Chaves em quarentena V
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O dia ascende, minucioso. Há agora uma nova estratégia da crueldade. A luz cai em lâminas sobre os lençóis. Tudo o que vemos nas fotografias já passou. Sobre as flores do jardim desliza a alegria e o canto das cigarras e as princesas que querem perder a virgindade andando de bicicleta ou montando a cavalo. Alguém cortou os sonhos ao meio. Cesário Verde amadureceu antes de tempo. Ninguém vive apenas para si próprio. Tudo cabe dentro das casas. Sobretudo os nomes antigos. E as toalhas. E os lençóis. E os coitos. Coitados dos coitos. Os coitos agora rangem. Coitados dos corpos. E dos sexos. E dos orgasmos. Agora cavalgamos devagar, enrolando na cabeça os líquenes e a iluminação do Natal. A nossa sensibilidade corporal aumentou. Agora até a chuva nos fere a pele. São demasiado rústicos, os nossos deuses. Abrem os braços como se estivessem longe, medindo os caminhos de regresso, as flutuações dos montes, o crepúsculo, a curva dos voos dos pássaros, a transformação sonora do cantar dos galos. Tudo agora tem a forma de uma despedida e o cheiro das ausências. E o riso doido das lágrimas. A verdade agora é muda. A verdade não importa. A verdade inventa-se. As horas diluem-se no tempo. Nesse templo que tudo engole. A paciência é uma coisa inútil. Pode até levar-se ao colo. Ou dentro do bolso, para qualquer lado. As nações nasceram falsas. Já não conseguimos substituir as cores às memórias. A vida transborda de eletricidade. Einstein ensinou-nos que o tempo difere de local para local. Cada um tem o seu tempo próprio, que é intransmissível. Todo o ouro veio das estrelas supernovas. Tudo nos está a fugir das mãos. Tanto as coisas demasiado grandes como as demasiado pequenas, apesar de estarem ao nosso lado, não as vemos. A imagem da mãe atravessou a sala e pôs as flores na jarra que está colocada precisamente no sítio onde o sol incide diretamente. O som do sino da igreja deslocou-se para norte, para se misturar etereamente com as nuvens e com o fumo que sai da chaminé das casas. Os círculos cor de chumbo dissolvem-se no ar. E as horas também. Há um tempo que passa. Existe um outro que passa muito depressa. E há ainda outro que nunca acabará de passar. Encostamo-nos ao frio. Ouvimos o orvalho. O bosque está cheio de odores, de pequenos estalidos. De pirilampos que parecem estrelas. Há sonhos onde não existe nada, onde não se perscrutem olhares, por mínimos que sejam. Nem gestos. Lembro-me da imensidade irremediável do dia de ontem. Dos corredores. Dos gritos. Das escadas. Dos sons altos. Das más horas que quase não se ouviam. Quase não se sentiam. Quase não existiam. E da permanência dos aviões no céu. E da noite na aldeia que, à medida que foi acontecendo, se foi assemelhando a um pergaminho. Senti depois no meu olhar desolado o teu olhar ferido que tentava argumentar aquela ausência definitiva. O conceito de mãe é inviolável. Os corpos agora argumentam cansaço. Dizem que possuem uma espécie de segunda beleza, que, bem vistas as coisas, não é beleza nenhuma. Somos animais de pequenas ações. A rapidez do mundo é líquida. E nós somos os seus navegantes imóveis. Só o teu corpo é navegável. Os deuses são relapsos. Argumentam de lado, como se quisessem fugir. Tudo o que era leve ficou pesado. O nevoeiro, as auroras, os ossos. O silêncio.
Nós até temos potencial para sermos pessoas decentes. Aprendemos desde jovens que nunca podemos discordar dos superiores e nunca devemos concordar com os subordinados. Apesar de querermos ser estimados por ambos.
Nós adoramos clichés e simplificações revestidos de uma boa dose de verdade. Democracia é mesmo assim: devemos gostar das pessoas em abstrato e não em concreto
A nossa revolta, ou indignação, manifesta-se com ligeiras quebras de disciplina. Nós tentamos sempre manter as coisas dentro dos limites.
