é visível o prestígio dos lagos imensos que cobriram estas terras. Lembro-me de as crianças brincarem com a estátua da fonte e também dos pássaros pousarem na sua cabeça e, depois do banho, voarem rumo aos seus destinos. Diante dela, agora ajoelha-se o silêncio e o pequeno deus dos mistérios insondáveis. Os homens e as mulheres sorriam como crianças. O meu tempo prolongara a tarde. Deito-me em cima de uma cama de fetos. O céu assemelha-se a um reflexo de luz. Um pânico súbito atravessa o ar junto ao rio. A poeira cobre as folhas frias. A luz matinal cintila nua como se tivesse chegado do Big Bang. A silhueta do amor tende para o infinito. Os teus olhos parecem brinquedos com que os nossos filhos brincavam. Costumavas guardar-lhes os segredos no teu regaço enquanto dormiam. A primavera parecia ser eterna. Os seus sorrisos caminhavam sempre na tua direção. Os seus beijos sabiam sempre a inocência virgem e eram tão livres como as papoilas no meio dos montes. Andei pelos caminhos das tuas esperas, escutando os dias, falando sozinho, escutando as horas, assobiando como o vento, curvando esquinas. Olho para o escuro e sinto a minha mãe mexendo nos potes, preparando a ceia, depois de trabalhar no campo. O avô contava histórias. Eu montava no cavalinho que o meu pai acondicionava nas pernas. À minha irmã saltavam-lhe os olhos de tanto falar com a boneca. Percebo agora o canto triste dos grilos e dos pássaros que eu engaiolava. Lembro-me. E o silêncio das memórias atordoa-me. Este silêncio não tem retorno.

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