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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

23
Mar20

486 - Pérolas e Diamantes: O efeito aperitivo

João Madureira

 

 

Sim, nós somos gente muito determinada e decidida. Desejamos sempre duas coisas ao mesmo tempo: ter uma profissão liberal e ser funcionário público; viver no campo e manter a casa na cidade; levar uma vida simples, mas sem renunciar a um certo e urbano conforto.

 

O sonho continua a ser o de viver no campo, apesar de vivermos na cidade, numa casinha com uma grande lareira, junto ao regato da floresta, longe do bulício e das pessoas indiscretas. Nem todos somos ricos, mas podemos viver com dignidade.

 

A verdade é que agora tudo é simpático, inofensivo, divertido, agradável e perfeitamente trivial. A pós-modernidade é mesmo assim: falar de carros, viagens, concertos, festivais gastronómicos, política, futebol e das alegrias dos fins de semana.

 

Agora já não se fazem partos, mas cesarianas.

 

Agora admiramos o caramanchão do jardim e sentamo-nos numa poltrona de orelhas a ouvir música clássica, mantendo acesa a chama dos subterfúgios. E quando vamos de férias para junto do mar gostamos de fotografar o voo acrobático das gaivotas. E também apreciamos filosofar com tiradas tipo: “Já todos sabemos que essa bonita coisa do progresso um dia vai correr mal. Mas, seja lá como for, a geringonça vai continuar a funcionar. Os nuestros hermanos bem que nos copiaram.”

 

Enquanto andamos sobre as dunas, ouvimos o leve marulhar das ondas.  Depois olhamos para setembro e dizemos que a sua luz costuma ser ambígua. Então o mar fica liso e começa a lamber a areia da praia.

 

De facto, até nos podemos dar ao luxo de ouvir a música de Wagner e achar que ela é grandiloquente e mesmo intimidatória, estremecendo nos assentos por culpa do som das trompas e das trombetas.

 

Claro que o bulício e as multidões citadinas acabam por nos aturdir, mas sempre é melhor do que andar na montanha-russa. Por vezes também é avisado visitar espíritas para nos fazerem a carta astral. Sempre é melhor do que pedirmos a uma cigana para nos ler a sina. Os tempos são outros.

 

Paris e a sua vida libertina ainda faz parte do nosso imaginário. E Sartre. E o existencialismo. E Che Guevara. Até usamos a sua t-shirt quando vamos de férias para Varadero. E rumba que rumba e torna a rumbar. Que caliente. E um mojito na Bodega del Medio ainda nos traz à memória Ernest Hemiguway e o Velho e o Mar.

 

Apesar de tudo, continuamos simples e sentimentais. A imagem de um pardalito molhado e frágil ainda nos comove até às lágrimas. Por vezes sentimo-nos assim perante a grandeza do mundo.

 

E a História, nos seus pormenores grotescos, não deixa de nos surpreender para também nós surpreendermos os outros com as suas pitadas de ironia. Então não é que na Roma antiga a procura de criados anões era tanta que alguns pais fechavam os seus filhos para os impedirem de crescer e dessa forma conseguirem que os nobres os contratassem para servirem em sua casa. Curioso, não é? Dizem que até possuíam uma língua própria para que a concorrência não pudesse compreender as suas conversas. É possível que esta mesma língua fosse utilizada, nessa mesma época, no Egipto, entre os anões que ocupavam altos cargos nas cortes dos faraós e também entre os humildes pigmeus que viviam nas margens do Nilo, cujo aspeto e hábitos foram descritos por Aristóteles e Plínio. Dizem que essa língua chegou mais tarde ao Centro da Europa onde recebeu o nome de Geheimnissprache der kleinen Leute.

 

Quem bom está este gin Nordés!

 

A Bolsa continua em baixa. Dias melhores virão. Não há bem que sempre dure e mal que nunca acabe. Menos nuvens, mais claridade.

 

Nuvens leves como penas de pato desenham linhas finas no céu azul-celeste. A relva do jardim brilha no seu peculiar tom de verde. Ouve-se então o leve restolhar das folhas das árvores que se transforma depois num sussurro e depois numa canção. Inquietação... inquietação... é só inquietação... Que bom está o gin tónico. Ingerir álcool provoca fome, o que nos leva a querer consumir mais e depois a ter mais fome...

