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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

29
Jun20

497 - Pérolas e Diamantes: Flores e acepipes

João Madureira

Apresentação3-2.jpg

 

Pessoa limpa pensa limpo. Pensar mal é fácil. O contrário é que é difícil.

 

Como diz o meu amigo Riobaldo, a gente vive para se desiludir e desmisturar. Afinal, como é que nós entendemos as coisas? Depende da maneira como as olhamos. O fim das coisas boas está sempre perto. Por vezes é de onde menos se espera que o pior vem.

 

 O saber e o sucesso de uns não pode ser a desgraça de outros.

 

A verdade é que hoje as pessoas tratam-se umas às outras como se fossem brinquedos, móveis ou automóveis. E acham que estão a dar o máximo de si quanto a respeito e carinho.

 

A verdade é que as pessoas já não se divertem com a caridade. Muitas nem sabem o que isso é. Algumas, as que têm mais memória induzida, pensam que antes fosse assim. Que assim é que era.

 

As pessoas andam muito abstratas. Fazem que ouvem, mas não ouvem, nem leem, nem meditam, nem nada.

 

A sociedade atual parece uma homilia cristã: tudo são mutações, aparições e desaparições. Só as cores é que não condizem com o retrocesso. As cores de agora não têm época. É tudo ao deus-dará.

 

A maioria das mulheres maduras, quando vistas ao longe, parecem Vénus louras. Quanto mais ao longe se observam mais parecem.

 

Já as loiras mais novas, uns dias parecem a Marilyn Monroe e no dia seguinte assemelham-se ao Marilyn Mason.

 

O maior encanto das conversas atuais é a sua imprecisão. Nada parece o que é.

 

Por vezes, sinto uma sensação estranha. Noutras ocasiões faço um esforço enorme para não me rir.

 

Comecei a dar valor a quem revela um verdadeiro gosto para fazer arranjos de flores em taças e jarras. Pois não é nada fácil cruzar violetas amarelas com os estranhos lírios e as pequenas orquídeas brancas e enlaçá-las com ramos verdes. Essas escolhas são o resultado de muito cuidado e reflexão.

 

As floristas são mais lestas a fazer arranjos de tulipas, goivos e narcisos. A gente de gosto comum gosta, sobretudo, de combinar as flores de jardim.

 

O amor pensadamente burguês é bonito porque consegue sobreviver com beijos e queijos.

 

Por vezes, o inverno é ameno. Galanteios e ilusões fazem parte da vida social. Os bons negociantes são aqueles que compram com possibilidade de devolução.

 

Por vezes é o cheiro a gardénias que torna a música reconhecível.

 

Há pessoas que depois de retirarem a máscara com que se disfarçam exibem logo outra, não vá a verdade traí-las. 

 

Claro que é bom ter passado, como bem nos lembram os seus apaniguados. Claro que também é bom ter presente, como dizem os que vivem dele. Mas o verdadeiramente importante é ter futuro, pois o presente já é passado.

 

A nossa democracia cada vez se assemelha mais a um louva-a-deus.

 

Para mal dos nossos pecados, atualmente é vulgar apelidar a estupidez de honestidade. Uns vão descrendo e outros já deixaram de acreditar. Os costumes são regionais. Sempre.

 

O que é ridículo não é a propaganda dos feitos e ditos. O que verdadeiramente irrita e amesquinha é a propaganda dessa propaganda. É esse tipo de atitude que tem procrastinado o nosso futuro. 

 

Já devia chegar de política do croquete, do sorriso cordial e da filigrana barata.

 

O problema não reside na dúvida democrática mas sim no facto de já quase ninguém acreditar nela, nem nas suas qualidades e potencialidades. Isso é que é dramático. Até os apelidados de verdadeiros democratas desconfiam da possibilidade da sua renovação.

 

Continua a mudar-se alguma coisa. Isso é indesmentível, mas parece que é para tudo ficar na mesma.

 

Fica-se com a impressão de que as questões são cozinhadas para se adaptarem às respostas já pensadas. Por isso é que que efeitos são geralmente fracos ou deslocados. Os interesses mesquinhos de alguns impõem-se aos verdadeiros interesses e necessidades de todos.

