Em Sesimbra
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Tenho de confessar que esta pandemia provocou em mim o abalo mais forte desde que nasci. É um prenúncio de medo. De medo generalizado que, muito provavelmente, vai levar a mudanças radicais. E estou em crer que este ambiente assustador veio para ficar.
O rebanho, que já era dócil, vai ficar ainda mais dócil. É esse o sonho de todos os governantes. O que interessa é que o povo tenha medo. E aí está uma nova casta de comentadores que tudo sabem sobre epidemias, virologias, cuidados intensivos, temperaturas, contágios, etc. Em apenas três meses ultrapassaram os comentadores políticos, económicos e desportivos. São os novos lacaios do poder. Estão aí para assustarem. E ajudarem a vender máscaras, luvas, gel alcoólico, viseiras, vacinas e outros medicamentos.
Cá estão eles para enganar, para ludibriar os que já não acreditam no poder, e para deitar lixívia sobre a cunha, a preguiça, o desleixo, o roubo e a passividade.
Não é quem mais berra quem manda no país. Esses apenas ajudam a distribuir os tostões. O poder está no livro de cheques dos ricos, sempre que decidem desapertar os cordões à bolsa.
Com as novas tecnologias, e com a facilidade de comunicação que permitem, vemos o medo a tomar conta das sociedades, reduzindo o planeta à dimensão de uma aldeia.
O historiador R. C. Boxer escreveu que “os portugueses têm demonstrado ao longo dos séculos uma notável capacidade de sobrevivência à má governação, vinda de cima, e à indisciplina, vinda de baixo”.
A nossa literatura é um espelho dessas atitudes. A mais divulgada e acarinhada expressa os desejos e os sonhos da aflição dos lisboetas, repleta de sentimentos mesquinhos, de sobranceria e de autossatisfação burguesas. Vive na linha entre Lisboa e Cascais, pensando, e escrevendo nas entrelinhas, que o resto do país é um território estranho e semisselvagem habitado por gente bruta e pobre, cujos hábitos, emoções e problemas lhe são estranhos.
A verdade é que a vida das elites da capital tem os mesmos defeitos descritos por Eça de Queirós, cheia de personagens bizarros, prosperando no meio da corrupção, dos maus costumes, da baixeza moral, da intriga, da conspiração, do desvio de fundos e de negócios chorudos conseguidos por cunhas e ajustes diretos.
Uma coisa sabemos, esta nova elite política e social é de longe muito mais corrupta do que a do antigo regime. E muito mais talentosa. Mais urbana. Mais culta. Consegue viver com o ouro dos outros.
Em relação aos novos ricos que infestam a nossa sociedade, e todos os organismos do Estado, os pequenos tiranetes de então eram uns pobretanas. Eles apropriavam-se indevidamente de alguns contos de réis. Mas nem nos seus sonhos mais delirantes conseguiam vislumbrar que os seus filhos e netos viriam a arrecadar milhões.
O povo, pobre coitado, continua o mesmo: de lágrima fácil, vítima da sua alma carinhosa e de uma pieguice desculpabilizadora que, muito provavelmente, faz parte de uma matriz que dizem definir a maneira de ser portuguesa.
Claro está que a nossa nova casta lusa está refém da nova casta europeia. Todos eles cuidam primeiro dos seus interesses e só depois se preocupam com os demais. A morosidade das burocracias trata do resto.
Só um cego é que não vê que a nossa adesão à União Europeia originou algo de construtivo na nossa sociedade, abrindo novas possibilidades. Mas também temos de reconhecer que essas possibilidades foram essencialmente aproveitadas por toda a espécie de oportunistas, burlões e traficantes. No entanto, devemos estar-lhe gratos porque, sem ela, não teríamos saído da nossa dimensão terceiro-mundista.
A verdade é que a união da União Europeia é frágil.
A verdade é que nos queixamos dos nórdicos porque eles se queixam de nós, devido à nossa propensão para gastar o dinheiro dos fundos europeu em bebidas e na farra.
Mas o facto é que os nórdicos se esforçam por poupar, por ter as suas contas controladas, e por fiscalizarem os seus governos e as suas instituições de modo a poderem ter um futuro para si e para os seus filhos.
