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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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27
Fev20

Poema Infinito (497): Auréolas

João Madureira

 

 

 

O cosmos repleto de bons motivos e nós, humanos, preocupados em aprender e ensinar os bons modos. Ó divina indiferença, abençoada sejas. A linguagem religiosa chegou a Deus muito antes das metáforas. O cosmos está cheio de auréolas incómodas. A Criação foi um ato intempestivo. Deus, por vezes, tem também momentos de loucura. A par da energia escura, também a luz resplandecente se transforma em esquecimento. Afinal, o paraíso está vazio. A euforia do bem transforma-se em mal. Espero-te vestido de fogo. Dentro do amor está tudo aquilo que é possível entre nós. A ética prometeica obriga-nos a tentar corrigir o mundo. Talvez a sensibilidade do mal seja surreal e a beleza triste. Tudo é tão insólito. Num determinado momento, a divindade mais divina fabricou a primeira máquina de efabulação. Escreveram-se com ela as sagradas escrituras. Produziram-se palavras, expressões e enredos. Criou-se então uma espécie de realidade paralela. O tempo existe. O caos existe. A realidade também existe. O caos é a realidade ao contrário. A lua desponta subitamente, abrindo uma fenda invisível no céu escuro. Uma luz gélida tomou conta da alegria. A tristeza surge desta forma rápida. A poeira do passado atinge-nos enquanto avançamos aos ziguezagues. No jardim há flores e revólveres. O recreio da escola está agora cheio de encruzilhadas. Na fotografia da casa velha o cabelo descai sobre o sorriso da mãe. Também a coragem envelhece. As mulheres rezam o terço enquanto reparam, através da janela, que no céu os aviões traçam linhas horizontais. Mais tarde bordarão e coserão os botões que faltam nas camisas dos maridos. Algumas lavarão as mãos e perfumarão os sovacos e a vulva. O círculo de luz continua razoavelmente estável. Das janelas, antigamente olhava-se para fora. Agora olha-se para dentro. As pombas esvoaçam como lençóis. Nunca antes tinha reparado no brilho das amendoeiras em flor. Continua a arder dentro de mim o desejo de que me desejes. Vejo-te sempre quando leio histórias de ternura. E então penso em frases redentoras desenhadas com letras embebidas em beijos e estendidas pelos lençóis. Já sinto os espasmos quentes da tua genitália. Nascer para depois morrer. Os caminhos estão vazios. Os pássaros fecharam as asas. De novo o silêncio enxuga as lágrimas. O silêncio da noite onde as flores claras perdem todo o sentido. As cores também se gastam e acabam por abandonar a limpidez dos olhos das divindades. A que cheira o seu hálito? Salomão rega os lírios. O seu roxo é uma vaga esperança de amor eterno. Esse rei foi o primeiro que pendurou a luz dos jardins nos olhos da sua amada Lilith. A partir daí, o amor passou a ser sempre impreciso como a trajetória de uma gota a escorregar-nos na pele. Ninguém percebe o esquecimento, nem os beijos guardados, nem o verde que arde dentro dos teus olhos. Os campos estão inundados de saudade e o vento sopra as impossibilidades. Maio é o início de um beijo. Lembro-me dos céus grandes, das fadas presas ao papel, dos dias do desgosto, da tabuada, das pequenas sereias em escabeche, da contagiosa moléstia da saudade. O futuro estava arrumado no presente. Os sonhos possuíam escadas. Os anjos de então tinham caracóis. Os de agora só falam de fogo e insónias. O medo da morte é uma coisa imensa.

24
Fev20

483 - Pérolas e Diamantes: Os mestres de culinária

João Madureira

 

 

Estou em crer que a memória é caprichosa. Aprendemos que o respeito pelos senhores começa pelo modo como se vestem os seus criados.

 

Nós gostamos da sopa, mas apreciamos sobretudo o momento de saborear o prato principal. Geralmente é a partir daí que ficamos mais bem-dispostos e começamos a contar piadas.

 

As pessoas espertas dizem respeitar a disciplina. Já as pessoas inteligentes rejeitam-na por lhes parecer uma ameaça existencial.

