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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

31
Ago20

Anúbis e etc... e tal

João Madureira

Apresentação3-2.jpg

Anúbis em casa

 

Apareceu-me em casa, não sei ainda bem como, Anúbis, o antigo deus egípcio da morte e dos moribundos, por vezes também deus do submundo. Conhecido também como deus do embalsamamento, o guardião das tumbas e juiz dos mortos. Os egípcios acreditavam que no julgamento de um morto era pesado o seu coração e a pena da verdade. Por vezes Osíris, o seu pai, aparece também cá em casa e trocamos opiniões. Noutros dias é a sua mãe, Nephthys, quem faz o mesmo e então estabelecemos uma troca de opiniões muito serena e muito cordata. Ela é uma deusa muito educada, muito curiosa e sábia. Nunca dá uma opinião se não lha pedirem. E mesmo assim pede sempre desculpa. E gosta muito do seu filho a quem não nega rasgados elogios. Já não existem divindades assim. Anúbis já me apresentou a sua filha, Qeb-hwt, também conhecida como Kebechet. Uma rapariga muito gira, muito estudiosa e serena. Também ela gosta de música, de toda a música, menos a clássica, à semelhança do pai. Anúbis aninhou-se junto às colunas da televisão e da aparelhagem de som e dali não quer sair. Ouve com muita atenção a música rock, jazz, pop, hip-hop e até música portuguesa, menos fado que diz que é uma música sempre igual, muito lamechas e pobrezinha. Mal ele sabe que o fado é a imagem fiel do nosso povo. O que não tolera é música clássica. Apenas com uma exceção, gosta muito de Bach. Muito, mas mesmo muito. Também aprecia ouvir o noticiário das nove na SIC Notícias, a cargo do educadíssimo Mário Crespo. Hoje, como ele não apareceu, ficou um pouco inquieto. Facto curioso é que se mantém ali paradinho, com as suas orelhas espetadas e focinho muito aprumado. Nem sequer pisca os olhos. Não se emociona com nada. Um deus é um deus. Nunca mostra os seus sentimentos aos mortais. Eu não lhe levo a mal. Mede cerca de 30 cm, mas isso não o impede de ser imortal. Antes lhe facilita a função. Ontem à noite cantou, para quem o quis ouvir, a canção Nefretite não tinha papeira do Zeca Afonso. Cá em casa, porque somos fãs incondicionais do músico português, ficámos de boca aberta, mas muito satisfeitos. Pedi-lhe então autorização para o fotografar. Ele foi muito prestável. Eu agradeci-lhe e pus-lhe um pouco de Bach na aparelhagem. Ele deu um passo em frente e depois regressou à sua posição inicial. A seguir fui para a cama ler alguma poesia de Herberto Hélder (Poemas do Antigo Egipto), que, segundo me confessou Osíris, é tu cá tu lá com o seu filho.

 

Cão solitário


Chove. Lá fora chove. E eu vou passear. Passear à chuva é uma tarefa solitária. Como solitário é um coração compassivo. Vou dando voltas e voltas e ouvindo as gotas caírem no chão. Não penso em nada. Só na chuva a cair. As árvores agitam-se com o vento. O vento enerva-se com a chuva. A chuva excita-se com as nuvens. As nuvens escorregam lá no alto. Dirijo-me à quinta de um amigo que vive longe. Vou lá muitas vezes quando chove. Vou lá ver os rododendros e as murtas, os eucaliptos e os pinheiros mansos, os carvalhos e os castanheiros. Sento-me numa fraga redonda e alta e oiço os pássaros cantar no meio da chuva. Os pássaros estão molhados e desiludidos. Cantam como quem se lamenta. Depois voam em pequenos trajetos e voltam ao mesmo lugar de onde saíram. Gosto de ouvir a chuva a bater nos vidros das janelas da casa abandonada. Sugerem pequenas pedradas de namorados. O musgo, das pedras do muro que suportam uma fonte, ampara pequenas gotas de água nos seus exíguos filamentos. Parecem pequenos diamantes nervosos. Quando fecho os olhos sinto o cheiro uniforme da humidade do ar misturado com o odor da terra molhada. Chove na superfície meiga da água do poço. Continua a chover quando me venho embora. O som da chave na fechadura do portão da quinta desperta um gato que dormita num vão de escada. Ao longe, um cão ladra pausadamente. Os meus passos ecoam no silêncio da calçada deserta. O meu olhar descai para a direita. Lembro-me então de abrir o guarda-chuva para aliviar a pressão. Volto para casa para ler um poema chinês que fala do voo de uma borboleta no meio da chuva.

