No Barroso
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A política atual é uma espécie de paciência interativa jogada com cartas de tarot.
A política é, de facto, um equívoco. Com a atual andamos a modernizar a pobreza.
Os seus protagonistas parecem pombos que quando se elevam no ar voam por medo. A maioria voa por necessidade. Poucos são os que o fazem com alegria.
Também há os que não voam, nem flutuam nas lufadas de vento, limitam-se a ficar por ali a pairar.
No Minho de antigamente havia por lá uns tais Fidalgos das Enguias, título que, muito discretamente, repudiavam. Por aqui existiam outros tantos Fidalgos da Treta, que se diziam íntegros e genuínos.
Dizem que D. João V adorava enguias. Todos sabemos que D. Duarte Pio de Bragança adora tretas.
Alguns dos seus seguidores, provavelmente dos mais inteligentes, pintam lindas libelinhas com muito engenho e arte.
A nobreza tem destas coisas, enquanto uns sofrem de amor, outros limitam-se a passar o tempo. Já nada é como soía.
E a classe média continua a ser o plâncton dos ricos.
Há que tentear a razão sem ferir ou prejudicar a conveniência.
Vendo, ouvindo e lendo, fico com a impressão de que somos um país de resignados. Até a minha resignação se tornou praticável.
Vejo a encobrir a praça das Freiras a palavra Chaves, em letras dinossáuricas, e não me indigno. Ou, pelo menos, não escrevo o que me vai na alma perante tal atentado de mau gosto. E, ainda por cima, copiado dos milhentos exemplos de mau gosto espalhados pelas praças de aldeias, vilas e cidades deste naco de país que todos dizemos amar.
Como o amor pode ser diferente.
A verdade é que podemos matar de amor aquilo que amamos. Foi com esse amor de perdição que matamos o Jardim das Freiras. Não contentes com tal novela apócrifa, transformamos essa praça numa coisa que ninguém consegue qualificar com os adjetivos adequados.
A intenção pode ser boa. Todas as boas intenções o são. Em teoria, claro. O resultado é francamente mau, inestético. Desajeitado. Intrusivo. Pode até ter sido uma tentativa de disfarce. De encobrimento. No entanto, fica tudo a dever ao bom gosto. Mas, por favor, coloquem o lixo no lixo. Ou reciclem-no.
O coaxar das rãs pode ser complacente, assim como a invariabilidade do canto das cigarras pode provocar neuroses.
A verdade é que temos de saber até que ponto é socialista esta câmara socialista. A musicalidade do discurso condiz. E, temos de concordar, também é bastante óbvia. O seu executivo não revela agressividade.
E se a anterior administração autárquica tinha baixa autoestima. Este revela uma autoestima muito profissional.
Parece que a cidade está sempre a ir dar a um beco sem saída. Quem joga para o empate acaba por perder. Além disso, todos sabemos que em política não há bambis. Na política, como no xadrez, os impasses indicam o final do jogo. São os empates por repetição das jogadas. Quando dizemos e não fazemos estamos apenas a desgastar-nos.
Os tempos mudam mas as pessoas continuam a ser como são.
Não devemos permitir que o símbolo partidário, ideológico, filosófico ou religioso nos impeça o acesso à realidade.
Todos são bons quando nos escutam.
Dizem que os paradoxos são maus aliados dos novos chefes. O problema é quando não se podem evitar.
Os críticos nem sempre são moscas varejeiras a querer entrar onde não são chamadas. A realidade não é assim tão simples. Ou tão conspiradora. Há gente que gosta de comer o pão na mão do dono. Mas também existem outros que nem sequer gostam da ideia, quanto mais da situação. Apesar de gostarem de pão. E quem não gosta?
A verdade é que o combate acaba sempre por dar lugar ao descontentamento. Por muito que os retratos queiram impor respeito, a verdade é que a qualidade dos protetores, dos mestres e dos mesários é duvidosa.
A nossa terra está repleta de faunos velhos. O seu orgulho está impregnado de memórias do passado. A velha religião parece ter morrido, mas o culto sobreviveu. Os jovens já não querem mudar o mundo, limitam-se a mudar de aparências. São revolucionários dos aspetos.
Não é nada agradável ser-se invejado pelas razões que menos apreciamos. É como uma espécie de traição.
Penso, no entanto, que ainda existe entre nós um desejo coletivo de identidade.
