No CCB - Lisboa
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Vimos dos rios, dos campos, dos barrancos e das árvores. Depois da força da matéria caótica, apareceu a ordem humana. O amor não existe na natureza. Só entre nós. Nós transportamos o desespero para os eletrodomésticos. O instinto permite-nos ver a origem das coisas. Antigamente, as aldeias cheiravam mal. Agora cheiram a ninguém. O amor também pode destruir. Tudo o que é belo tende a desaparecer. Por vezes descem sobre nós coisas que solenizam o que estamos a viver. O olhar move-se como a luz feérica das coroas espirituais. Agora tudo nos vence: as bagatelas, o passo apressado das miríades, os homens angulosos, a exaustão dos grandes restos, as mulheres enfatuadas. Alguém sussurra frases de Shakespeare por entre as conchas das mãos tentando revelar-nos o seu sentido. Shakespeare explica-se a ele próprio. Oiço os murmúrios dos campos de trigo ecoando nos meus ouvidos. E vejo as flores caindo sobre as campas. A maior tentação das plantas é florir. Nas árvores rompem as primeiras insinuações dos frutos. A seiva impele para o alto através dos ramos torcidos. O silêncio é imperioso e obriga a suster a respiração. O vácuo quebrou-se de repente. Ouvem-se todos os sons ao redor: os grilos, as rãs, os insetos e o suspiro profundo das árvores. Depois tudo se desvanece. O som do sino tange o ar húmido da noite. E as distâncias ora são côncavas, ora são convexas. A solidão sente-se através de espasmos. Nos bancos de pedra sentam-se os sonâmbulos. Já não sobem as escadas por orgulho e não as descem por tonturas. Ninguém lhes garantiu que iam morrer. Alguns beberricam pequenos golos de aguardente. Outrora aqui moraram pessoas. As mulheres cantavam com voz doce enquanto amassavam o pão. E rezavam. Cantar era outra forma de rezar. E havia paixão e ceifas e fascínios e invernos violentos e primaveras férteis. Agora apenas o vento continua a varrer as encostas, inclinando as giestas e as urzes. O vento parece estrangeiro. Alguns dos que partiram, regressam agora vencidos e calmos para morrer. O seu amor foram as cidades onde as madrugadas se transformavam rapidamente em formigueiros sonâmbulos a caminho dos empregos. Durante o dia trabalhavam e à noite caíam na cama, exaustos. Pareciam lixo abandonado nas cidades excessivas. Conseguiram, quase todos, transformar a tragédia da sua vida em comédia diária. Viviam mergulhados num tempo imperfeito. Enchiam templos e estádios. Costumavam hibernar durante os fins de semana. Quiseram abraçar vidas mas o destino dividiu-os ao meio. E começaram a imitar o cântico dos rouxinóis engaiolados. Também as aldeias podem ficar cegas, surdas e mudas. Os mais velhos parecem peixes agarrados ao anzol da vida. Somos nós os que dormimos em cima de evidências, os que gememos de espanto, os que nos afastámos da perplexidade do amor e do ódio. A claridade pode ser insuportável para quem sai de repente da escuridão. A genética é uma espécie de formigueiro permanente. Custa-nos reconhecer as coisas à nossa volta, apesar de serem as mesmas. Os seus contornos são diferentes. Parece ter havido nelas uma mudança de sentido. As sombras são mais verticais. Junto à janela, a mãe ficou transparente. Dizem que a natureza tem horror ao vazio, mas o nosso desaparecimento é eterno.
A velha luta de classes foi substituída por uma outra bem mais parva: a luta da classe política contra tudo o resto. A classe política, enquanto tal, tornou-se demasiado reverente perante o dinheiro.
Quando a política é uma piada, o que faz sentido é ser comediante.
