No Louvre
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No dia em que um cavalheiro irlandês apresentou a liliputiana Chiquita à estátua da liberdade, a cubana, admirada, terá dito: “Nunca pensei que fosse oca.” Ao que ele terá comentado: “Aprenda a lição. A liberdade nunca é tão maciça como parece.”
Foi então que Chiquita, surpreendida com a aparência das coisas, e para não parecer frívola e ter tema de conversa, começou a ler jornais. Até porque o seu anfitrião em Nova Iorque, Patrick Crinigan, escrevia sobre política externa.
A cubana descobriu então que no final do século XIX o planeta era bem mais complicado do que julgava. Os turcos assassinavam arménios, os etíopes lutavam contra os italianos, os britânicos sufocavam as rebeliões dos africanos, os hindus digladiavam-se em guerras religiosas, os chineses e os japoneses andavam à porra e à massa, os filipinos sublevavam-se contra os espanhóis e os anarquistas, esses simpáticos rapazes, punham bombas em todo o lado.
Nessa altura existia guerra em Cuba entre espanhóis e rebeldes autóctones. Todos os dias, o jornal norte-americano World publicava notícias sobre a maior ilha das Caraíbas. Os pontos de vista eram tão díspares que havia até aqueles que consideravam que o governo dos EUA devia intervir no conflito e ajudar Cuba a obter a liberdade. Mas eram movidos por ideias e interesses diferentes: as pessoas comuns por simpatia ou por considerarem que já era tempo de Espanha renunciar às suas prosápias de grande metrópole; os comerciantes, porque vislumbravam um novo mercado para os seus produtos; e os clérigos porque se viam a converter milhares e milhares de católicos e ateus cubanos ao protestantismo. Ele há gente para tudo.
Com o livro de António Orlando Rodrigues também ficamos a saber que, no início do século XX, o Central Parque de Nova Iorque tinha um carrossel com cavalos pretos, pardos e brancos, todos com bocas abertas, grandes dentes e as línguas de fora. Ou que as escadarias que iam do terraço à fonte onde estava o Anjo das Águas tinha trinta e seis degraus, nem mais nem menos, e possuíam um patamar entre o degrau dezoito e o dezanove.
Também por lá existia um pavilhão chamado Little Carlsbad onde se podiam tomar trinta tipos diferentes de águas minerais; um coreto pintado com cores garridas onde uma banda dava concertos ao ar livre, enquanto umas gôndolas trazidas de Veneza navegavam no lago.
Que saudades dos bons velhos tempos onde o Mall era um constante vai e vem, e vem e vai, de meninas e cavalheiros exibindo as suas lindas roupas.
Como não há mal que sempre dure, também não existe bem que não acabe. Veio então a Depressão que acabou com a louca alegria dos anos vinte. As pessoas perfumadas e elegantes, que antigamente visitavam o parque, e nele permaneciam sentadas longas horas tagarelando nos bancos de madeira e granito, tijolo e ferro fundido, foram substituídas por grandes quantidades de desempregados sujos que ali passaram a viver. Como não tinham casa, o parque tornou-se o seu refúgio.
Uns dormiam debaixo das pontes e outros em barracas feitas com o que por ali havia: pedaços de cartão, tábuas e ferro-velho. E nem é bom recordar o fedor que havia no Belveder devido ao facto desses pobres infelizes defecarem e urinarem em qualquer lado.
No desespero, de se verem sem casa nem comida, essa horda de pobres quebrava as cercas, os bancos e as pérgulas, cortava as árvores e riscava os monumentos.
Nem sequer as estátuas de bronze se livraram do vandalismo: à do caçador índio roubaram-lhe o arco e a do tigre com o pavão na boca foi literalmente arrancada da pedra onde estava colocada. Aquilo não era propriamente inquietação, inquietação, era mesmo raiva e desespero.
O narrador de “Chiquita”, quando foi visitar o parque, encontrou alguns italianos que com ele tinham vivido na pensão. Quase não os reconheceu, de tão porcos que estavam. Esteve tentado a aproximar-se e a cumprimentá-los, mas olharam-no com tanto ódio que mudou de ideias. Diz que até sentiu vergonha de sair à rua limpo e bem vestido. Coitado do narrador.
A verdade é que, tal como o narrador, este vosso amigo, não sendo capaz de justificar essas atrocidades, mesmo passado um século, também não é capaz de as condenar. Provavelmente, vivendo nessa época, e se não tivesse arranjado trabalho, teria feito o mesmo que esses sem teto, destruindo tudo, porque não existe no mundo nada que mais desespere e embruteça do que o sentirmo-nos num beco sem saída. E, bem vistas as coisas, mais vale que as pessoas desabafem cortando o arco a um índio de cobre do que a cabeça a um agente da autoridade.
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