Por isso são avessos a que uma boa parte das suas poupanças seja dada aos países meridionais a fundo perdido, ou quase.
Como disse Rentes de Carvalho: “O pedinte a insultar quem o favorece é uma situação que, mesmo numa comédia teatral, seria insólita.”
A grande janela dá para a noite. Em breve a noite dará lugar ao amanhecer. O ruído do Big Bang é permanente. O vento transformou-se num novo oráculo. As mãos não sentem as portas que já abriram. E as estrelas já não deixam rastro. As quedas dão-se agora do lado errado da realidade. As esfinges morrem afogadas no meio dos limbos. Num universo unido, as imagens deixam de ter reflexo, perdem a sua evidência. Na adolescência fotografei obsessivamente o mar, o movimento das marés, o regresso das aves, a solidão definitiva da luz, corpos a descerem sobre corpos, os lugares inacessíveis do desejo, as tempestades, a chuva, a neve, as fronteiras. Agora tento fixar a nostalgia dos gestos e a solidão definitiva. Os crepúsculos tornaram-se violentos. O dia desaparece no meio de horas incertas, deixando os nossos olhares parados no passado que parece interminável. O medo chega primeiro que a morte. Neste lugar acabam todas as estradas. Todo o amor se transforma em ausência. Por isso o pai nunca falava de si. Apenas cortava as árvores para arranjar lenha para o inverno. Dizia que quem acredita em histórias comete um erro profundo. No entanto, as suas mãos conservavam a ternura, mesmo quando estavam frias. Vejo agora o regresso às aldeias de fronteira, ao íntimo das terras, aos lugares sagrados da meditação. A beleza não precisa de nome mas de um campo ladeado de cerejeiras. Amo profundamente a ideia de visitar Constantinopla. Os povos oprimidos estão fartos de pronunciar as palavras malditas. Lembro-me das horas coladas ao teu olhar, do rumor da tua boca, de o teu corpo correr junto ao meu litoral. A tarde parte para longe. Treze apóstolos, treze colinas, treze tribos, treze cidades incendiadas. O último viajante aparece sempre antes do crepúsculo, quando o amor começa a arrefecer. É altura de os dias começarem a ficar parecidos com ilhas e desordenados de azul. E divagamos. As mulheres ficam fabulosas mas continuam a não conseguir amar as viagens inacabadas. Depois o tempo fica estranho, parece contaminado por um vírus. A memória fica lenta. Os caminhos não vão dar a lado nenhum. Tudo fica amarelo como as planícies de Van Gogh. A serenidade é cada vez mais permeável, mais ajustada aos padrões dos noticiários. Tudo fica rigoroso dentro da sua inutilidade: a fascinação pelas estradas, a clara alegria das cidades, as civilizações antigas, as velhas canções e as imensas revoluções que são como arroz de cabidela. Até os pássaros ficaram tão brancos que parecem criados em aviários. Raras são as cores que se observam nas casas. Perto do fim, todas as viagens têm o sabor do outono. Por aqui é difícil cantar a alegria. Apenas o fazem os solitários e os ébrios. Por isso a envolvem nas lendas e nos sonhos. E dizem-na bela como os frutos. A alegria, dizia a mãe, é como uma romã. Nunca passou daí na sua explicação. A nossa cidade é boa para celebrar o outono, as chuvas abundantes, as ruas estreitas e oblíquas, o sol errante e o verde inclinado das montanhas. É frequente os sonhos surgirem devagar. Por aqui tudo demora três dias: o começo dos poemas, o sentido das coisas, a recuperação das memórias, as notícias dos amigos, as ressurreições e as mortes. As paixões deixaram de ser prodigiosas. O vale é sereno antes da destruição.
Portugal pode parecer um país alegre, até bem mais alegre do que nos meus tempos de rapaz. Naquela altura íamos brincar e nadar na água pura dos rios.
Agora, o poder autárquico democrático resolveu construir piscinas em todas as vilas e cidades. E faz bem porque os rios transformaram-se em lixeiras.
E também se fizeram muitas autoestradas. Por isso é que as estradas têm atualmente mais buracos.