Lembro-me todos os dias do pai. Do seu enigma. Na verdade, eu nunca soube quem verdadeiramente era o meu pai. Era tímido, silencioso e elegante. Nunca conheci ninguém sequer parecido. Talvez fosse uma espécie de anjo do esquecimento. Ele gostava de ir para dentro de si. Tenho vontade de o voltar a ver. Muita vontade. Mas sei que não é possível. Até os anjos morrem. Julgo que herdei do meu pai uma espécie de ironia oculta. Nunca me ensinou a gostar dele. É por isso que gosto tanto dele. Da sua memória. Da sua elegância quando me agarrava na mão e saíamos para a rua. Ele não se importava de ser pobre. Os ricos são sempre os outros. Mas o seu espaço moral era grande. Não sei se sonhava. A ser assim, fazia-o de maneira imprecisa. Ele construiu a sua própria solidão. A morte deu-lhe uma espécie de liberdade: libertou-o da ação, do trabalho, do esforço, das tentativas de êxito e do fracasso. Por vezes cozinhava. Era um bom cozinheiro. A necessidade aguça o engenho. Tinha muito jeito para preparar os ingredientes. O seu olhar tinha uma luz muito concentrada. Por vezes, recolhia-se dentro da sua própria sombra. E, por vezes, também acontecia o contrário. A sua angústia era laboriosa. A simplicidade tem destas coisas. O seu corpo era uma espécie de desculpa. Não a sua alma. A sua inexistência atual é uma forma de condenação minha. Ele nunca esteve dividido entre o bem e o mal. Por vezes parecia que se sentia excluído de mim. Esse tipo de ternura invisível é dolorosa. Acho que não tinha medo de desaparecer. Mas eu tenho. Os mortos que se transformam, perduram. Agora até me lembro da sua lembrança. O presente transforma o passado num enigma. O pai faz parte da distância. O seu labirinto emocional acabava sempre na tristeza. As horas estão cada vez mais vazias. Vivemos sempre dentro de pequeninas catástrofes. Por vezes tudo me parece vazio: os homens, as mulheres, as crianças, os pássaros, as árvores, as ruas, os rios e o mar. Muitas vezes o meu pai chegava de madrugada, quando eu já dormia. Fazia parte do seu horário. Quando ainda era novo, o seu maior amigo deu um tiro na cabeça com a espingarda de serviço. O meu pai ficou ainda um homem mais triste. A verdade é que nunca abdicou dela. Nem a cultivou. Aconteceu-lhe. Já pouca gente se lembra dele. Todos caminhamos para o esquecimento. O pai foi à guerra, mas nunca mais se interessou por esse momento histórico. Deixou apenas que acontecesse, nada mais podia fazer. Em troca, o país ignorou-o. Por vezes ficamos assustados com a nossa própria essência. Eu sou parte da essência do meu pai. Herdei dele uma espécie de timidez desalentadora que me sai quase sempre em forma de ironia corrosiva. A solidão é imponente. E, por vezes, impotente. É difícil ter acesso à felicidade. O pai transformou-se numa pequena luz. E agora esvoaça com pequenas partículas de pó doirado nas asas. Ninguém é igual ao outro. Não conseguia rir. E, para mim, isso foi sempre uma espécie de catástrofe. Por vezes sinto-me a afogar em angústia. Lembro-me de o meu pai cortar o pão onde a minha avó punha sempre uma cruz, antes de o cozer. Dentro de casa devia haver muitos espíritos, pois era fria. Só a cozinha era quente, porque a lareira estava sempre acesa. Muitas vezes ia para junto dele, no cimo das escadas, vê-lo fumar e olhar para a distância do tempo, do céu e da terra.
Somos daqueles que acreditamos que nem o primeiro sinal nem a segunda sinalização são bons presságios.
Continuo a acreditar que a Terra é redonda. E que existe uma diferença entre o vácuo e o vazio.
Antigamente havia muitos homens que se pareciam com cães. Agora há sobretudo cães que se parecem com homens. E com mulheres. E gatos. E até com canários. Ou cantadores de fado.
Antigamente açoitavam-se as pessoas com o propósito de mostrar serviço educativo e punir prevaricadores. Hoje, tal ato, apenas é permitido, e apreciado, em sessões de prazer e luxúria sexual. Até se escrevem livros a enaltecer tais despropósitos e se realizam filmes para colocar em imagens o que os livros descrevem.
As pessoas eram como cardos, andavam sempre a picar-se umas às outras. Atualmente, muitas ainda são assim. Outras são mais assado.