 

A verdade é que temos de nos deixar dessa treta conservadora e decadente do fatalismo português e libertar-nos da tal alma provinciana que resulta sempre da nossa tendência para a contemplação. E também dessa ideia peregrina da nossa piedade instintiva e da pobreza aprazível.

 

Nem a pobreza é feliz e redentora, nem o destino está marcado.

 

O problema reside sempre nos tais dos acepipes.

25
Jun20

Poema Infinito (514): Névoa

João Madureira

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A névoa desce sobre a terra e eu começo a sentir-me incorpóreo. Uma espécie de trepidação percorre-me o corpo. As emoções voltaram a incendiar-se. O medo aumenta o vazio. O verdadeiro orgulho é sempre silencioso. Nas confissões tinha de procurar alguma coisa de que me acusar e, a verdade, é que nunca encontrava esses pecados dentro de mim. O arrependimento era sempre feito por antecipação. Nas noites de muito luar, o rio brilha como uma cobra. Quando queremos ver demais, os olhos costumam atraiçoar-nos. Foram os homens esplendorosos os que construíram e acabaram por destruir as civilizações antigas. Toda a nostalgia é um cadáver tardio. O seu fascínio é uma festa implacável, onde se evoca Deus, o tempo, o sol e o mar. Os nossos antepassados, todos eles, viajaram em caravanas de nómadas dominados por uma sabedoria meridional que vinha das florestas e tomava o caminho do norte. Os seus corações eram vulcânicos e batiam com violência. Depois sentiam crescer dentro de si a amargura. Viviam em crescente sobressalto, por isso os seus olhos estavam sempre dirigidos para longe, para as cidades de Deus, que nunca conseguiam atingir porque estavam demasiado altas. Os pátios com ervas parecem agora mundos fechados. Apenas se ouve o som monocórdico do sino. São as palavras que conferem a clareza transparente do sentido do universo. Apenas as palavras são capazes de dar sentido àquilo que não tem sentido nenhum. Só elas nos permitem ver aquilo que está oculto. A verdade é que a literatura não pode ser invadida pelos cardos ou pelas rosas. Cada qual reencarna na sua própria personagem. Há uma coisa que é inevitável: a perda. Comecei a escrever em cadernos exíguos e também numa ardósia. A literatura era escarlate e escaldante. Agora já poucos ruminam os clássicos. A vida possui o brilho e a consistência de uma bola de sabão. A transitoriedade possui uma magia especial. As memórias começam a gotejar, como se fossem sangue. E as emoções começam a cair como se fossem lágrimas. Por vezes, tudo nos sucede em simultâneo. A nossa parte invisível é sempre a mais extensa. Daí o ceticismo humano. As urzes em flor fazem-me sempre lembrar a minha avó a andar de um lado para o outro, como uma lavandisca. Lá fora ouvia-se o tilintar das campainhas anunciando que se ia dar de beber às vacas, ainda antes da ordenha. Uma nuvem suspensa de fina poeira filtrava os raios do sol poente. Sentia-se ainda um intenso cheiro a feno no lado poente da aldeia. Na encosta virada a norte a erva era densa. Por lá voavam codornizes e brincavam crianças e nadavam patos e gansos no riacho. Havia perto um grande bosque. Também eu acreditei que em conjunto se podia mudar o mundo. A realidade faz envelhecer tudo. A mediocridade acaba sempre por triunfar. A vitalidade não é indomável. Ao crepúsculo, sentimo-nos sempre numa encruzilhada. Pensamos muitas vezes que queremos ficar sós, mas dependemos sempre dos outros. Depois das dissidências pontuais, e das debandadas repentinas, voltamos sempre ao círculo familiar. É difícil medir a desgraça das pessoas. Tudo está em silêncio: os campos verdes, a parte da infância que ficou doente, as tardes de chuva, as casas que estão a morrer, as janelas fechadas, as portas apodrecidas, a ribeira que se vai perder no mar, a luz da fogueira. O crepúsculo.

22
Jun20

496 - Pérolas e Diamantes: TOC

João Madureira

 

Apresentação3-2.jpg

O espetáculo da vulgaridade é agora permanente.

 

Passa-se o tempo a dizer “chega desta pouca vergonha”. E depois põem-se, os tais, a falar de bons costumes, de moral e de retidão. E a fazer, e a dizer, coisas inconcebíveis.