Eu conto uma piada. Um homem vai ao médico porque anda deprimido. A vida não está fácil. A vida é cruel. E dura. Sente-se só no mundo. O futuro parece-lhe vago e indefinido. O médico olha para ele com ar sorridente e diz-lhe que o tratamento é simples. Como na cidade está um bom circo, recomenda-lhe que vá ver o palhaço Patraquim. Ao ouvir isto, o homem desfaz-se em lágrimas e diz: “Doutor, eu sou o palhaço Patraquim.”
Os mais céticos acham que as pessoas não leem nada, não pensam em nada e não sentem nada. Eu considero que os céticos são uns exagerados, pois é bom de ver que as pessoas não leem quase nada, não pensam em quase nada e não sentem quase nada, a não ser uma fome endémica por um leitãozinho da Bairrada, o que é um indicador da possibilidade de os seus filhos nascerem autistas, hiperativos ou simplesmente insensatos.
Está claro que esta espécie de voz enfática é manifestamente exagerada.
A grandeza gosta de gabar-se até das suas próprias ruínas. Da pobreza, nem as cinzas se lhe aproveitam. Já a classe média aquece-se, quando pode, no morno calor do borralho.
Conversa-se sobre bagatelas e fazem-se afirmações em que não se acredita. Tudo isso nos faz perder o discernimento. Depois aceitamos tudo como um facto consumado.
A velhice permite-nos adquirir a capacidade de nos apoderarmos da experiência e modelá-la a uma nova luz.
As pessoas que fazem as leis nunca as elaboram com a intenção de elas poderem proceder contra os seus interesses.
A verdade é que a benevolente tirania das democracias parece ter um prazo de validade limitado.
Na democracia aconteceu que muitas pessoas com interesse passaram a pessoas interessadas e de pessoas interessadas transformaram-se em pessoas sem interesse. É por isso que a política é uma espécie de jogo das cadeiras.
A verdade é que os cavaleiros democráticos, montados nos seus cavalos flamejantes prontos a repor a verdade com a espada da justiça social, foi chão que deu uvas. Já ninguém acredita em tais histórias.
A verdade é que nesta história da democracia liberal tipo século XXI tudo está tão baralhado que já não se distinguem as personagens umas das outras e a ação acaba sempre por se basear no roubo, na mentira e na extorsão. Nem os argumentos da Walt Disney eram tão fracos.
A verdade é que a biografia dos estadistas atuais é de tal maneira desinteressante que vai ser difícil arranjar quem as escreva sem cair no ridículo ou ficar deprimido.
A verdade é que a nossa sociedade de informação transformou os cidadãos em gente sem personalidade, todos iguais, com a mesma voz, a mesma maneira de falar, os mesmos gostos, a mesma opinião.
Existe uma espécie de dissociação trabalhada. Hoje gostamos de tudo e não gostamos de nada. Quanto mais conhecemos os outros, menos nos conhecemos a nós próprios.
Dizemos respeitar os processos políticos mas perdemos as nossas opiniões políticas. Rezamos sem acreditar. Subordinamo-nos ao trabalho, negando muitas das vezes o nosso caráter, o que implica a negação da nossa consciência. Lidamos com o subterfúgio e a ocultação como se estivéssemos num videojogo.
Agora só há narrativas. Ninguém estabelece compromissos.
Mas tem de se voltar à fidelidade, aos princípios e aos valores. A palavra dada por cada um tem de ser assumida, valorizada e respeitada.
Dizem-nos que cada vez somos mais livres, mas a verdade é que cada vez temos menos direitos.
A Democracia não é um fenómeno teológico. Não depende da fé, mas da vontade dos homens e das mulheres.
Numa Democracia não pode haver exceções à regra. Mas a verdade é que elas existem. E em tal quantidade que a regra é que é uma exceção afrodisíaca.
A tal robustez democrática, de que nos falam os nossos queridos líderes, é feita à base de esteroides.
Com todo este exercício físico democrático deixámos praticamente de pensar e apenas contamos os dias que faltam para o fim do mês. Ou cogitar no crédito e na poupança possível que nos permita ir de férias para Varadero.
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