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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Mar20

 Epístola primeira

João Madureira

 

 

Escrevo-te cá de baixo, mesmo muito mais abaixo do que é costume. Ando eufórico, extravagante, frenético. Agora tomo uns comprimidos que me põem elétrico. Estabeleci contacto com estas pílulas milagrosas uma noite quando um jovem simpático, que conheci por caso, mas aconselhou como antídoto contra as minhas crónicas dores de cabeça. Deu-me uma para experimentar e depois vendeu-me um saquinho delas, caras, razoavelmente caras, mas artigo com propriedades muito apreciáveis. Não é que com elas a dor de cabeça me passe, mas quando engulo uma ponho-me logo aos pulos. Por isso agora tomo-as e dirijo-me logo de seguida para um local onde se dança toda a noite ao som de música latina. E por ali fico aos saltos até que se faça dia. Depois de tomar a medicação só bebo água e sumos naturais, pois foi o que mais me recomendou o meu jovem amigo. Eu, que detestava música de baile, eu que só conseguia ouvir música de câmara em ambiente adequado, agora derreto-me por salsa e merengue. Mas vou terminar esta minha missiva pois acabei mesmo agora de tomar uma pílula verde e já estou que me desmembro. PS - Não te esqueças de dar as vitaminas ao tritão (Lissotriton boscai), pois se as não tomar o bicho perde a cor e a elasticidade dos músculos e da pele.

30
Mar20

A cultura do meu amigo

João Madureira

 

 

Hoje apeteceu-me comer um gelado, enquanto conversava com um meu amigo que é muito dado às coisas da cultura. E falámos muito e falámos bem. De vários temas, todos interessantes. Digo-vos que é muito útil falar com esse meu amigo. Isto é, quando ele nos deixa falar. É que ele sabe muito de muita coisa, sobretudo de alta cultura. Fala muito e bem sobre os mais variados temas. Todos temas muito interessantes, muito abrangentes e muito atuais. Ele é até mais culto do que a maioria dos cultos do nosso país. E olhem que, mesmo sendo Portugal um pequeno país, possui, mesmo não parecendo, muitos e bons homens e mulheres de cultura. Mas, mesmo assim, este meu amigo supera-os quase a todos. Ele fala muito, bem e depressa e nunca, mas mesmo nunca, revela dúvidas enquanto discursa. Ou seja, nunca se engana, nunca se atrapalha, nunca gagueja. O discurso sai-lhe sempre límpido, sem hesitações, sem atrapalhações, sem flutuações, ou outras indeterminações. Com ele é sempre a direito, mesmo quando o seu discurso revela uma configuração um pouco mais sinuosa. Tem este meu amigo a qualidade de tudo descobrir. De pôr tudo claro como água. A sua cultura é muito apreciada pela família, pelos amigos, vizinhos, colegas e até por alguns dos seus inimigos. Mesmo os seus inimigos reconhecem que ele é muito, mas mesmo muito, culto, de uma cultura superior, muito metódico no falar, muito comedido nos seus gestos, que também são cultos, até o seu andar é um andar que reproduz a sua brilhante cultura. O seu andar é mesmo muito erudito. De uma erudição convergente, tranquilizante e tranquilizadora. Mas não é só o seu andar ou o seu falar que espelham cultura, o seu olhar também a exprime. De uma cultura impecavelmente estudada. Se a cultura tem alguma utilidade, de certeza que é neste meu amigo onde encontra a sua plena realização. As suas conversas, mesmo quando parecem fúteis, não o são. O meu amigo dá-lhes sempre um toque culto. Até quando come consegue encher-nos de cultura. Com ele tudo se transfigura em cultura: os gestos, os talheres, os condimentos, as toalhas, os guardanapos, os tachos, os copos, o vinho, até mesmo os palitos dos dentes ganham uma auréola sublime, uma importância inaudita com espaço próprio na história universal. Depois é a sobremesa que se nos agiganta na sua intrínseca utilidade, no seu inseparável conceito culinário, na sua ancestralidade cultural, na sua significância metafísica, no seu indesmentível valor simbólico e prático, na sua génese voluptuosa, no seu redimensionamento monástico, na sua decifração abstrata, ou estrutural, ou alegórica. A tudo lhe encontra sentido, forma, objetivo, importância, sedução, uniformidade, relação e arte. Até na falta de cultura encontra cultura. E beleza. Para ele tudo é belo porque, na sua perspetiva, tudo se reduz à linguagem. No princípio era o verbo, repete ele muitas vezes. É muito esclarecedor em tudo o que diz. Revela-nos a cultura que está por detrás da disposição das cadeiras, na colocação dos candelabros, no ritual de nos sentarmos ou nos levantarmos da mesa. Aponta-nos o conflito civilizacional e a evolução cultural que está por detrás do ato de não cruzarmos cumprimentos de mão. Elucida-nos com muita competência sobre o modernismo sistémico das floreiras numa sala de estar, ou sobre o conflito epistemológico das reações químicas entre pessoas que se querem bem. Uma noite passada com este meu amigo vale por uma semana inteira a estudar a enciclopédia brasileira de cultura. Podia estar aqui toda a noite a escrever que não era capaz de expressar convenientemente a sua cultura. Por isso aqui vos deixo este pequeno introito com a única intenção de prestar, a esse meu amigo, uma singela homenagem que, não sendo culturalmente relevante, é sincera.