 

Epístola oitava

 

Escrevo-te do S. Ainda ando cá por baixo a gozar os rendimentos, que, não sendo muitos, são os suficientes para me manter à tona da água, que, sendo salgada, é tão água como a outra, só que não se pode beber, senão secamos por dentro e isso é mau. Mesmo muito mau. Especialmente para a saúde. A saúde anda boa, graças a Deus. Deus é que não sei como passa. Mas não me é fácil adivinhar que, da forma como o mundo respira, o próprio e o subentendido se encontram bastante deprimidos. Os Homens são uns camelos forrados de lantejoulas e vestidos de orangotangos. Para me incomodar ainda mais do que aquilo que estou todos os dias, hoje perdi os meus óculos e, verdade seja dita, não enxergo grande coisa à vista desarmada. E olha que por aqui, segundo oiço comentar, há coisas dignas de serem vistas. Mesmo quando se faz vista grossa, que não é o mesmo que dizer que existe caça grossa à vista. Disso aqui já não se encontra. A caça grossa rumou a outras latitudes. Aqui subo muito. Depois também desço aquilo que subi. Só que descer é bem mais descansado do que subir. Mas lá vou tenteando as coisas como posso. Se é que posso tentear alguma coisa de que valha a pena conversar. Mas, caro amigo, sinto-me muitas vezes só. Mesmo no meio de milhares de concidadãos. A solidão é uma coisa muito pessoal. E, como sabes, eu sou muito pessoal. Talvez pessoal demais. Mas, como diz o povo, quando se sabe a comida sobra e quando se sobra a família cai ou quando a família cai outros valores mais altos se levantam. Que o mesmo é dizer que ande a vontade por onde andar a minha casa há de vir descansar. Mas no meio da confusão não sei bem onde a comida sabe, ou a família sobra. No entanto prometo pensar maduramente no assunto. PS - Não te esqueças de dar de comer às minhocas (Lumbricus terrestris). O resto que se lixe.

27
Ago20

Poema Infinito (523): O eco do tempo

João Madureira

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Nós somos a principal aventura de Deus. A alvorada começa a surgir. Sente-se a chuva contra a corrente do rio. A chuva intensifica-se. Depois para. Sinto a luz a curvar-se e a gravidade a fazer abrandar o tempo. De novo a chuva começa a tamborilar regularmente contra a calçada. Sente-se a decomposição pelo meio dos farrapos do dia. Nuvens de borboletas voam em volta do tomilho. Um raio de luz cortou obliquamente o forno da aldeia. Já ninguém aqui coze pão. Ou se aquece. “Houston, daqui a base da tranquilidade, a águia aterrou.” Sente-se a força G. Quando se sai da atmosfera terrestre o normal é sermos acometidos por uma náusea avassaladora. As gotas de chuva, ao embaterem no vidro, seguem a trajetória das lágrimas da mãe quando o seu e o meu pai morreram. Lembro-me que a sua cara ficou como a de um ator de kabuki a meio da maquilhagem. Muita da melhor arte consiste em encobrir a própria arte. O assombro faz sempre parte da inocência. Sinto a ressonância elétrica do Big Bang. Por cima de nós, as nuvens aproximam-se das cores góticas. Por vezes são as coisas sem importância que nos fazem ver a importância delas. Escrever é o início de um enigma eterno. O nascimento foi o primeiro apontamento da História. Seguiram-se os martírios, os milagres, os casamentos  místicos, as cenas de tortura, as crucificações, as mortes, as ressurreições, as procissões. E as batalhas entre exércitos rivais. E os santos adolescentes crivados de setas. Depois Ícaro caiu de cabeça no mar porque as suas asas artificiais de cera derreteram. Os homens nunca chegarão a pássaros. Agora vejo campos arados, árvores, trajetos de identificação, tardes de ócio. Depois oiço o eco do tempo. Nas traseiras, a avó limpa o quintal com a sua vassoura de giesta. Junto aos salgueiros, as vacas pastam timidamente. Os ventos áridos costumam provocar incêndios frios. O desequilíbrio das evidências pode transformar-se em tragédia. Os pobres costumam desenvolver o temor da terra árida, da chuva e das geadas. E também o silêncio das casas. Quem odeia os livros costuma desfolhá-los como se fossem malmequeres. Há quem confunda a alegria cósmica com insensatez. Há momentos em que as coisas bonitas são tão insuportáveis como as feias. Há poetas que desfazem a poesia à força de tanto escreverem versos que não sabem a nada. Gostam de  colecionar poemas e flores campesinas. A sua poesia é uma língua morta. É insuportável a sua tendência para transformar os abismos em superfícies banais. Mas a poesia só o é verdadeiramente quando possui dentro de si a polifonia que estilhaça todos os limites da linguagem. A vida parece uma sucessão de intervalos. E depois há a poesia. E ainda a poesia sobre a poesia. Nós somos a média aritmética do caos. Voltamo-nos sempre para os mesmos rostos, como as personagens dos romances seculares. Gostamos de propagar a incompreensão. De pulverizar a gramática. De corroer a ironia. Epistemologia é semântica fraca. Toda a angústia nos deixa perplexos. Eu só admito ser criminoso se a liberdade for crime. Os loucos de agora já não possuem grandeza. D. Quixote morreu de forma definitiva. Somos todos Sancho Pança, sem burro, sem gordura e sem ilha. Triunfou Nero ao volante do seu Maserati elétrico. Dulcineia é um transexual. Qual de nós acordará com a cabeça do Rocinante deitada a seu lado?