Quando decidimos ir para a frente pensamos que podemos voltar para trás. Gostamos de aguentar. Aguentamos até na hesitação. Mas não aguentamos os paradoxos.
Os portugueses têm tendência para apreciarem tiranos com voz doce.
Uma coisa nos distingue de muitos povos do mundo: a vulgaridade. E a docilidade. Somos muito compreensivos.
Algumas vezes a nossa presença de espírito faz-nos ter razão, mesmo quando a não temos. E isso acaba por confundir-nos.
Nós, por cá, gostamos muito de pertencer a panelinhas ou grupos para que na confusão geral se safem os protegidos. Os melhores de nós adoram organizar e dinamizar o “Clube dos Chatos”.
Nós somos muito de arrumar as coisas, desarrumá-las e voltar a arrumá-las de novo.
Gostamos muito de rezar, menos por esperança e mais para mostrar respeito.
A verdade é que continuamos a ver o Sol acima da linha do horizonte. E somos capazes de aguentar uma tempestade e ainda nos rirmos disso.
A verdade é que também temos sido heróis na resistência à hostilidade dos outros. Apesar de insistirmos na arte da ilusão, continuamos a caminhar de cabeça erguida. Continuamos a manter uma certa fé na humanidade.
E vivemos confortáveis no meio de centenas de insignificâncias que dão algum sentido à vida. Nós somos daqueles que prensam os trevos de quatro folhas nos meios dos livros pensando que eles dão sorte.
Caros compatriotas, ao contrário daquilo que nos dizem, a pobreza é degradante. A realidade e sempre permeável. O entendimento através da perspetiva das classes sociais é sempre enganadora.
Estar habitualmente entre pessoas que partilham os mesmos pontos de vista é não só redutor, como basicamente estúpido. Ninguém consegue aprender ouvindo o seu próprio eco.
Mas por que razão desejamos parecer-nos com as pessoas que desprezamos?
A verdadeira sabedoria resulta sempre de um certo sofrimento.
Quer queiramos ou não, o país continua a ser provinciano. E não existe nada mais ridículo do que a leviandade dos benzedores que se querem armar em curandeiros dos aprendizes de feiticeiro.
Todos nós sabemos que a esponja totalitária costuma funcionar em momentos dramáticos. Sempre foi assim. E sempre assim será. Mas todos sabemos o resultado da sua praxis: ilibar os culpados e condenar os outros.
Os medíocres pensam que a ordem está sempre na ponta do bastão e que a inteligência e a cultura são potencialmente perigosas, ou diabólicas.
A maioria dos nossos dirigentes e estadistas não passam de epifenómenos, mal saem das luzes da ribalta já ninguém se lembra deles.
Nós passamos do fatalismo à exaltação, e vice-versa, com uma facilidade digna de estudo.
A verdade é que a esquerda radical ao investir cegamente contra a União Europeia faz o jogo do neofascismo. E ele, como todos sabemos, é um vírus perigoso. O problema é que essa esquerda é, também ela, geneticamente virulenta. Apesar das mutações ensaiadas, tanto o neofascismo como o esquerdismo leninista, não deixaram de ser letais quando chegaram ao poder.
A ofensiva antieuropeia continua a ser uma espécie de ato gratuito e desastroso planeada por políticos revanchistas, populistas ou fracassados.
A União Europeia não pode ser um espaço de oposição inconciliável entre sindicatos e empresas, entre povos e nações ou entre tecnocratas e intelectuais. Tem que ser uma realidade política que nos englobe a todos. A todos sem exceção. Só dessa forma deixaremos de ser provincianos.
Mas uma coisa temos de exigir, que essa União Europeia, quando nos escreve, seja clara e se deixe, definitivamente, de nos enviar cartas com trechos onde não sabemos se nos elogia ou nos ofende. Ou as duas coisas ao mesmo tempo, o que não deixa de ser patético.
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