 

Mark Forsyth explica que “nós evoluímos para beber”. Por isso é que beber tanto é tão revolucionário como burguês. Que bom está este mojito.

 

Lemos Afonso Cruz e embebedamo-nos de conhecimento. O atual excesso resulta da evolução social: “Os bibliófilos acumulam livros, os gulosos gordura, os ciumentos pessoas, os agiotas dinheiro, os sábios sabedoria, e nenhum deles se sacia.”

 

Este whisky não é velho o suficiente para se beber com água lisa barrosã. Mas não se pode desperdiçar, misturado com Coca-Cola ainda celebra com alguma qualidade Cuba Libre. Pátria ou muerte... Ah, ah, ah, viva a revolução. Será possível um crescimento contínuo? Este efeito aperitivo já se transformou em vício vai para algum tempo.

19
Mar20

Poema Infinito (500): O Divino

João Madureira

 

 

Leonardo, quando partiu para Milão, levou consigo aquilo que lhe era mais querido: esboços de flores copiadas da natureza; vários São Jerónimo, oito São Sebastião; uma cabeça de Cristo feita à pena; muitas composições de anjos; uma cabeça de perfil com lindo cabelo; muitos pescoços de mulheres velhas e cabeças de homens novos; vários nus integrais; uma Madona já  terminada; uma outra de perfil, quase terminada; uma cabeça de um velho com um queixo enorme; uma narrativa da Paixão de Cristo feita em relevo; um projeto de fornos e várias engenhocas para a água. Em Milão instalou-se no castelo do cruel Ludovico Sforza, conhecido como “o Mouro”, homem com falsas aparências de cortesia, cultura e civilização. E por lá andou Leonardo misturando-se com os cortesãos, artistas, atores, músicos, mestres de caça, estadistas, treinadores de animais, engenheiros, além de outros agentes de auxílio ou de embelezamento que ali estavam para aumentarem o prestígio e a legitimidade do seu governador. Aspirava, o genial da Vinci, em ser polímato, naquela cidade repleta de académicos e intelectuais de várias áreas. Começou a dançar em torno da linha de separação entre o engenho e a fantasia. Desenhou então o carro falcato que no seu movimento cortava pernas ou soldados ao meio. Ele que se tornou vegetariano pelo amor que nutria por todas as criaturas. Era este um sinal do seu tumulto interno, pois dentro da sua cabeça existia uma imaginação demoníaca. Aprendeu a usar formas geométricas como analogias das forças da natureza. Prometeu desenhar, se fosse necessário, canhões e peças de artilharia úteis e de enorme beleza. Desenhou o architronito, ideia creditada a Arquimedes, o antecessor da metralhadora. Ludovico Sforza não lhe ligou importância. A sua atividade militar apenas se desenvolveria a partir de 1502, quando foi trabalhar para um homem mais forte, difícil e tirânico do que o seu mentor: César Borgia. O único método que Ludovico aprovou com entusiasmo foi a preparação do banho para a sua nova e jovem mulher que consistia em quatro partes de água fria para três partes de água quente. Os génios são assim. Também as cidades ideais integram as visões imaginativas com as perspetivas militares. A ideia urbana de Leonardo baseava-se no conceito de combinar as ruas e os canais num sistema de circulação unitário. A sua cidade teria dois níveis: um superior pensado para a beleza e a vida pedestre, e um nível subterrâneo para albergar canais, comércio, instalações unitárias e esgotos. Decretou, o genial Leonardo, que somente o belo podia ser visto no nível superior da cidade. E as escadas deviam ser espiraladas, pois, segundo Deus, o seu filho Leonardo amava essa forma. Se alguém lhe tivesse dado ouvidos, a história poderia ter sofrido o impacto e a aceleração da totalidade da sua arte. Estudou cientificamente, enchendo páginas e páginas de esboços, ideias gerais e passagens para tratados de temas como o voo das aves, a água, a anatomia, cavalos, mecânica, geologia e a possível arte confessional de Santo Agostinho. Contudo, os seus zibaldone são descritos como os testemunhos mais poderosos da observação e imaginação humanas alguma vez apresentadas em papel. Um mistério ainda existe: raras vezes datou as páginas dos seus cadernos.

