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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

21
Mai20

Poema Infinito (509): Poesia do Big Bang (Segunda)

João Madureira

 

 

E de uma esfera de tudo surgiu a tarde. E depois a manhã. Houve uma explosão imponente, mas desprovida por completo de variedade e frescura. Foram os predecessores do Segundo Templo que durante o exílio elaboraram o sítio exato para a adoração. Ezequiel, o profeta, trabalhou entre os exilados os regulamentos sobre a vida na Terra Prometida. O rei David disse ao seu filho Salomão que devia andar pelos caminhos do Senhor, guardando as suas leis, os seus preceitos, os seus costumes e exigências. Tudo de acordo com a Lei de Moisés. Alguns dos chefes militares mais sanguinários mataram os chefes dos exércitos de Israel, vertendo, em tempo de paz, o sangue da guerra, espalhando-o pelas sandálias, pelos pés, pela cintura e pelo chão. Muito antes disto acontecer, Deus criou o homem e só depois a mulher. Pelo meio entreteve-se a criar os animais. Antes de criar a mulher, deu ordens ao homem para evitar comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. A criação dos animais teve como intenção arranjar companhia ao homem. Mas o homem pouco lhes ligou. Então criou a mulher. Deus é uma personagem da história. Passado muito tempo, Abraão chegou à Palestina vindo do oriente e Moisés fez a caminhada com o seu povo a partir do ocidente ao mesmo tempo e com idêntico objetivo. No dia em que o general Job matou Absalão, o filho do seu rei David, por se ter rebelado contra o pai, este fartou-se de chorar e de se lamentar. A vitória do seu exército nesse dia converteu-se em luto. Por isso entrou na cidade em silêncio e coberto de vergonha como se se tratasse de um exército derrotado. As ironias mais antigas são sempre as mais saborosas. Moisés tomou o sangue dos novilhos sacrificados e com ele aspergiu o seu povo lembrando-lhes que aquele era o sangue da aliança que o Senhor concluiu com eles. Moisés entrou pelo meio de uma nuvem e subiu à montanha. E ali ficou durante quarenta dias e quarenta noites. Chegámos à história primordial. A criação já lá vai. E o exílio acabou. Chegou o tempo de nos entretermos com as genealogias, que são narrativas mínimas. É tempo de falarmos da esperança depois do desespero. As pessoas de todos os tempos têm aquilo que merecem. Deus é tão bondoso que perdoou o rei Manasses de Judá, que era de uma maldade sem paralelo, que não só adorava ídolos, como mandou queimar na fogueira o seu próprio filho, como um sacrifício. Apesar disso, teve o reinado mais longo de qualquer rei de Judá, precisamente cinquenta e cinco anos. E isso levantou um grande problema teológico. Como foi que Deus permitiu tal coisa a um malvado? A resposta está no seu arrependimento. Nas suas palavras de penitência. Depois aconteceram coisas extraordinárias, mas verídicas: Jonas foi engolido por um grande peixe e depois vomitado vivo; Ester derrotou uma intriga contra os judeus, evitando a chacina de numerosas pessoas; Daniel escapou de um covil de leões sem um arranhão. Houve tempos em que no Mediterrâneo viviam peixes capazes de engolir homens. A verdade é que a ficção faz parte da história. Quando não é a própria história. O judaísmo deslocou-se então no sentido do estudo de textos e na oração não sacrificial. Enquanto, ao mesmo tempo, no Segundo Templo se faziam os sacrifícios diários. A história de Deus e do seu povo teve sempre altos e baixos. Que raio se podia concluir das várias subidas de Moisés ao monte Sinai? As suas orientações nem sempre foram fáceis de retirar a partir dos acontecimentos.

18
Mai20

491 - Pérolas e Diamantes: Os bons velhos tempos

João Madureira

 

 

Quem desconfia, fica sábio. Por vezes nós não gostamos ou desgostamos das coisas. Não nos habituamos é a elas.

 

Para os ecléticos tudo depende de tudo. E de mais alguma coisa. São como os músicos que tocam sem pauta, pois sabem de cor as músicas que devem tocar para agradar.

