No Barroso com neve
Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
Continuo nas minhas tentativas de caligrafar a alma. Apercebi-me que as graduações são infinitas. Procuro a iluminação pelas palavras. A impassibilidade do real é um incómodo. Pequenos elfos vindos da floresta entraram-me pela casa dentro desarrumando tudo o que estava arrumado. Procuro a fuga por telepatia para as verdes colinas de África. O homem moderno perdeu a sua voz interior. Vive voltado exclusivamente para fora, esperando conquistar o exterior de forma implacável. As palavras são o lugar seguro do espírito. O destino é o meio da objetivação do acaso. É uma espécie de Big Bang ao contrário. Apesar dos sobressaltos da sua escrita, a sedimentação da poesia é lenta. A verdadeira arte não é o que se diz dela, nem mesmo o que parece ser. É antes aquilo que oculta. As epifanias incluem sempre o assombro e a reverência pela curiosidade. A tranquilidade está no vórtice. Os génios veem imperfeições que a outros parecem milagres. Da Vinci não terminou “A Adoração dos Magos” por causa disso. Aperfeiçoar a obra passou a ser intimidante. Os desafios da luz eram ainda mais complexos do que aprimorar as mais de sessenta personagens que tinham de reagir emocionalmente umas às outras. A sensação de narrativa tinha de ser coerente. Cada luz refletida, ou refratada, afetava a coloração e a gradação de cada sombra. O Mestre não conseguia ignorar uma questão de ótica. A reflexão da luz tinha de influenciar a luz e as sombras. E as emoções tinham de desencadear e refletir as emoções que afetavam as emoções dos que as emanavam. Este jogo de espelhos tornou-se irresolúvel. Mas a razão maior para a obra ficar inacabada foi que o Mestre preferia a conceção à execução. O futuro distraía-o do presente. O olhar do Comentador, apesar de apontar para Jesus, olha na direção de outra coisa. À semelhança de Leonardo, faz parte deste mundo, mas está separado dele. Na sua pintura os movimentos do corpo estão sempre ligados a movimentos de alma. Daí resulta a poesia. A força do olhar resulta sempre da força interior. A poesia é concebida de dentro para fora. Para isso, é necessário conhecer a anatomia da alma. Repito as palavras de Leonardo: “Digam-me se alguma coisa se completou... digam-me... digam-me.” Aproveito Vasari: Portugal trata os seus artistas como o tempo trata as suas obras. Mil livros. Mil estrelas. Mil sorrisos. A essência está dentro de nós. E linhas perfeitas dos voos das aves. E as lembranças. E o tempo incansável. Regresso às ausências. À saudade. Às casas. Ao som quente do lume aceso na lareira. A tarde ainda guarda muitos aromas. E o som de algumas palavras: pai, mãe, avô, avó, irmã, rio, vento, sol, rezas, contos, adivinhas, tojos, giestas, carquejas, pavias, maçãs, andorinhas, festas... E escola. E a luz no olhar dos meninos. E as letras escritas na lousa preta. Na porta ainda lá está pregada a ferradura do cavalo. Faz-me lembrar o Mestre. Dizem que Leonardo era tão forte fisicamente que enfrentava a violência de cara erguida. Conseguia vergar os outros à sua própria vontade. Dizem-no filho de Deus. Também entortava ferraduras e batentes de ferro como se fossem chumbo. Era tão generoso que alimentava todos os seus amigos, ricos ou pobres... Escuto o galope certeiro dos dias. Cada cavalgada leva ao seu destino. Ecce homo.
Matheus Goodwin, um eminente professor de política na Universidade de Kent, apesar de reconhecer que figuras como Donald Trump e Marine Le Pen são perigosas, defende que a ansiedade de alguns grupos é legítima perante o falhanço das elites políticas.
A sua tese é desconfortável tanto para a esquerda como para a direita: o nacional-populismo não nasceu da crise nem de fenómenos de desinformação e não vai desaparecer tão cedo.
O nacional-populismo aspira a defender os interesses e a cultura do grupo nacional contra o que eles identificam como as elites corruptas, que apenas se servem a si mesmas, revelando pouco interesse em preservar a comunidade.
Na sua perspetiva, existem preocupações mais importantes do que as económicas: a perceção de ameaças à cultura nacional, à identidade nacional e ao modo de vida e ainda à ideia de que o grupo nacional está a perder face a outros.
Se analisarmos os votos em Trump e no Brexit, podemos verificar que eles estão enraizados em preocupações relativas a mudanças culturais e não apenas no crescimento económico ou nos salários.
O denominado nacional-populismo nasce de reclamações legítimas quanto à forma como a nossa sociedade está a mudar. É bom de ver que a maior parte das pessoas que vota nesses partidos não é fascista, nazi, racista, xenófoba ou intolerante.
Muitos deles sentem-se simplesmente excluídos do debate público. Apesar do seu evidente lado negro, o nacional-populismo dá voz a muitas pessoas que se sentem abandonadas no diálogo sobre o futuro de todos nós.
A maior parte das pessoas aceita a imigração e o multiculturalismo e outros aspetos de uma sociedade liberal, assusta-os é a velocidade desta globalização cultural. Desejam que as modificações se façam a uma escala moderada. Estas são, a nosso ver, uma queixa e uma visão legítimas.
Convém lembrar que no Brexit, um terço dos negros e de representantes das minorias votou pela saída da União Europeia. E que, nos EUA, um terço dos latinos e dos hispânicos apoiou Donald Trump.
É simplista pensar que o nacional-populismo se baseia na velha questão da supremacia branca. O problema é bem mais complexo.
