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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

18
Jun20

Poema Infinito (513): Poesia do Big Bang (Terceira)

João Madureira

 

 

Moisés escreveu apenas dez mandamentos porque estava cansado de lavrar a pedra. Escrever esgotava-o. Fazia-o suar imenso. A matéria costuma impor a sua vã realidade até aos mais abençoados dos abençoados. Aquele que cultiva a terra pode saciar-se de pão. Já o que procura futilidades é um insensato. Não se devem mover os marcos antigos. Ser sábio aos nossos próprios olhos é uma insensatez. Só o homem sossegado consegue manter-se no seu santuário. Afinal, onde estava o homem quando Deus lançou os fundamentos da terra, quando determinou as suas dimensões, quando colocou nela a sua pedra angular? Provavelmente a desenvolver a sua inteligência. Mas Deus não podia esperar para dar seguimento à história. A verdade, sobretudo a do livro, é enigmática. Que proveito tira do seu trabalho e da sua dedicação cega, aquele que trabalha? Um bom nome é melhor que tudo o resto. A sabedoria começou por ser um nome abstrato. E ainda hoje continua dentro da mesma simbologia. Em Israel, ela nunca foi motivo de culto. A verdade é que não foi a sabedoria quem criou o princípio das coisas, nem a eternidade, nem os abismos, nem as fontes, nem os céus, nem a condensação das nuvens. A sabedoria nem sequer criou Deus. E podia tê-lo feito. A sabedoria ensinou o homem a pecar. A verdade é que Moisés recebeu as leis no monte Sinai mas apenas as transmitiu ao seu povo nas planícies de Moab, na outra margem do Jordão. Apesar de a Bíblia associar as leis a Moisés, quando pensamos melhor acerca do que isso possa implicar, tal ligação revela-se implausível. Deus foi explícito nos mandamentos servidos aos homens: sobre a libertação da servidão, sobre a sua exclusividade, sobre a sua não representação em imagem esculpida ou de outro tipo, sobre o seu zelo, sobre a sua vigilância, sobre o uso do seu nome em vão, sobre os dias de trabalho e o dia de descanso numa semana, sobre a honra devida ao pai e à mãe. E foi taxativo na sua parte final, avisando o tolo do homem e proibindo-o de matar, de cometer adultério, de roubar, de testemunhar de forma mentirosa, de desejar a casa, a mulher, o servo, a serva, o burro e tudo o que era do seu próximo. Claro que o homem fez a sua própria interpretação dos dez mandamentos e tem-se mantido fiel aos ensinamentos de Deus. A verdade é que Moisés deu estas leis como uma questão de previsão profética. Quando chegassem à Terra Prometida, iam necessitar delas. A verdade é que pouco sabemos sobre Moisés e sobre Abraão e muito menos ainda sabemos acerca de Deus. Mas uma coisa, sim, sabemos: Moisés apresentou então ao seu povo um grande número de maldições específicas, que resultariam como consequência de desobediência: loucura, cegueira, roubo de propriedade, chagas, escravidão, infertilidade e canibalismo. Se não cumprissem os seus mandamentos, os homens seriam amaldiçoados nas cidades e nas aldeias, bem assim como o seus cabazes e as arcas, os filhos, os frutos da terra, os bois e as suas crias e os filhotes das suas ovelhas. E até quando entrassem e saíssem de qualquer sítio. A verdade é que as leis bíblicas se parecem mais com sabedoria do que se fossem códigos. São leis de sabedoria. São como convites para se procurarem analogias e paralelos em relação a princípios gerais e precedentes. E, convém nunca esquecermos, que a justiça era aplicada junto ao portão da entrada das cidades.

15
Jun20

495 - Pérolas e Diamantes: Evoluções

João Madureira

 

 

A civilização surgiu da tentativa do ser humano em se aliviar dos seus esforços físicos. Os mais inteligentes começaram a gastar o seu tempo a criar coisas para não nos mexermos, carros para não termos de andar ou mesmo controlos remotos para mexermos na televisão, esparramados no sofá.