 

A maioria das pessoas prefere não pensar em nada. Quer é que o dia passe a correr para seguir em frente.

 

Antigamente muitos homens andavam com as botas aos ombros para as não gastar. As mulheres mais velhas e gorditas usavam laços ao pescoço para lhes suster a papada. E as pessoas, sobretudo as mais pobres, ficavam com as orelhas e os dedos cheios de frieiras.

 

Era normal as pessoas passarem ciclicamente por momentos difíceis. Havia muitas que nunca passavam por nenhum que fosse bom. E havia determinadas horas do dia em que grande parte das pessoas, sobretudo os homens, ficavam bêbedos.

 

Antigamente havia muitos milagres. Sobretudo entre os mais necessitados. Nascia-se por milagre, comia-se por milagre, vivia-se por milagre. E até se morria por isso mesmo.

 

Nas igrejas glorificavam-se muito essas coisas. As senhoras respeitáveis não saíam à noite e muitos pobres fingiam-se de coxos para pedirem esmola, especialmente à saída das igrejas, onde se rezava para que Deus ficasse mais fofinho.

 

Antigamente faziam-se muitas horas extraordinárias. A verdade é que muitas vezes nem com esse dinheiro extra as famílias conseguiam viver dignamente. Os homens, então denominados chefes de família, regressavam aos seus casebres tristes e de mau humor, já com um grão na asa, e punham-se a bater na mulher e nos filhos.

 

Por incrível que pareça, sobrava muita comida. As pessoas comiam muito disso. Sobras. Quando se comia carne, sobravam os ossos que, depois de bem limpos, eram dados aos cães.

 

Antigamente fazia muito frio. O dobro do frio de agora. Ou o triplo. Nem os cães podiam andar na rua. E olhem que eram cães de uma resistência quase insubmissa.

 

Liam-se muitos livros de Milagres, Santos e Santas. Por exemplo, sobre Santa Teresa de Ávila. E os escritores dessas obras primas eram tão eruditos que conseguiam escrevê-los sem uma única cacofonia.

 

Os namoros eram então muito mais românticos. Quando os namorados não tinham dinheiro, para oferecer prendas às namoradas, escreviam-lhes versos que as faziam corar. Elas, em troca, davam-lhes beijos muito suculentos. Já o resto só depois do casamento.

 

A luz tremia muito. Era tímida e fraca. As lâmpadas fundiam-se com frequência. A luz era cara. Bem, a luz ainda continua a ser cara. Utilizavam-se também velas, candeias e candeeiros a petróleo.

 

E também se ia às touradas sem se ser insultado. E ao futebol sem se ser agredido ou cuspido. E ao cinema quando se tinha poupado algum dinheiro no lanche dos domingos.

 

E havia gente tão gentil e bondosa que não acreditava que os trabalhadores deviam ser mortos à fome a pouco e pouco. Afinal eles, os pobres coitados, também tinham de comer, apesar de, quase sempre, serem feios, porcos e maus.

 

Depois, quando a luz vinha mais forte, até os pratos, e a outra louça, parecia que engordavam. Fora isso, tudo o resto lá em casa era delgadinho. A ceva, as galinhas e os coelhos. Nessa altura ainda não havia colesterol.

 

As ideias eram muito direitas. Muito imediatas. E o amor baseava-se na fidelidade.

 

Naquela altura meditava-se com tudo. Até com os preconceitos morais. E decoravam-se parágrafos inteiros dos romances de amor.

 

Os mais crédulos rezavam o credo até adormecer.

 

Antigamente tinha-se muita paciência. Até de mais. Agora todos fervem em pouca água.

 

E adquiriam-se muitos direitos por usucapião.

 

E os dirigentes gostavam de tratar bem os seus subordinados. Gostavam que eles se sentissem bem. Que prosperassem, dentro de certos limites. Havia muitas empregadas domésticas, também conhecidas como sopeiras.

