Barroso com neve
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As vozes de Babel são consistentes. A sua confusão é benigna. Milhões de ecos tocam transitoriamente o momento. Saboreio intransitivamente as reflexões. Posso chegar a qualquer hora. Esta espera tem pouca luz. Os teus olhos, hoje, queimam como brasas. A sua cintilação é rápida. As aves não deixam vestígios. Apesar de indemnes, multiplicam-se os factos. E a religião profunda da razão. Guardas como um tesouro a luz assimilada do tempo. Desde a manhã que hastes de fumo ondulantes sobem para o céu. O sol fende os nossos gestos. George Braque costumava pintar peixes de cabeça azul. Depois retalhava-os em cubos de uma densidade aflitiva. Aprendi com os cegos a beleza táctil das madrugadas, a perceber a sinuosidade triste das rugas, a música amadurecida de Mozart, as curvas que descem até ao ventre, a solidão das lágrimas, o centro geográfico do preto, a superfície das ondas. Inventei uma espécie de engrenagem que ultrapassa as palavras. Uma flor de ambiguidade fálica sobe pela página em branco. Explico-te a teoria do sorriso. A sua refração. A maneira como se dilata e encolhe. Esvazio a tarde do sol que me enche. Sinto crescer dentro de mim o desejo. A saudade vai-me levando para o vazio. As horas são imensas e os beijos instantâneos. É vagamente irónica a instabilidade dos sorrisos. Já a tua subtileza é supersónica. Os excessos são sempre ambíguos. E húmidos. Sinto em mim vários fragmentos do Big Bang, o ar alaranjado do dia, a esfinge das casas em ruínas. Sinto-te em mim, cruzada pelas tempestades, nos interstícios libertários das memórias, onde o tempo desce, onde as névoas são mais doces, onde os filhos são eternos, onde as madrugadas são longos caminhos, onde o tempo morre constantemente. Os dias inclinam-se dentro de nós como se fosse inverno. O espaço entre o nascimento e a morte é curto. Os horizontes oscilam dentro da sua firmeza. Fico sem saber se sou eu quem galopa certeiro rumo à aurora. O azul não consegue explicar o silêncio do universo. Distraio-me com a voz do tédio. Trepo as vinhas. A névoa faz mais longos os caminhos. Lavo o rosto na água dos sonhos. Depois sinto o perfume dos teus lábios. Lembro-me dos cabelos da mãe ondulados pelo vento, o cheiro a rosas dos seus vestidos. Do estremecimento das suas angústias. Das sombras verdes nos seus olhos. Atravessa-me a sua memória ferida. A sua fragilidade de pássaro. A dilatação das suas narinas quando chorava. Foi com ela que aprendi a linguagem destes lugares, a lei caótica das paisagens, a serenidade líquida dos rios. A aldeia acordou nervosa dentro da madrugada. Das glicínias escorre uma espécie de orvalho. As uvas parecem miraculosas. O silêncio fixou-se nas paredes como se fosse musgo. A imagem dos avós fixou-se no inverno. Neles era mais difícil nascer o amor. Costumavam deitar-se cedo, olhando para as janelas, tentando ver ao longe a fraca iluminação das estrelas, afeiçoando os sonhos que tardavam, esculpindo de novo o velho vocabulário, tornando as sílabas visíveis, medindo a morte. A sua realidade era feita de recordações, de dias súbitos e de pássaros a ciciarem das árvores, fazendo desesperar o escuro mês. A neve aguça ainda mais a luz de inverno. A memória é como uma catedral fechada. Os rumores ferem como cristais. As veias estão fatigadas pelo ibuprofeno.
Logo de início, a guilhotina teve três nomes característicos: a Máquina, a Viúva, a Barbeadora. Logo após ter decapitado o rei Luís, passaram a chamar-lhe Luisinha. Só depois adquiriu o seu nome definitivo.