30
Mar20

Apetites freudianos

João Madureira

 

 

– Mãe, estou toda molhada.

– Sim, espera um pouco que vamos ali comprar um guarda-chuva aos chineses.

– Mãe, estou cheia de frio.

– Pois, mas espera um pouquinho, não vês que estou a dar de mamar ao teu irmão!

– Mãe, estou cheia de fome.

– Eu sei que estás, mas tens que ter paciência e esperar um pouco até te poder comprar qualquer coisa para comeres.

– Mãe, apetecia-me leite quente.

– O quê?

– Apetecia-me leite quente.

– Espera um pouco. Não vês que estou a dar de mamar ao teu irmão! Quando chegarmos ao café logo te dou qualquer coisa.

– Que coisa, mãe?

– Qualquer coisa. Uma sandes de fiambre ou de queijo e um sumol para beberes, por exemplo.

– Mas mãe apetecia-me muito beber leite quente. É que estou cheia de fome e ainda é longe até ao café.

– Tem paciência. Espera um pouco. Deixa-me acabar de dar de mamar ao teu irmão.

– Mãe, estou cheia de fome e de frio e estou toda molhada. E apetecia-me muito beber leite quente.

– Será que também queres mamar? Não tens vergonha! Uma menina da tua idade a querer mamar na teta da mãe.

– Mas mãe o Rui também já é crescidinho e mesmo assim tu ainda lha dás.

– Não me digas que estás com ciúmes do teu irmão.

– Não sei. Eu ainda sou pequenina e tenho muita vontade de beber leite quente. Dá-me a teta, mãe. Sinto tantas saudades de mamar.

– Se não te calas, o que te dou é um bom par de bofetadas…

26
Mar20

Poema Infinito (501): A coagulação dos olhares

João Madureira

 

 

Deambulo pelas enormes naves abertas às estrelas desta catedral inacabada. Contemplo as ogivas e o irresistível e fascinante voo dos pássaros. Daqui, as ave-marias vão diretamente para o céu. Ainda oiço o pisar lento e calmo dos antigos monges na terra batida pelos séculos. A ânsia destas abóbadas nunca foi fechada. Sempre venerei o pó como tesouro mineral. E o caráter dos objetos. E a intimidade da ciência. E as rochas que protegem o solo há milénios. Os processos naturais exigem a mão de obra primária do tempo. Ergueu-se então uma ruidosa pirâmide e íngreme de sal e a cidade ficou ausente. Nos rios prolongaram-se o afogamento dos peixes e as chuvas deixaram de cair de forma estrutural. Alguns pássaros começaram a morrer. Outros abriram as suas asas como forma de combater o crepúsculo. A plumagem deste janeiro é fria. O frio tem a sua própria linguagem. É dela que deriva o prenúncio da sua força. Já passaram os andores do São Sebastião ao som das ladainhas em honra do mártir. O seu desejo é uma forma de sacrifício imaginado.  A cadência dos peregrinos é centrífuga. É necessário preparar o momento em que os corpos se desligam. As divindades querem acabar com o ciclo dos desastres. Os relógios quiseram atrasar as metamorfoses. O navio das pequenas felicidades já há muito tempo que abandonou o porto. O holograma da avó apaga a candeia e vai para o campo. Arranca as últimas raízes com gestos de misericórdia. Depois espera que cheguem as andorinhas. Imagino o seu frio, o traço contínuo dos seus braços, o esboço dos seus cabelos brancos e os sulcos na pele do seu rosto. O vento possibilita o libertador voo do tartaranho. Assistimos à liquidificação do tempo, ao amalgamento das trovoadas, ao reconhecimento das fontes de calor, à absorção desesperada dos olhares. Os tesouros estão do outro lado. Não é a grandeza de Deus que nos tira de maçadas. A devoção religiosa pelo pó é a prova da negligência de Deus com a vida. A sordidez disto tudo é que a poeira é voadora. Também os demónios costumam voar em círculos quando vão roubar o canto aos pássaros. Alguém passa em pânico pela oscilação do gelo. As perguntas de Deus não incluem palavras por isso as respostas têm de ser silenciosas. Anuncia-se a madrugada, mas o corredor é muito longo. Vou chegar tarde à frescura do jardim. Ontem fotografei os miosótis cobertos de chuva e as pestanas incolores de um anjo roxo. Alguém, distraído, engomou os malmequeres. Disse-me a minha mãe que a minha primeira lágrima foi uma que ela deixou cair dentro do meu olho quando fiquei doente, pouco tempo após o meu nascimento. Disse também que a noite exalava um frio de orvalho e que a minha pele tinha a claridade da lua. Durante vários dias as pombas arrulharam encrespadas nas sombras. Disse ainda que se entretinha a ver borbulhar a água nas panelas. As sementes estavam escondidas na terra e as raízes tenras das árvores também dormiam nela aconchegadas. Disse também que sorria para mim mas não era de alegria. Depois os seus olhos coagularam durante os breves instantes do sono. Os gestos, os gritos, os odores, tudo se tornou audível.  Nunca se sentiu tão sozinha. Procurou então a origem dos milagres e as verdades mais antigas. Descobriu que eram como lentíssimos terramotos. O mundo tanto aparecia como desaparecia. Depois atirou fora as horas, mas conservou o relógio no pulso esquerdo.

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