Agora já ninguém passa a roupa interior porque não se vê. E até se rompem as calças para andar na moda. E usam-se piercings em tudo que é sítio, literalmente. E também se tatua a pele como se ela fosse um papel de rascunho onde se podem esquiçar algumas ideias.
Cozinha-se o bife do acém na chapa. Quem pode, claro. E quem não pode saliva com as belas imagens que a televisão transmite dos mestres de cozinha a grelharem essa carne suculenta.
A mediania e a vulgaridade tomaram conta de tudo.
A humilhação é geral.
Todos nos começamos a sentir vagamente patéticos. Estamos reduzidos às rotinas do dia a dia.
Gostam de nos lembrar que se cheiramos a limpo é porque há outros que estão sujos.
Todos manifestamos uma genuína indignação perante o estado das coisas, mas socialmente continuamos a ser uma comunidade pacífica. Talvez demasiado pacífica e resignada.
A verdade é que a culpa nasceu sempre de ventre desconhecido. O que é um grande mistério.
Bem nos avisaram que a democracia é sempre um sistema político frágil, sobretudo por causa da corrupção, da demagogia e dos populismos. Mas a verdade é que os avisos não tornam as coisas mais fáceis. E muito menos as evitam. Sente-se que a nossa democracia está a implodir.
O cansaço da política tem sempre estado relacionado com o prenúncio do fascismo ou de outros autoritarismos semelhantes. Tem de se evitar que o povo venha a descrer das instituições democráticas e do próprio futuro do país.
A nossa democracia transformou-se num jogo do bingo.
A sintaxe marxista foi sempre enganadora. E isso não lhe perdoo. Fez-nos um mal imenso.
Winston Churchill disse que “os homens às vezes tropeçam na verdade, mas a maior parte levanta-se e prossegue como se nada tivesse acontecido”.
Sim, eu sei que há leis, que a vida tem as suas leis sociais e culturais que, na realidade, são leis políticas, leis atávicas, leis que fizeram possível tudo aquilo que atualmente apelidamos de civilização.
A verdade é que estamos a cair num buraco e não sei se essas mesmas leis nos conseguirão tirar lá de dentro.
Portugal foi um país tão pobre que as minhas memórias dele são quase sempre frias. Incómodas.
A felicidade era quase como o Espírito Santo, invisível. Dizem que existiu, mas pouca gente a viu. E muito menos a sentiu. Dizem que só nos lembramos do que nos convém. Mas a infelicidade não convém a ninguém.
Naquela altura tudo era básico. Simples. Anómalo. Vivíamos no meio de espasmos morais.
Agora, por cá, lá vamos matando o tédio, confundindo as paisagens e jogando compulsivamente na raspadinha. Continuamos a esperar que o destino nos surpreenda.
Portugal é um país com pessoas que se deixam levar por uma espécie de indiferença frugal. Muitos gostam de se apaixonar por quem os humilha. São boa gente. Gente sem pretensões. Gente que parece boa gente. Gente sem jactâncias. Gente previsível.
Toda esta gente assiste impávida e serena às notícias de corrupção e ao desfile das diversas imputações a políticos: fraude, prevaricação, suborno, branqueamento de capitais, tráfico de influências, desvio de dinheiros públicos, participação em organizações criminosas, etc.
Depois observam esses senhores, com ar abatido, a transformarem-se em vítimas absurdas dos meios de comunicação apenas porque compraram modestos palácios, carros de acomodada e expansiva cilindrada, fizeram viagens de luxo e decidiram, muito contra a sua vontade atávica, descansar em hotéis de seis estrelas com praias privativas, para não serem incomodados.
Para estes senhores a acumulação de riqueza é um mal necessário, uma imposição social que acatam com muito sacrifício.
Alguns dos que caem nas mãos da justiça alegam sempre, e com razão, que nunca se aperceberam de que estavam a roubar.
Os que vão a julgamento acabam enredados em longos julgamentos dos quais costumam safar-se e ser absolvidos. Os poucos condenados, afirmam alto e bom som que tudo isso apenas se ficou a dever a uma grande injustiça e ingratidão.
Os que vão para a prisão ficam lá dentro apenas uns meses. Depois tudo se esquece. O que tem de ser tem sempre muita força.
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