Poema Infinito (506): A horizontalidade dos dias
Entro na casa dos pais e reparo nos velhos utensílios que foram guardados. Apercebo-me do poder das coisas mais vulgares. Aqui a tristeza flutua. Sente-se. Sinto-a. E depois pousa, como o pó. A avó repetia muitas vezes: não te esqueças que és pó. Talvez de estrelas, o que não é melhor consolo, penso eu agora. A tristeza continua a flutuar. Por vezes, até as coisas perfeitamente iluminadas parecem totalmente inúteis. O vento norte está a subir pelos montes e traz com ele o cheiro a chuva. Há quem corra para conseguir tapar a sua sombra, perseguindo uma espécie de fosforescência que dizem vislumbrar dentro do escuro. O vento não passa de um sussurro. O teu olhar quer libertar-nos da solidão. Atravessamos agora o reino das teorias. Desdobramos as memórias como se fossem mapas. A manhã levanta o dia. Antigamente, os deuses estremeciam e costumavam atirar uns aos outros fragmentos de solidão como se fossem pedras. Aos anjos doíam-lhes os mamilos e a falta de outras coisas. Por isso não conseguiam amar, como os humanos. E tinham fúrias repentinas, como os eunucos. E humidades ténues, entre pernas. Mas nunca tinham pressa. Nem andavam de comboio. Eram como bichos caprichosos. Depois, os vírus extinguiram-nos. Ontem acordei colorido, eu que sou quase a preto e branco. A verdade é que a minha inocência nunca parou. Também o que poderia nascer daí? Estamos a aceitar demasiadas coisas ruins. Lembro-me que a avó cobria a cabeça para atravessar as ruas e ir à igreja. Mesmo quando as rosas se libertavam do botão e se tornavam escarlates. Nessa altura os natais estavam fechados dentro do frio. Apesar disso, os pássaros eram positivos e os seus voos acendiam chamas dentro dos nossos olhos. As fadas tanto encantam como, depois, desencantam. Por vezes a inveja é pura. É por isso que a bondade quase sempre sobra, tal como o papel de jornal depois de lido. Éramos abandonados no verão em camionetas que nos levavam para as colónias de férias. As manhãs eram dolorosas e as tardes horizontais. A solidão era tão salgada e fria como a água do mar. Parecia que o desgosto não tinha fim. Nem o princípio. Tropeçávamos na areia. E depois trepávamos à árvore do tempo para colhermos os seus bonitos frutos. O seu sabor era tão doce que amargava. E depois o tempo trouxe outro tempo. Deus parecia uma necessidade. A vida era regulada pela carência, pelo sol, pelo vento e pelo sino. Havia nomes que pareciam cruzes. E cruzes que pareciam nomes. E nomes que choravam. E outros que sorriam. Alguns nomes não eram nomes, mas esquecimentos. Esses eram os mais crus. Os invernos assemelhavam-se a olmos tristes e calmos. Os ramos pareciam tão definitivos como a verdade. Agora as cidades e as aldeias parecem mais pequenas. Foram definitivamente transformadas pelas ausências. E a velha igreja evidencia com toda a clareza o lado inútil e inacessível da persistência. O cansaço roda como um cilindro. Os dias definem-nos como se fossem espelhos. Apareceu-nos a esperança em forma de milagre. As coisas nunca são bem como parecem. Apesar dos sorrisos, tudo está carregado de raiva. A luz cai em lâminas na terra da eira. O sexo necessita de várias agilidades. A nossa agilidade possui a engrenagem do crepúsculo. O fogo é mais lento e os gestos são mais trágicos. O crepúsculo possui ainda alguns pedaços de alegria.