 

A verdade é que a história anterior à História está a manipular-nos. Os tiranossauros e os velocirraptores andam por aí disfarçados de estadistas. Os apóstolos apócrifos continuam a dizer e a desdizer aquilo que eles dizem que os outros disseram. É tudo um jogo de espelhos.

 

O poder e o Estado já não metem medo. O medo foi substituído pelo hábito e pela rotina.

 

As hierarquias estão a corromper-se. Nós somos sempre a terceira pessoa.

 

E a rasteira aí está: os que possuem antepassados irrelevantes são incentivados a alcançarem pensamentos relevantes.

 

Continua a resultar a tal experiência famosa de um psicólogo tocar a campainha e de o cão que a ouve, salivar. E não só o cão.

 

Já as gazelas não conseguem manter a cabeça completamente imóvel nem os olhos completamente parados.

 

Bem vistas as coisas, a preguiça é a mãe da inteligência.

 

Agora ensina-se História como se ela fosse uma espécie de ONG. Tudo tem enquadramento, tudo tem uma explicação. Tudo tem uma desculpa. E o que não tem desculpa, desculpado está. Não há culpados. Apenas vítimas. A História foi feita pelos tontos, todos eles movidos pela procura da paz, da honra e da santidade.

 

Já existem novas interpretações sobre a descoberta da América e também novas considerações sobre a revolução industrial. A nova história é um patíbulo onde se decapita a antiga.

 

Assim talvez tudo faça sentido, mas é um sentido tão arrevesado que mais parece não ter sentido nenhum. Talvez seja esse o sentido final das coisas.

 

A História acaba por ser um fantasma: algo de que se tem medo, mas em que ninguém acredita.

 

A verdade é que os historiadores são preguiçosos, gostam muito de dormir e não lhes apetece trabalhar para dizer algo que logo outros tratarão de desdizer. Por isso é que os historiadores gostam muito de apanhar sol. A verdade é que eles não têm culpa da História, apenas da sua interpretação.

 

Dizem que ser presidente faz sentido. Ser presidente de alguma coisa: da república, da assembleia, de um clube, de uma associação cultural ou recreativa, ou mesmo presidente da câmara.

 

Eu, ao que vejo, tenho de concordar. Agora já concordo com tudo. No fundo é tudo uma questão de argumento.

 

Antigamente os presidentes comiam bem, bebiam bem e até fumavam charutos enquanto tomavam um café com cheirinho. Agora alimentam-se com pratos saudáveis de peixe grelhado, legumes cozidos ao vapor, saladas frescas. E bebem água do luso. De sobremesa debicam uma peça de fruta biológica. E no fim ficam-se por um descafeinado com adoçante. Alguns, talvez os mais audaciosos, fumam de uns cachimbos eletrónicos que produzem nuvens cinzentas com cheiro a baunilha ou a frutos vermelhos.

 

Fazem sempre que se riem. Penso que, à sua maneira, são felizes. E trabalhadores.

 

Vítor Cunha Rego, nos bons tempos, escreveu que o Poder é sempre um obstáculo natural à informação, para concluir que a apatia é um inimigo ainda mais preocupante.

 

A verdade verdadinha é que os eruditos encartados de agora, quase todos eles assessores do poder, não passam de discípulos de Pangloss.

 

Mas uma coisa vos digo, que a aprendi do Malhadinhas: saber ler não basta para se ser fino, cavalheiro, ou dona, e muito menos para se ser feliz. Ler pode trazer muita infelicidade.

 

A verdade devia brilhar por si mesmo. Mas o que acaba sempre por brilhar é o dinheiro. A condição humana não precisa da verdade. A verdade é um conceito cultural. Um adorno moral.

 

Quando invoco a verdade, é frequente atirarem-me com o argumento de que falo nela, e a defendo, porque sou vaidoso. Há gente capaz de qualquer coisa.

 

Vivemos tempos indefinidos onde tudo se tornou banal, até a corrupção. A verdade parece querer fugir da realidade, mas fecharam-lhe a porta.

 

A gente honesta aparenta pertencer a uma ordem de frades mendicantes. Defender a verdade e a honestidade parece atualmente uma piada de mau gosto.

 

Talvez a corrupção seja uma espécie de transtorno obsessivo-compulsivo.

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