Dizem que Guillotin protestou, mas fê-lo em vão, alegando que aquela lâmina mortal, suspensa num espécie de portal alto sem porta, emoldurando o vazio, que semeava o terror e atraía multidões, não era obra sua. Ninguém prestou atenção a este médico inimigo declarado da pena capital.
Apesar de tudo aquilo que argumentou, as pessoas continuaram a acreditar que ele era o pai dessa peça de aço afiado que se tornou na atração mais popular das praças de Paris.
E as pessoas, a maior parte delas, continuam a acreditar que Guillotin morreu guilhotinado. É mentira, pois o médico exalou o seu último suspiro deitado na sua cama, com a cabeça colada ao corpo. Este artefacto mortal, com comando elétrico na sua versão ultramoderna, continuou a cortar cabeças até 1977. A sua última vítima foi um emigrante árabe executado no pátio de uma prisão de Paris.
Durante a Revolução Francesa, eram os proprietários de terras que incendiavam as próprias colheitas para a sabotar. A fome começou a rondar as cidades. Os reinos circundantes ergueram-se em pé de guerra, tentando combater o seu contágio, pois ela desrespeitava as tradições e ameaçava, como refere Eduardo Galeano, “a santíssima trindade da coroa, da peruca e da sotaina”.
Dentro de portas, e acossada de ambos os lados, a revolução fervilhava. O povo seguia circunspecto o que se fazia em seu nome. Poucos assistiam aos debates. O tempo urgia. Era preciso tomar lugar nas filas para conseguir o que comer. As divergências levavam ao cadafalso. Cada fação era dona da verdade absoluta. Exigiam para si o poder absoluto. Os discordantes eram apelidados de contrarrevolucionários, aliados do inimigo, espiões estrangeiros e traidores da causa.
Os girondinos, representantes da alta burguesia, acossados pela revolução, defendiam posições moderadas. Já os jacobinos, representantes da pequena e média burguesia, constituíam o partido mais radical, liderado por Robespierre.
Instalou-se então a ditadura jacobina.
Foi nessa altura que se começaram a guilhotinar pessoas que eram contra a revolução. As execuções tornaram-se espetáculos populares, pois aconteciam diversas vezes ao dia, em atos públicos. Depois do rei, chegou a vez da sua mulher, Maria Antonieta, perder literalmente a cabeça.
Marat não morreu na guilhotina porque uma louca o apunhalou quando tomava banho.
Saint-Just acusou Danton, dizem que inspirado por Robespierre.
Danton foi condenado à morte. Pediu então que não se esquecessem de exibir a sua cabeça perante a curiosidade pública e deixou os seus tomates de herança a Robespierre, afirmando que ele iria precisar deles.
Passados apenas noventa dias, Robespierre e Saint-Just foram decapitados.
Dessa forma desesperada e caótica, a república trabalhava, sem se aperceber, para a restauração da ordem monárquica. A revolução que anunciou a liberdade, a fraternidade e a igualdade, acabou por abrir o caminho ao despotismo de Napoleão Bonaparte, que, contrariando a ideia inicial, acabou por fundar a sua própria dinastia.
O hino mais famoso do mundo nasceu de um momento famoso da história universal. O seu autor, Rouget de Lisle, compô-lo numa só noite. Decorria o ano de 1792, com as tropas prussianas a avançarem contra a Revolução Francesa. Em defesa da revolução acossada, o exército do Reno partiu para a frente. O hino de Rouget insuflou coragem às tropas. Não se sabe bem porquê, deu a volta à França, acabando por aparecer na outra ponta do país. Os voluntários de Marselha marcharam para o combate entoando essa canção motivadora, que passou a ser conhecida como “A Marselha”. Toda a França fez coro. Ao seu som, o povo invadiu o Palácio das Tulheiras.
Rouget de Lisle foi preso por ser suspeito de traição à pátria, ao ter discordado da guilhotina. Quando saiu da cadeia, vinha sem farda e sem salário.
Passou a deambular pelas ruas, corrido pela polícia e comido pelas pulgas. Quando afirmava ser ele o pai do hino revolucionário, riam-se na sua cara.
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