As pessoas costumam variar pouco, nas conversas e em tudo o resto. Antigamente eram os papagaios que diziam asneiras, mais conhecidas como palavrões. E ninguém levava a mal. Todos sorriam. Menos os papagaios. Apesar de tudo, era difícil denunciar um papagaio por injúrias.
Os homens de então dedicavam-se muito à columbofilia. E construíam lindos pombais onde instalavam os seus ilustres pombos-correios. As casas e os pombais dessa altura eram muito discretos. As pessoas gostavam de agradar e servir. Eram como pombos amestrados. As casas, apesar de humildes, ressumavam ternura. E humidade. E frio.
Os gaiatos, apesar de usarem calças com fundilhos e correrem descalços pelas ruas de terra batida, eram muito jubilosos e davam gritos sensíveis. Todos eles possuíam um anjo da guarda que os entretinha quando pensavam que tinham fome. Havia sempre a esperança de poderem comer no dia seguinte. Os jovens podiam namorar despreocupadamente porque havia muita decência. Os homens eram cavalheiros e as mulheres senhoras. Podiam até fazer as tais coisas que todos sabemos sem darem um pio. Assim dava gosto. Dizem que agora parecem autênticas sirenes do INEM. Eu nessa discussão não me meto porque já me vai faltando a audição.
E também se davam muitos clisteres. E punham-se flores de cretone em jarras de plástico cheias de serrim. A beleza podia ser zarolha, mas era verdadeira. Até se bordavam as almofadas e os lençóis. E existiam travesseiros. Que saudades eu tenho dos travesseiros.
O encanto por vezes era quieto e outras vezes bruto. Tal e qual como o amor paternal. O amor podia ser coxo, mas não deixava de andar de um lado para o outro. Dentro ou fora do lar. Uma das grandes declarações de amor dessas alturas era: “Gosto mais de ti do que de pão frito.”
As pessoas ficavam tristes, mas de uma forma impercetível. E as moscas davam voltas distraídas pela borda dos copos.
As pessoas caminhavam devagar, faziam que pensavam, contavam os passos para se entreter e diziam que não tinham medo quando se aproximavam das esquinas. E andavam de romaria em romaria em busca de quem dançasse.
Os homens faziam o que lhes mandavam sem mostrarem má cara e tudo lhes parecia bem. Até o mal. Desde que viesse por bem. Entendamo-nos.
Já os garotos preenchiam cadernetas com cromos dos jogadores de futebol para no fim ver se conseguiam ganhar uma bola de futebol de catechu que substituísse a de trapos.
E as casas eram tão frias que a maioria das pessoas passava o inverno na cozinha. E comiam chícharros fritos ao almoço e ao jantar. Quando os havia. E sardinhas. Por vezes, uma sardinha dava para três. E também se comia sopa. Muita sopa. E pão. E ia-se à taberna buscar meio litro de vinho.
As mulheres, nos retratos, sorriam mimosas. Cheias de felicidade e gratidão. Qualquer insignificância amorosa lhes punha os olhos rasos de lágrimas.
Os pobres eram honrados. E os homens bons pais de família, mesmo que fossem infelizes como cães.
Alguns rapazes, e umas quantas raparigas, iam estudar para o Liceu, mas poucos terminavam os seus cursos com sucesso.
Dizem que o vento se fartava de assobiar por entre as casas.
Alguns dos homens públicos contemplavam atónitos o desenrolar dos acontecimentos sem perceber bem o que se passava, apesar de ser tudo muito claro e evidente.
Havia raparigas tão pobres e infelizes que muitas desejavam ir para freiras. Outras escolhiam ir para a vida fácil. Tudo era melhor do que continuar nas suas enxovias.
As mulheres eram quase sempre uma espécie de sargentos sem divisas, prontas a mandar na rapaziada. E os homens eram calmos e meio bêbados. Ou melhor, ficavam calmos quando estavam meio bêbados. Sóbrios, variavam muito no seu comportamento.
Naqueles tempos não havia televisão. Mas muitas casas tinham um rádio onde se escutavam os discursos do chefe do governo, os relatos de futebol e de hóquei em patins e também as radionovelas, muito ao gosto popular.
Também se ouvia cantar o fado e falar da Nossa Senhora de Fátima, padroeira de Portugal, que não tinha descanso, tantos eram os pedidos de ajuda para milagres e conforto das almas.
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