Poema Infinito (502): Combustões
A preguiça não é uma doença. Sei-o desde pequenino. Quando as entendes, as coisas mudam. O passado parecia menor, mas cresceu muito. Agora brilha intensamente provocando manchas no olhar. As fotografias tiradas nos velhos estúdios começam a expandir os seus sorrisos de desilusão. A verdade é que quando toca de chover tanto chove no justo como no pecador. Sinto à minha volta a nostalgia pelos gnomos das florestas primitivas, a força dos poemas de raiz oral, os demónios hermafroditas, as cidades subterrâneas. À minha frente tenho o deslumbramento retilíneo das novas avenidas. No céu surge Mário Cesariny ai meu Deus de Vasconcelos a explicar o chato do Fernando Pessoa às criancinhas. A verdade é que o seu desassossego já enjoa. A sua caricatura provoca lágrimas. Desde que foi para os Jerónimos é figura querida dos fabricantes de postais, loiças, roupas e de outros pagodes. A verdade é que o Fernando parece uma nossa senhora vestida de preto produzida pelos chineses. A verdadeira combustão poética é feita com pavio de estopa mergulhado em azeite. O Fernando é pouco Pessoa. Pascoaes é muito mais Teixeira. Iluminamo-nos com a mesma luz. Com as velhas aldeias, com o céu e as montanhas, com os tolos, os bruxos, os jericos, os vadios, os aliados, os lobos, a neve, o sincelo, a névoa, as serras e os penedos de granito. A verdadeira poesia é dissidente, selvagem, vinda diretamente da imaginação, da magia pornográfica dos sinais. A poesia não é literatura. É muito mais do que isso. Nela rebentam as flores, as estrelas, os bichos e os olhares. A poesia que se sente é fruto do primevo metabolismo cósmico a que se acede seguindo os velhos caminhos de cabras. Pascoaes tem razão: a aldeia é espaço finito, mas ilimitado. Continuo a andar pelos pinhais a tentar descobrir os enigmáticos sinais de pedra que Teixeira deixou por lá espalhados. Por vezes, durante a noite, oiço o uivo dos seus versos selvagens. A sua crença mágica é assombrosa e ingénua. Todo o grande poeta traz dentro de si o poder genésico de criar mundos paralelos. Uma vez viram sair Teixeira de Pascoaes da ala da casa onde habitava com a cabeça em fogo. Um aldeão também se espantou quando o viu subir uma encosta a deitar fogo pelos cabelos. Dizem-no poeta de fogo e de luzência. Foi com ele que aprendemos a mastigar luz. Os buracos negros alimentam-se dela. Os mundos mágicos tentam apagar a morte. É preciso correr entre carvalhos e antas para escrever versos tamanhos. Procuramos fazer amor só pelo prazer de sermos bem tratados, de olhos límpidos e em pose de acrobatas. Assim como há risos sofridos e molhados, as alegrias também podem ser assustadoras. Desvanecem-se como folhas pisadas, as memórias dos sorrisos que nos ajudaram a crescer. Os meus pais, que foram nascentes que me pareciam eternas, são agora húmus. Por vezes sou assaltado por uma espécie de pânico de nada sentir. Acordo despertado por relâmpagos de medo. Por vezes, a desilusão é do tamanho do mundo. E o desassombro da dimensão do universo. Eu louvo a chuva e prezo o sol. Continuo a querer saber de que são feitos a coragem e o medo. O arrojo do rio prende-nos à claridade do dia. O risco extenso da água faz-nos fechar os olhos. Há muitas coisas importantes que ainda não foram nomeadas. À medida que o tempo passa, amanheço mais cedo.