 

E a evolução foi tal que agora gastamos bom dinheiro com a conta do ginásio. E trabalhamos sentados. E até suamos para não termos de praticar qualquer atividade física ao ar livre.

 

Vivemos numa época onde se vão propagando ondas de nostalgia. A visão romântica da época medieval só pode ser apreciada por quem decide omitir a verdade histórica. 

 

Como dizia Paracelso, a diferença entre veneno e remédio é a dose.

 

Nessas alturas, por causa de um adultério, uma mulher podia ser condenada a que lhe cortassem o nariz e uma bruxa podia ser serrada ao meio ou queimada numa fogueira.

 

Os tempos que vivemos são incomparavelmente melhores do que os de antigamente. E olhem que esse afastamento temporal nem sequer chega a um século.

 

O que nos permite viver de uma melhor forma tem tudo a ver com a democratização do ensino, da cultura e da ciência.

 

Além do mais, sem cultura é mesmo difícil apreciar certas coisas. A aceitação da mestiçagem é um dos mais interessantes conceitos culturais. A lei da pureza é uma coisa pobre. A criatividade resulta da mistura.

 

Num cartoon que li algures, alguém se dá conta de uma evidência: “Antigamente não havia mulheres e é por isso que elas não aparecem nos livros de História das escolas. Dantes apenas havia homens e uma boa parte deles eram génios.”

 

Na Mesopotâmia, as tabernas eram propriedade das mulheres. Eram elas que cozinhavam e faziam a cerveja. Depois a casa tomou conta delas. A civilização teve graves consequências para elas.

 

Por vezes, as mulheres aparecem e desaparecem dos registos como se fossem extraterrestres. Afonso Cruz pôs na boca de uma sua personagem (porque ela, diz ele, não conseguia evitar um instinto maternal em relação aos homens desajeitados, que, bem vistas as coisas, são quase todos): “Sabe como é com as mulheres: queimamos os sutiãs, mas não nos livramos das mamas. Continuamos a sentir vontade de proteger os homens. E Deus sabe como eles precisam.”

 

Foi precisamente por beber quando não temos sede e fazer amor em qualquer altura do ano, o que acabou por nos distinguir dos animais.

 

Dizem os entendidos que os quadris femininos aumentaram porque o cérebro também aumentou.

 

Desmond Morris defende que o principal apelo erógeno é o rabo, sugerindo até que as mamas hemisféricas não são mais do que uma imitação do traseiro.

 

Em The Naked Woman, Morris escreveu que os glúteos aumentaram drasticamente de tamanho, possibilitando ao corpo manter-se permanente e completamente ereto, “sendo esses músculos responsáveis pelo par de curvas hemisféricas na base das costas que hoje, com ingratidão, achamos risível”. Diz Desmond que a manutenção da postura é apenas uma plataforma de acesso às funções estética e erótica.

 

A sua tese é curiosa: se a fêmea humana desviasse o interesse do macho para a frente do corpo, a célebre evolução tinha de estar relacionada com a criação de mais fontes de estimulação na região frontal.

 

“Em dada altura do nosso passado, devíamos estar habituados ao acesso por trás.”

Então uma pergunta se impõe: “Olhando para as regiões frontais das fêmeas da nossa espécie, encontraremos algumas estruturas que correspondam a uma imitação dos primitivos atrativos sexuais, as nádegas hemisféricas e os lábios vermelhos?”

 

A sua resposta é sim, pois à medida que a fêmea desabrocha, as mamas ficam salientes e redondas. Ora isso são as réplicas das nádegas carnudas, “e os lábios vermelhos, bem definidos, em volta da boca, são réplicas dos lábios vulvares. (Lembremo-nos de que, durante a excitação sexual intensa, tanto os lábios da boca como os vulvares se tornam vermelhos e inchados, de modo que ficam ainda mais parecidos, e que passam pelas mesmas alterações durante a excitação sexual.)

 

Ou seja, se o macho humano já se encontrava preparado para responder sexualmente aos atrativos genitais da retaguarda, estaria certamente predisposto para reagir se eles fossem duplicados na frente do corpo feminino.