 

E comiam-se muitas sardinhas em lata. Que eram boas para a prisão de ventre, evitando os clisteres, que não estavam ao alcance de qualquer um.

 

E os maridos e as mulheres sorriam com ternura. E abraçavam-se. E beijavam-se. Havia dias em que as coisas corriam bem. Apesar de correrem mal.

 

Naquele tempo um mandava. E os outros obedeciam. Hoje já não há nada disso.

14
Mai20

Poema Infinito (508): A liquidez

João Madureira

 

 

A verdade é algo que brilha por si mesmo. Acho que o meu pai herdou da sua mãe o silêncio. O seu silêncio era uma espécie de renúncia à palavra. Já a mãe confundia sempre a importância das coisas. Relevava sempre as mais insignificantes. Agora contemplo a dissolução do passado. Sinto-o como uma espécie muito subtil de furacão. É lá onde sofrem os espíritos. Os dias continuam a filtrar a luz. Subi as escadas. O silêncio, a princípio, pareceu-me certo. Depois começou a assustar-me. O nascimento é uma espécie de colisão frontal entre o nosso corpo e o tempo. Existe o Mal. E existem as suas vítimas. E depois existe a compaixão pelas suas vítimas. Mas, no seu interior, só existe o desprezo. As pessoas apenas amam os heróis. Não as vítimas. Os ritmos dos nossos corpos andam desencontrados. Aprendemos a descarnar as horas, como os antigos faziam com as espigas de milho. O amor é agora mais sonolento. E o cansaço mais minucioso. Cai em cima de nós como um ritual. Contamos o tempo desde as primeiras horas da manhã. O tempo parece uma centopeia. Muita gente fala agora a nosso respeito, de boca fechada. Do nosso crescimento. Medem depois os dias como se fossem comerciantes de tecidos. Não sabem que regressamos aqui atraídos pela luz que dá vida aos campos. O passado parece Deus. Possui a mesma forma de presença ausente. Veste-se com as mesmas cores do pôr do sol. Os ciprestes são os mesmos. Os pássaros também parecem os mesmos. E os caminhos. Dizem, no entanto, que as manhãs custam mais a nascer. Fico com a sensação de que perco parte da visão quando olho na direção da velha casa dos avós. Este é o sítio onde não se pode negar a morte. Houve tempo em que penteávamos as ruas. Gostávamos de as encontrar desprevenidas e disponíveis para amar. Os seus cantos eram silenciosos. Por vezes andavam por lá mendigos. E cães. E namorados de mão dada, olhando distraidamente os vasos de flores, como se o amor fosse eterno. Gostava de esperar por ti na entrada do cinema, depois de comprar o Tintim no quiosque. Muitas vezes punha-me a olhar para a montra da alfaiataria, enquanto ouvia uma gaita de beiços ao longe. Ou o som de um violino. Trazia o cinema dentro da minha cabeça. Nas esplanadas bebiam-se cervejas e gasosas, enquanto os mais céticos liam o jornal e viam passar os carros com uma certa inveja. As mulheres e as criança mastigavam bolos. Alguns casais davam as mãos ao tédio, abúlicos, conversando sobre temas nasalados. Os magalas esperavam pelo comboio noturno. E havia os domingos que escorriam como se fossem narcóticos da discordância. Toda a semana persistia como se fosse segunda-feira. O fastio era uma espécie de coincidência. As figuras estagnavam na sua simetria, lentas como o sol e exatas como a morte. Até as páginas dos livros eram líquidas como as tardes de inverno. O fumo do tabaco era áspero. Os nossos corpos pareciam tábuas. Quando nos acariciávamos parecíamos bichos intercetados. Tínhamos a ficção no rosto. Sentíamo-nos amalgamados pelo amor. Agora negamos as ausências. Tudo se vai transformando em vidro. Até os pássaros parecem vestidos de verniz. Já só contamos para a economia dos fragmentos. Queremos acreditar que o sexo é um fenómeno cerebral. As dúvidas passaram a ser concêntricas. Os ramos da velha árvore entraram para dentro do espelho do quarto. 

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