Não é reconfortante observar o facto de existir tanta gente de esquerda a tentar desvalorizar estes movimentos como um regresso ao fascismo dos anos 30. A redução é totalmente imprecisa. Apesar de neles existirem extremistas, de uma forma geral, a maioria está adaptada ao regime democrático.
A questão tem mais a ver com o facto de os defensores de uma democracia liberal darem prioridade aos direitos individuais, mas, muitas vezes, não prestarem a devida atenção aos laços que unem as pessoas das diversas comunidades.
Alguns dos dados que Matthew Goodwin utilizou para escrever o seu livro revelam que a maioria dos votantes nos partidos populistas considera a emigração uma coisa boa e reconhece a força da diversidade. A preocupação está no ritmo da mudança social.
Convém perceber que se Donald Trump, Nigel Farage e Marine Le Pen são políticos que recorrem à xenofobia e, por vezes, ao racismo, não é líquido que as pessoas que votam nesses partidos partilhem essas ideias.
A primeira tentação é sempre assente na ideia abstrusa de banir e marginalizar os partidos populistas e excluí-los do debate democrático. A experiência europeia revela que essa é uma péssima estratégia, pois nas democracias em que foram banidos acabaram sempre por se fortalecer com o tempo, como se viu na Suécia e na Espanha.
A verdade é que os partidos mainstream não estão a ser capazes de lidar com as preocupações que estão a puxar pelo nacional-populismo. De facto, os verdadeiros liberais têm de realizar um melhor trabalho para poderem resolver as questões que levam as pessoas a votar nesses partidos, em vez de os ignorarem.
Como diz Matthew Goodwin: “O nacional-populismo é um sintoma, não uma causa.”
Não é tranquilizador observar o fenómeno crescente da demagogia populista. Mas não é difícil partilhar de alguma simpatia pela ansiedade de quem vota nestes movimentos.
Os trabalhadores apercebem-se que a famosa globalização não está a ser tão benéfica para eles como o é para outros. Sentem que têm sido constantemente excluídos do debate, não lhes sendo atribuído o respeito, a dignidade e o reconhecimento devidos.
Por muito que nos custe, Mário Centeno tem razão: “A redução do papel do Estado foi longe demais nas últimas décadas. Isso abriu caminho ao populismo radical.”
Eu dou-me melhor com o caos. Sempre quis ser artista. O quadrado é sempre a pior representação de ser humano. A luz do lago sobe entre mim e as árvores. A paz é uma alma frágil. A pouco e pouco, o horizonte vai ficando mais nítido. O cume da torre da igreja ergue-se para a auréola cinzenta da madrugada. O fumo espalha-se por cima das casas. Os primeiros raios de sol assemelham-se a poeira pairando no ar. A pena do gaio ainda está dentro da caixa que o padrinho me deu nos meus anos. A luz da manhã brilha por entre as folhas tenras. O silêncio por detrás das portas ainda é maior do que nas ruas. O frio voltou. O gelo bordeja as poças de água. Durmo embrulhado no capote do pai, com as mãos cruzadas entre os joelhos, como ele fazia. Ainda tenho na boca o sabor a pão e a queijo que comi durante a tarde. A luz do entardecer enche de sombras os caminhos da Ribeira. Farrapos de nevoeiro estendem-se sobre o pequeno vale. Não se vê uma única pessoa. A faixa risada do entardecer a leste serve de cama ao meu olhar cansado. As ruas da aldeia possuem traços antigos das lágrimas. Pombas voltejam sobre os pombais arruinados. Encho o copo com a água da fonte que continua a correr por detrás da escola abandonada. As videiras deixaram de ser podadas. A vida é como a água, escorrega entre as pedras. Sonho em ti. Por isso te escrevo, pensando nas hortênsias luminosas com que brincam as crianças e na cerejeira da Clérga que no verão se enchia de frutos vermelhos e carnudos. Psiu, psiu, psiu, diz a alma da avó. A noite ficou inconsolável. Os pássaros adormecem fatigados e medrosos. A erva recebe o orvalho que pela manhãzinha se transformará em prata. Por essa altura, as formigas pretas começarão a percorrer os seus insondáveis caminhos. Nalguns lugares do monte ainda é visível o prestígio dos lagos imensos que cobriram estas terras. Lembro-me de as crianças brincarem com a estátua da fonte e também dos pássaros pousarem na sua cabeça e, depois do banho, voarem rumo aos seus destinos. Diante dela, agora ajoelha-se o silêncio e o pequeno deus dos mistérios insondáveis. Os homens e as mulheres sorriam como crianças. O meu tempo prolongara a tarde. Deito-me em cima de uma cama de fetos. O céu assemelha-se a um reflexo de luz. Um pânico súbito atravessa o ar junto ao rio. A poeira cobre as folhas frias. A luz matinal cintila nua como se tivesse chegado do Big Bang. A silhueta do amor tende para o infinito. Os teus olhos parecem brinquedos com que os nossos filhos brincavam. Costumavas guardar-lhes os segredos no teu regaço enquanto dormiam. A primavera parecia ser eterna. Os seus sorrisos caminhavam sempre na tua direção. Os seus beijos sabiam sempre a inocência virgem e eram tão livres como as papoilas no meio dos montes. Andei pelos caminhos das tuas esperas, escutando os dias, falando sozinho, escutando as horas, assobiando como o vento, curvando esquinas. Olho para o escuro e sinto a minha mãe mexendo nos potes, preparando a ceia, depois de trabalhar no campo. O avô contava histórias. Eu montava no cavalinho que o meu pai acondicionava nas pernas. À minha irmã saltavam-lhe os olhos de tanto falar com a boneca. Percebo agora o canto triste dos grilos e dos pássaros que eu engaiolava. Lembro-me. E o silêncio das memórias atordoa-me. Este silêncio não tem retorno.
34 seguidores
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.