 

E parece que foi precisamente o que aconteceu. Ora isso também nos remete para o uso dos sutiãs e o uso dos batons (sobretudo vermelhos) nos lábios. Mas essa abordagem fica para uma próxima oportunidade. Pois, por hoje, a conversa já vai longa.

11
Jun20

Poema Infinito (512): A dúbia aritmética dos sorrisos

João Madureira

 

 

Eu nasci e fui criado em terra de minifúndio. Foi lá que aprendi a assinar o meu nome com letras cheias de nuvens altas. Nessa altura acreditava na identidade dos anjos. E na força sobrenatural dos prodígios baratos. E tinha orgulho. Um tipo de orgulho cósmico que hoje já não existe. Depois tudo começou a perder a sua magia. Sobretudo o Natal: o burro ficou sem cabeça, o boi estilhaçou-se, o São José perdeu a mão e o cajado, os camelos e os reis magos desapareceram como por milagre. Apenas ficaram intactos o menino Jesus e a Virgem, sua mãe. Do mal o menos. A minha voz abeira-se do teu corpo. Descubro a palavra exata: humidade. A humidade redonda dos teus seios. A humidade deslizante da tua vulva. Os ritmos são diversos. As veias dilatam-se. A dilatação ganha sentido. Persigo e percorro o frémito da carne. A tempestade começou a desvanecer-se na escuridão. Mas os teus olhos são agora como partículas solares puras e brilhantes. Andamos perto da descoberta da raiz da vida, da dúbia aritmética dos sorrisos. De tudo aquilo que é vagamente irónico. E conciso. Tudo isso se resume na subtileza cromática dos lábios. É doce a simbiose calma dos excessos. Não vale a pena negar aquilo que se viveu. Percorro agora as memórias das horas no dorso azul da madrugada, das linhas equilibradas das margens do rio, dos ecos vacilantes dos chilreios, das lágrimas retidas, do sobressalto das sombras, das esperas incertas, da carne ungida, do medo dos padre-nossos. Esse tempo costumava correr melancólico, espantoso, católico, bucólico e alcoólico. Os velhos medos são acessórios dos novos. Fazem-nos sofrer as mesmas mazelas crónicas, as mesmas apatias circenses, as mesmas pompas fúnebres. Percorremos o lado lacónico da aldeia, tingida de cobre, castanho e ferrugem. Sentimos a tristeza da sua indolência interior. As suas feridas já são antigas. Não existe nada de grandioso na sua decadência. Continua cheia de sombras, mas afastada da floresta. Os seus segredos deixaram de ser claros. O rio prolonga a insónia dos caminhos, a sua memória corrosiva. O tempo perdeu as sementes da próxima polinização. O caminho está cheio de passos. Encolho-me dentro da minha idade. As sombras estão rente às árvores. Daqui avistam-se as paredes do tempo. Lembro-me das mãos da avó quando me absolviam. Da sua trajetória. Raramente evidenciavam dúvida. Os seus gestos inauguravam os dias. Tudo parecia ficar mais perto. No seu mundo, eu tinha confiança. A lareira iluminava-nos. Nunca acreditei na sua morte, apesar do seu olhar de esquecimento. Nunca desperdiçou os seus gestos a desfazer coisas. Atualmente há demasiado ruído nos olhares. As ruas da aldeia agora são habitadas pelos gatos e pelas almas. As horas parecem pasmadas, cheias de angústia e medo. Tudo é transitório e isso não é fácil de suportar. A inquietação mora sempre entre a solenidade e o mistério. A avó só temia o mundo quando chegavam as tempestades com os trovões, os relâmpagos e as chuvas descomunais. Refugiava-se na adega e deixava que tudo passasse. Na adega havia uma força obscura que a avó evitava. Nas tempestades de verão o céu transformava-se num mar de luz sólida explodindo em mil pedaços. A avó transformou-se em silêncio. E a mãe. E o pai. Sinto-os quando oiço a música de Johann Sebastian Bach, o que é quase absurdo. São uma espécie de bumerangue metafísico. Nunca sabemos muito bem qual a extensão do território da nossa felicidade.

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