16
Mar20

485 - Pérolas e Diamantes: Confusões

João Madureira

 

 

A confusão é enorme. A confusão aí está. A política hoje não é de esquerda nem de direita. É apenas um sentimento depressivo que se torna endémico porque é partilhado por muita gente. Não é um fenómeno partidário. É apenas uma doença repartida que se espalhou um pouco por todo o lado.

 

Por isso, hoje o meu olhar sobre as coisas é mais branco, mais calmo e mais relaxado. A provocação, a existir, está mais do lado de quem lê do que do lado de quem escreve.

 

Estamos encerrados em bolhas que não comunicam e ninguém está disposto a escutar opiniões diferentes. As pessoas são surdas e mudas em relação ao que se passa fora da sua zona de influência.

 

Hoje lê-se tudo de forma literal, não se dá espaço à ironia. Não há lugar para a metáfora. A cultura atual não se preocupa com a arte. Ninguém sabe o que há de fazer com ela.

 

Parece que todos nós nos sentimos vítimas da diversidade, da inclusão e da representação. Generalizou-se a ideia de que é preciso reescrever a História. Tudo isso para suprimir a verdade em nome da representação global, da inclusão e da diversidade. Tudo isso, além de complicado, é enganador. Os progressistas querem, a toda a força, impor a sua agenda.

 

A grande parte das novas narrativas falsificam tanto as más como as boas ideias.

 

Criamos um avatar de nós mesmos que nos representa. Temos medo do que realmente somos.

 

Janet Malcolm, no seu livro “The Journalist and the Murder”, sintetizou tudo isto na perfeição: “A sociedade posiciona-se entre extremos de uma moralidade insuportavelmente severa, por um lado, e, por outro, de uma permissividade perigosamente anárquica, aceitando-se tacitamente que nós podemos quebrar as regras da moralidade mais austera, desde que o façamos de forma silenciosa e discreta. A hipocrisia é o lubrificante que mantém a máquina a funcionar de forma aprazível.”

 

Fala-se muito em empatia mas a verdade é que as pessoas cada vez têm mais dificuldade em compreender porque é que sentem aquilo que sentem.

 

Por isso é que as pessoas apreciam heróis marginais como o Joker, que durante a noite não quer nada, nem sequer dinheiro, pois pretende criar simplesmente o caos. Pensam que a única maneira de consertar o sistema onde vivem é destruindo-o.

 

Esta é a lógica que levou Trump ao poder. A política passou a ser um sentimento caótico. Hoje as pessoas são apreciadas pelas suas transgressões.

 

Vivemos no tempo em que líderes como Trump e Bolsonaro têm o desplante de explorar a alarvidade, a estupidez e a ignorância como se fossem conquistas democráticas.

 

Nós devemos ser honestos com os nossos gostos e também com os nossos desgostos.

 

No entanto, o historiador Yuval Noah Harari defende que no século XXI a principal ambição humana, para além do controlo da fome, das epidemias e da guerra, será a tentativa de transformar os humanos em deuses. Ou seja, o esforço será na criação da capacidade de manipular e criar vida.

 

Na sua opinião, o pior cenário é o de a inteligência artificial vir a empurrar centenas de milhões de pessoas para fora do mercado de trabalho, criando assim uma nova “classe inútil”. As pessoas perderão o seu valor económico e, por arrastamento, o seu poder político, enquanto, ao mesmo tempo, a bioengenharia tornará possível a criação de uma pequena elite de super-humanos.

 

O melhor cenário reside na possibilidade de as novas tecnologias poderem vir a libertar todos os seres humanos do fardo das doenças e do trabalho pesado e permitir que todos explorem e desenvolvam o seu verdadeiro potencial.

 

Os três desafios existenciais do futuro são de natureza global. O mesmo é dizer que só serão resolvidos através de uma cooperação global.

 

Uma coisa temos de perceber: por incrível que pareça, não existe contradição entre nacionalismo e globalismo. Já que o nacionalismo democrático não é odiar estrangeiros. Nacionalismo é amar os nossos compatriotas. Por isso é necessário cooperar com os estrangeiros. O mesmo é dizer que os bons nacionalistas devem também ser bons globalistas.

 

Mas a grande revolução tecnológica prevista para o século XXI é preocupante já que consiste na capacidade de piratear os seres humanos. E piratear seres humanos significa que os pirateadores entendem melhor os seres humanos do que eles se entendem a si próprios.

 

Mas o que tiver de ser será. Ou não será. Os truísmos aí continuarão a estar para o que der e vier.

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