24
Ago20

505 - Pérolas e Diamantes: Mergulhos e suplementos

João Madureira

Apresentação3-2.jpg

 

O verão é uma estação boa para uma pessoa se refrescar. Principalmente para aqueles que possuem uma piscina particular, como é o caso do vizinho que vive do outro lado da estrada. É um regalo ver mergulhar toda a família nas águas azuis, incluído o cão.

 

Eu observo a animação do alto da varanda do meu apartamento enquanto bebo uma mini. Cada um refresca-se com o que pode. Depois ponho-me a ler o jornal “Dinheiro Vivo”, para me entreter.

 

Fico a saber aquilo que já sabia: que o risco de austeridade depende de como a economia evoluir e que Portugal volta a divergir da Europa. Apenas uma notícia me surpreende: Marta a suceder a Paula, iniciando assim o novo ciclo no império Amorim. Para ser verdadeiro, é essa notícia e o mergulho acrobático do cão na piscina do vizinho, do outro lado da estrada.

 

Passo então ao suplemento de economia do Expresso, jornal com outro peso e dimensão bem mais avantajada. Fixo-me na entrevista de Manuel Carvalho da Silva (antigo secretário-geral da CGTP), agora coordenador do Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social – CoLABOR.

 

Fico a saber que MCS dedica muito do seu precioso tempo a cogitar sobre o impacto da crise no mundo do trabalho. Tendo, por isso, decidido escrever um livro intitulado “Pensar o Futuro – Portugal e o Mundo depois da Covid-19”.

 

Na sua douta opinião, as mudanças que se estão a desenhar no mundo do trabalho decorrem de múltiplos fatores, dado virmos de um percurso de “financeirização da economia e de mercantilização do trabalho”.

 

Além de virmos de “um tempo de cadeias de valor formadas por subcontratações, em que a organização do trabalho é bombardeada por dinâmicas que formam uma harmonização do retrocesso”.

 

A verdade é que estou um pouco baralhado com o linguajar sociológico do senhor Manuel. Mas reconheço que ter ido estudar para a universidade lhe deu músculo argumentativo e estatuto social avantajado.

 

Do outro lado da estrada, desta vez é o vizinho que mergulha o seu avantajado peso nas águas calmas da piscina. O cão põe-se a ladrar e um menino pequeno começa a chorar depois de ter sido surpreendido por uma onda de água que saiu inteirinha da piscina. A avó abre os braços de aflição, a mãe corre em socorro do seu rebento, enquanto o pai da criança sorri e continua a beber o seu gim tónico como se nada fosse com ele. O avô, atrapalhado com a agitação da água, dá umas braçadas para disfarçar o incómodo. O cão continua a ladrar. E o menino a chorar.

 

Peço mais uma mini à Luzia, mas depois lembro-me que estou sozinho em casa. Levanto-me com algum esforço, devido à minha eterna dor na coluna, e vou eu próprio servir-me. Opto então por uma Corona, por causa das coisas. Enfio-lhe pelo gargalo um rodela de lima e dou uma golada das boas.

 

Volto à minha cadeira, parecida com a do Dr. Salazar, e regresso à entrevista do camarada MCS.

 

“A lógica de ver o futuro sem sair daquilo que é dominante e mainstream, considerando que as opiniões dos que estão nas margens são opiniões radicais que não importa ter em conta, ou é posta de lado ou o desastre vai ser ainda maior.”

 

Mais uma golada na cerveja. “Isto até faz algum sentido”, penso enquanto bebo mais um pouco de cerveja, por puro desfastio. Adoro desenfastiar-me com coisas destas.

 

Na piscina iniciou-se uma pequena discussão em família. O pai do menino continua a beber o gim como se não fosse nada com ele. O cão deixou de ladrar. Deitado na relva, observa a cena com as orelhas em riste.

 

Eu, à falta de piscina, mergulho de novo na entrevista: “Não quero ser catastrofista, mas temos de começar a encarar as soluções passo a passo. Temos milhares de empresas em coma. Muitas empresas, se quiserem sobreviver, vão ter de funcionar durante muito tempo dando prejuízo.”

 

Reparo que na piscina apenas resta o cão acorrentado ao guarda-sol. Olho então lá para longe, lá para bem longe e pisco os olhos. Sinto que vou adormecer. Pronto, adormeci.

 

PS – A CoLABOR tem como objetivos: Mobilizar e expandir conhecimentos, capacitar a administração pública e qualificar o emprego. Órgãos sociais – Direção: Manuel Carvalho da Silva (Diretor – CES), José Côrte Real (Subdiretor – SONAE), Henrique Rodrigues (Vogal – CNIS), Pedro Adão e Silva (Vogal – ISCTE-IUL), André Marçalo (Vogal – IDEFF); Mesa Assembleia Geral: Rui Pedroso (Presidente – MOTA-ENGIL), Eduardo Paz Ferreira (Secretário – IDEFF), Isabel Raminhas (Secretário – Delta); Conselho Fiscal: Carlos Augusto Clamote (Presidente – Santa Casa da Misericórdia de Lisboa), Rui Pedroto (Vogal – MOTA-ENGIL), Sílvia Nabeiro (Vogal – Delta Cafés).

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