 

Nestas coisas das oportunidades da vida nunca sabemos bem se estamos a nadar contra a maré ou a seu favor. Pelo que, na maioria das vezes, tendemos a fazer um pouco das duas.

 

Há por aí muita gente disposta a fazer qualquer coisa por dinheiro. Existem também muitas pessoas dispostas a fazer coisas por despeito ou egoísmo. Mas existe também gente que faz coisas por um ideal e não aceita dinheiro, venha ele de onde vier, nem que lho enfiem nos bolsos à força.

 

Há aqueles que andam de óculos de sol mesmo que sejam míopes e não necessitem deles. Existe outro tipo de gente que utiliza sempre os óculos corretamente graduados para ver a realidade.

 

Andamos à procura de encontrar sentido nesta falta de sentido. Quem quiser perceber a política tem de ser entendido no absurdo.

 

A política falha quando temos de confrontar o mito com a realidade. A maioria das pessoas passa a vida a fazer coisas sem acreditar, a fingir.

 

Aprecio as convicções autênticas, não aquelas que são impulsionadas por motivações de ganho, inveja, vingança ou autopromoção.

 

A grande maioria dos católicos acredita que foi Cristo quem inventou a ganância e a água-pé.

 

Talvez seja por isso que os políticos de agora são bem mais agradáveis, sorridentes, polidos e até mais gordinhos do que os de antigamente. São fofinhos, como dizem as mulheres mais ternurentas e as crianças bem criadas. A fome dos políticos é muito agradável. Por isso é que grande parte das crianças pretende ser, quando for grande, mestre de cozinha. As estrelinhas Michelin são dos troféus internacionais atualmente mais cobiçados. 

 

Antigamente comiam-se tortulhos com carne. Agora não, a coisa fia mais fina. Confecionam-se pratos deliciosos com boletos vulgares, boletos anelados, boletos-ásperos, cantarelos e sanchas. Tortulhos não porque fazem mal ao coração. E também porque são proibidos em França e na Alemanha. Os mais requintados apreciam mesmo uma sopinha escura de cogumelos com miúdos de lebre, à maneira dos alemães. Afinal também somos europeus. E bem sucedidos. 

 

Temos até um presidente que é bom a cultivar rosas sem se picar nos espinhos. O que não é fácil para quem se fartou de plantar laranjeiras e depois de as podar.

 

Aquele seu amor quase infantil pela pátria e pelos portugueses não é fingido. Faz parte da sua dedicação à causa da liberdade. E é, acima de tudo, uma questão de princípios.

 

Acho que todos nos revemos no seu falar amavelmente nasalado, que não revela nenhuma origem social ou regional, e na sua lengalenga hipoteticamente triste e lamentosa.

 

Seguindo a definição do chefe da Feitoria João Rodrigues (dono de uma estrela Michelin), Rebelo de Sousa é, bem vistas as coisas, um bom chefe de cozinha pois possui todas as qualidades que o qualificam para tal desempenho: é uma pessoa generosa, sabe exigir, tem disciplina, organização, técnica, e sabe dar. Sobretudo beijos às velhinhas e sandes de queijo aos sem abrigo.

 

Temos também um primeiro-ministro que lamina bem cogumelos em frente das câmaras da televisão do programa da Cristina enquanto assobia uma modinha, ou duas, e sorri como somente ele o sabe fazer.

 

Não sei porquê, mas, por vezes, apetece-me, em troca das suas partilhas culinárias, oferecer-lhes pegas para a cozinha, pois aventalinho já eles possuem.

 

Depois, quando os oiço falar em liberdade, com aquele sentimento todo, penso que a deles é muito melhor do que a minha, do que a nossa. A deles é respeitável. A nossa é de brincadeira. Estou em crer que são diferentes. Muito diferentes. O melhor é cada qual ficar com a sua e fazer bom uso dela. Claro está, se a nossa não atrapalhar a sua e a dos seus.

 

Por vezes, estas coisas ditas pós-modernas têm o sabor de velhas histórias requentadas.

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